Corsários, os ‘cavaleiros do mar’, no oceano Atlântico

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Corsários, os ‘cavaleiros do mar’, no oceano Atlântico

Na Igreja de Saint-Jacques, em Dieppe, na Normandia, repousa o lendário armador Jean Ango (1480-1551), sob a lápide ‘reza por ele’. Aquela cidade portuária viveu não só do mito do corsário que desbravou mares e terras, como ainda sobreviveu às guerras de religião, nos primórdios da Era moderna. Corsários, os ‘cavaleiros do mar’, no oceano Atlântico, por Maria Luisa Nabinger.

Corsários, os ‘cavaleiros do mar’, no oceano Atlântico

A história dos corsários é narrada na literatura como uma história factual, ou no dizer do historiador Fernand Braudel, como uma história de curta duração – événementielle. Os ‘cavaleiros do mar’, em alusão aos cavaleiros dos senhores feudais, configuravam, no entanto, uma profissão.

O corso, etimologicamente ‘correr no encalço de’, foi regulamentado pelo artigo 3, da Ordonnance royale, sob o reinado Charles VI (1368-1422), instituindo a exigência da ‘comissão do corso’, ou ‘carta de represália’ e, mais tarde, ‘carta de marca’. A partir de François I (1515-1547), os corsários com a carta de marca de oficial da Marinha de Guerra da França, submetidos às ordens do rei através de um contrato, obtiveram a autorização para combater ou correr atrás dos inimigos do rei, exigindo daqueles audácia, iniciativa, além de conhecimentos náuticos.

A carta de marca representaria, ainda, uma garantia para eventuais socorros junto à Marinha francesa, aos portos franceses, aos aliados da França e à exatidão entre os barcos e os produtos que os corsários transportavam.

Imagem de baú de corsários
Os baús dos corsários. Imagem, Pierre-Jean Yvon. Saint-Malo, p. 40.

O papel do corsário

Ao lado do poder real, o papel do corsário refletiu, naquela época, a prática de conduzir os interesses políticos e econômicos em comum para rechaçar os adversários e concorrentes externos.

Além de Jean Ango encontramos outros capitães, como Jean Fleury, oriundo de Vatteville-sur-Seine, cuja base foi o porto Le Havre; Guillaume de Béquet, proveniente de Croisi e conhecido inimigo das embarcações espanholas na costa da Península Ibérica por capturar os prisioneiros pelas genitálias.

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Corsários ou piratas?

Mas, se o métier de corsário foi comumente identificado com as palavras navio, capitão ou membro da frota, foi, igualmente, confundido com a atuação dos piratas nas águas e disputas das terras americanas.

Tal confusão adveio do salvo conduto que os flibustes e bucaneros obtinham dos governadores da Jamaica e do Haiti para saquearem as embarcações espanholas. Aqueles eram provenientes, no entanto, das próprias terras francesas, como Gasconha, Bayonne ou mesmo Dieppe para saquearem Havana, Santa Marta, Cartagena, São Domingos, Nueva Cádiz, e outros portos.

Além das práticas de desconfiança e espionagem, havia, entre o poder estatal e a empresa privada, uma justaposição de autoridades, pois não teria sido esta a conduta do corsário Jean Ango ao declarar guerra ao rei português João III (1502-1557), bloqueando e pilhando o porto de Lisboa?

Jean Ango e a costa brasileira em 1503

Após saquear a costa brasileira, em 1503 – Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, Jean Ango teve três de seus navios abatidos pelo corsário Cristóvão Jacques, cujas ordens recebidas, em 1516, do embaixador português na França João da Silveira para atacar todos os navios e estabelecimentos franceses no hemisfério sul, resultaram em uma rixa entre privados ou a ‘boa guerra’, uma guerra de represália?

Ou, ainda, por que a apreensão de bens pelo poder estatal português de um privado francês no Mar Oceano Atlântico?

Contendas entre franceses e portugueses

As contendas entre franceses e portugueses nos mares e terras ocorreram pela não observância do Tratado de Tordesilhas (1494) que impôs uma interdição (interdicto) à livre navegação.

Tendo o mundo sido dividido entre Espanha e Portugal, o rei François I (1494-1547) nunca admitiu a violação de um Direito natural, como a liberdade para o tráfico e as trocas de mercadorias, traçando a linha do Primeiro Meridiano, a chamada ‘Linha da Amizade’ – linha tirada da Ilha de Ferro, a mais ocidental das Canárias, para resguardar o comércio nas possessões francesas no Mar Oceano Atlântico e a pesca na Baía de Nantes.

Em suas obras, Voltaire teria resumido as discórdias franco-portuguesas em torno dos meridianos: após a descoberta do Brasil, todas as linhas foram desordenadas e elas não foram respeitas nem pelos franceses nem pelos britânicos.

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Explorando o bacalhau na Terra Nova

Apesar da linha de Tordesilhas foram muitos os corsários franceses e portugueses que juntos ergueram fortes e exploraram a pesca do bacalhau na Terra Nova, a conhecida terra do rei português, além de incursionarem na América meridional.

De 1505 a 1534, os normandos Jean Denys, Jacques Cartier, Jean Ribault; de Carcassonne o nobre Jean-François de La Roque De Roberval; o florentino Giovanni Da Verrazzano, e muitos outros corsários partiram dos portos de Honfleur, Rouen, Dieppe em direção ao continente americano com o objetivo de descobrirem o caminho marítimo para a China.

Desde a Terra Nova, do Arquipélago das Onze Mil Virgens, assim nomeado pelo navegador e armador português José Álvarez Fagundes em 1520, ou de Saint-Pierre-et-Miquelon, nomeado por Cartier em 1536, das baías do Cabo Boa Vista e de Bela Ilha no Golfo do Rio Saint-Laurent até a exploração da costa equatorial na América meridional – da Ilha de Trinidad até a Ilha do Maranhão, franceses e portugueses incursionaram, exploraram e disputaram as novas terras sob todas as formas: como rixas, como guerra de represália ou como a ‘boa guerra’.

Imagem de mapa usado por corsários
Carte d’Amérique, Guillaume de l’Isle, 1675-1726.

Direito moderno, ou a Ciência dos reis

O processo de formação dos Estados-nação impôs a necessidade, naquela época, de uma nova ciência, como o Direito moderno, ou a Ciência dos reis, conforme Hugo Grotius (1583-1645): a guerra como uma via de direito tanto no direito entre os nacionais – Direito das Gentes, quanto na sociedade internacional – Direito Internacional Público.

Os conflitos políticos entre os Estados seriam regulados, no entanto, por nações soberanas e independentes. A liberdade de navegação passaria a ser disputada pelos Estados, sem a guerra do corso feita contra os reis, pois a defesa estatal praticada por forças armadas dos privados levou os reis da França e de Portugal a perderem a autoridade política junto aos ‘cavaleiros do mar, como Jean Ango, Giovanni Da Verrazzano e Jean Terrien. Outro exemplo elucidativo sobre a indistinção entre sujeito de direito à guerra foi o caso do corsário português Diego Nunez.

O corsário português Diego Nunez

Durante o período de concessões mútuas, de 1550 a 1574, entre os portos da Normandia, Bretanha e de Portugal, aquele corsário não só abateu o capitão Bastien de Lyard, em 1561, como ainda confiscou os produtos dos comerciantes normandos e bretões para trocas comerciais no porto de Lisboa.

E foi mais além: confiscou as mercadorias, expulsou toda a tripulação e apreendeu o navio em nome da rainha Catarina, sob o argumento de requisitar os navios na costa e no Reino para combater os mouros junto à expedição em Gibraltar.

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Logo foi preciso a intervenção do embaixador francês Jean Nicot solicitando à Dona Catarina uma reparação em favor da família e dos filhos do capitão distinto e valoroso Lyard. Em contrapartida, a rainha de Portugal se dizia muito aborrecida com a brutalidade de seu capitão tendo, porém, acusado os mercadores e negociantes franceses e portugueses de pilhagem.

Durante séculos arrastaram-se os imbróglios

Durante séculos arrastaram-se os imbróglios entre os interesses do poder estatal e dos privados levando as pilhagens às guerras do corso, com transferência de riquezas entre as nações através da barbárie e do roubo.

Tínhamos a rixa entre os súditos ao invés da guerra justa entre os soberanos, talvez em razão da tênue diferença entre corsários e piratas desde as origens da navegação. Enquanto os reis eram obrigados a alugar os navios armados para a guerra, viam-se obrigados, igualmente, alugar combatentes fora da lei, além de civis, para a guerra contra outro soberano. Tal seria a origem do corso, ou de uma pirataria regulamentada.

Mulheres corsárias

Raro era encontrar as mulheres corsárias sob o disfarce, porém, de homem. Oriundas das cidades francesas La Rochelle, Nantes e Bordeaux, mas também da Irlanda, as damas do mar ousaram participar da guerra do corso no Mare Liberum, entre os séculos XVII e XIX.

Em princípio, as mulheres jamais seriam permitidas a bordo, pois eram interpretadas como mau presságio tanto para os capitães quanto para os matelots – marinheiros subalternos.

As damas do mar, como Julienne David, Anne Bonney e Mary Read, mesmo não ocupando postos de capitão ou de oficial,  deixaram o registro histórico de bravura, iniciativa e ousadia no mar.

Diferentemente do reconhecimento dos corsários na literatura, a participação das mulheres foi associada, infamemente, à própria época de decadência do corso, nos séculos XVIII e XIX.

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Julienne David, e experiências amargas

Enquanto mamelot Julienne David, sob o nome falso de Jacques David, da cidade de Nantes, teria vivido experiências amargas. Com 19 anos foi feita prisioneira, tendo se passado por enfermeiro na prisão.

Antes de se suicidar em terra, Julienne viveu outros papéis masculinos, como garoto de estrebaria com boné, calças compridas e blusão azul. Faleceu em 1843, no Hôtel-Dieu, em Nantes.

Louise Antonini, corsária bretã

O caso de Louise Antonini, corsária bretã, foi, sem dúvida, surpreendente. Órfã de pai desde os dez anos, fez-se passar por menino e embarcou para São Domingo na fragata Cornélie.

Descoberta, Louise foi aprisionada em um pontão – ponte flutuante, durante um ano e meio. Livre, optou por ser um homem: alistou-se nas fileiras da Marinha, tornou-se cabo e, em seguida, sargento,  e só não se tornou major em virtude da sua miopia.

Quando foi descoberta estando em combate em Portugal foi expulsa da Marinha com honras, na condição de mulher por ter sofrido ferimento de fogo. Louise morreu em 1861, com 82 anos.

Nas hostes da pirataria

Nas hostes da pirataria tampouco as mulheres poderiam se alinhar. Mesmo sem a exigência da carta de marca, as mulheres só atuaram na pirataria sob a complacência dos capitães, como foi o caso de Anne Bonney.

Nascida na mais famosa ilha de refúgio dos piratas, a Irlanda,  nos séculos XVI e XVII, atuou ao lado do capitão John  Jack Rackham, ou Calico-Jack, famoso por suas calças.

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Imagem do corsário
Imagem, wikipedia.

‘Uma rude irlandesa’

Conhecedoras dos artifícios de guerra, as mulheres da Irlanda eram procuradas pelos grandes piratas. Anne Bonney não foi exceção. Conhecida como ‘uma rude irlandesa’, Anne participou do navio Dragon que escapou da esquadra comandada pelo policial Woodes Rogers, do lendário pirata Barba Negra, nas Bahamas, além da vitória sobre um ‘gigantesco navio espanhol.

Sob o pseudônimo Mac Read, Mary Read acompanhou tanto Anne Bonney quanto o capitão Calico-Jack no navio Dragon, tendo combatido em Flandres. Viúva aos 20 anos, Mary Read vestia-se como um pirata homem, sabendo manejar não só o sabre como ainda uma pistola.

Nas Antilhas, após um naufrágio, foi descoberta como mulher, sendo obrigada a viver como pirata sob as ordens do capitão, protegida dos ataques da tripulação.

No decorrer dos séculos, com a ampliação do jus mercatorum houve a promoção das práticas utilitárias entre as nações soberanas, impondo o nascimento da indústria naval e da marinha mercante às nomeadas monarquias de reis empresários.

Imagem de decreto rela sobre os corsários
Fonte: Imprimerie de l’ Assemblée Nationale. BnF.

As guerras de corso suprimidas no século XVIII

O comércio e a guerra do corso foram suprimidos em 1º de maio de 1792 através do Projet de Décret, do deputado parisiense M. Kersaint, quando a República Francesa ostentou a supremacia do Estado moderno, em detrimento de qualquer iniciativa particular dos corsários contra as nações amigas e inimigas.

Prática igualmente adotada em Portugal, e demais nações, após muitas disputas entre os corsários e discórdias franco-portuguesas em torno de limites e possessões no Mar Oceano Atlântico.

Imagem de abertura: Corsário francês, https://direitoehistoria.wordpress.com/.

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A autora: Maria Luisa Nabinger é historiadora e autora de A diplomacia brasileira no Prata: injúrias, motivos e pretextos (1863-1865).

Referências:

BLÉMUS, René. Les derniers corsário de La Manche. Rennes, Ėditions Ouest-France, 1994.

FALGAIROLLE, Edmond. JEAN NICOT – Ambassadeur  de France en Portugal au XVIe  siècle – Sa Correspondance Diplomatique – Inédite, a economia un fac-simile en phototypie.  Paris, Agustín HALLAMEL, Éditeur, 1897.

GUÉNIN, Eugène. Ango et ses pilotos d’après des documents inédits, tiré des Archives de France, de Portugal et d’ Espagne.Paris, Imprimérie Nationale/Librairie Maurice Prudhomme, MCCCCI.

MERRIEN, Jean. Histoire des corsaires. Louviers/France: Éditions l’ANCRÉ DE MARINE, 2005.

MOFFART, Gaston. ‘Jean Ango: Life History Of A Legend’. The Romantic Review, Fonte by Professor Henry Alfred Todd, Edite by John L. Gering,  Columbia University, 1933.

YVON, Pierre-Jean. Saint-Malo, City maritime,  status balnéaire. Saint-Malo, Pascal Galodé éditeurs, 2008.da

Professor polvo, um documentário imperdível

Comentários

1 COMENTÁRIO

  1. Bacana…. para quem gosta de histórias de corsários e piratas, sugiro o Livro Piratas no Atlântico Sul da editora giostri. @piratasnoatlanticosul

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