Viagem da Kika, diário de bordo Nº 10
Viagem da Kika, diário de bordo Nº 10: EXPEDIÇÃO ao Mar de ROSS
Partimos de Hobart – capital da Tasmânia – dia 1 de fevereiro. No final do verão o perímetro de gelo no Mar de Ross recua ao máximo aumentando a possibilidade de desembarque no Continente Branco.
O Mar de Ross é uma imensa baía na Antártica, com uma gigantesca prateleira de gelo sobre o mar cuja área corresponde ao tamanho da França. Esta prateleira se chama Ross Ice Shelf, de lá partiram algumas memoráveis expedições.
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Em 1914-17 Shackleton pretendia cruzar o continente a pé, passando pelo polo. Mas sua embarcação afundou comprimida pelo gelo no Mar de Weddel. Ele atravessou as banquisas com seus homens até ilha Elephant. Então navegou heroicamente numa pequena baleeira até as ilhas Georgia do Sul, tendo que atravessar altas montanhas em busca de auxílio. Outro grupo navegou para o Mar de Ross a fim de levar suprimentos para a suposta travessia de Shackleton. Pouco é falado que alguns homens deste grupo perderam suas vidas.
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Tripulação do Antartic
A bordo do Antarctic éramos 12 pessoas, 4 tripulantes e 8 passageiros. Na tripulação Doug Grubert – o líder – e Olivier Guigue – chef francês – além de Georges e eu. Entre os passageiros estava minha querida amiga Laura Mortara, que veio do Brasil com o entusiasmo que lhe é característico. Haviam também cinco australianos, uma francesa e um italiano.
O Antarctic foi construído por Georges Meffre na França. O barco tem 20 metros de comprimento e sua constituição é de chapas espessas de alumínio. Antes da viagem substituímos o leme e fizemos uma estrutura de proteção para leme e hélice.
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Travessia até o Cabo Adare
A travessia até Cape Adare – na Antártica – é de 2.000 milhas. O plano inicial era navegar até as Balleny Islands – 1.500 milhas a sudeste de Hobart – e seguir até Cape Adare.
Depois adentrar o Mar de Ross o quanto possível. Poucas embarcações se aventuram nesta região além das que abastecem as bases científicas e alguns navios com turistas.
O Atlântico Sul
O Atlântico Sul é conhecido pelos ventos de grande intensidade e fortes correntes oceânicas. Deste lado do planeta a travessia até a Antártica é longa, com poucos lugares para abrigo e distante de pontos para auxílio se necessário. A proposta da expedição era exploratória, não um charter comercial. Chegar e desembarcar em qualquer ponto dependia das condições no momento.
A saída
Zarpamos de manhã após liberação da Border Force. Descemos o canal entre Bruny Island e a Tasmânia, até Recherche Bay, onde ancoramos para jantar em companhia de alguns pesqueiros. Nos lançamos no oceano aberto com velas rizadas e muito mar.
Nos dias seguintes velejamos no contravento com rajadas de até 49 nós, nos “roaring forties” e “furious fifties” as baixas pressões desfilam uma após a outra.
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Macquarie Island
Decidimos parar em Macquarie Island – latitude 54˚S e 800 milhas distante de Hobart – para descansar e concertar a vela mestra. A Austrália tem uma base científica na ilha mas não tínhamos permissão para desembarcar.
Ela foi formada devido a pressão entre placas tectônicas. É única geologicamente, permite estudar a crosta do fundo do mar com 6.000 metros de profundidade. No passado foi cenário de caça de focas e extração de óleo de pinguins. Hoje é protegida e considerada patrimônio da humanidade. Desde então o número de animais vem crescendo; pinguins, focas, elefantes marinhos e inúmeros pássaros se reproduzem no local. Ratos, coelhos e gatos (animais introduzidos pelo homem) foram eliminados, mas a paisagem ainda não se recuperou plenamente. Festejei meu aniversário num lugar muito especial.
O primeiro iceberg
Avistamos o primeiro iceberg na latitude 60˚, marcava majestosamente o portal para outra realidade. Os grandes icebergs são visíveis no radar, os menores não; eles acabam representando um perigo maior. O círculo polar antártico passa pelas Balleny Islands, as ilhas são reclamadas pela Nova Zelândia como parte da Dependência de Ross.
Mas esta reclamação está sujeita às disposições do Tratado Antártico. Constituído por três ilhas grandes e outras menores, o arquipélago tem formação vulcânica, relevo montanhoso coberto por neve e muitas geleiras. No entorno os icebergs ficam encalhados, a paisagem é surreal. Não existem cartas detalhadas. Depois de 300 m de profundidade, o fundo do mar não é mapeado, a ancoragem é na raça.
Os pontos para desembarque são pouco confiáveis. O tempo abriu, uma raridade onde a estatística é de 15 dias de sol por ano. A luz refletia sobre as mais diversas formas de icebergs. Tomamos um whisky com gelo enquanto captávamos a beleza indescritível.
Velejando rumo sul
Seguimos velejando rumo sul, com ventão na cara, nenhum bordo nos aproximava. Anemômetro, convés do barco, mastro, adriças e guarda-mancebo, congelados. Usávamos storm jib e storm trysail,(velas de tempestade), às vezes apenas uma delas. Navegamos mais ao sul que o polo sul magnético. A bússola pirou, a posição do polo magnético se move e hoje está no meio do mar. Chocamos-nos contra o pack-ice, gelo à deriva que se desloca em decorrência da ação dos ventos e correntes. Quando a concentração da cobertura de gelo aumenta não é possível passar, então desviávamos para leste. Um amigo em terra nos passou informações, via satélite, sobre o limite do gelo à deriva. Precisaríamos mais três dias para contornar a área, sem saber ao certo se conseguiríamos desembarcar em Cape Adare. Nos 70˚S decidimos voltar, nossas provisões de comida e água eram para 30 dias. Já havíamos ultrapassado a metade do tempo. Além disso, em março inicia-se o processo de fechamento do gelo. A decisão foi unânime. O respeito sobre os limites da Natureza se coloca sobre a frustração de não chegar. Grande aprendizado.
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Ilhas Balleny
Na volta paramos nas Balleny, ancoramos no canal entre Sabrina e Chinstrap Islands, e fizemos outro concerto na vela mestra. Felizmente temos uma máquina de costura a bordo.
No dia seguinte conseguimos desembarcar por poucas horas em Buckle Island, numa praia minúscula, a alegria foi geral. O sol brilhava enquanto navegávamos entre as ilhas e os icebergs. A ar parece rarefeito de tão puro, um espetáculo da natureza selvagem.
Atravessando os 50˚
Atravessando os 50˚ tivemos novamente vento de frente. No contravento é desconfortável navegar, o barco bate muito, principalmente com tanto vento e ondas. Pegamos rajadas de até 54 nós. Decidimos parar em Macquarie para descansar e concertar a buja (vela de proa): o punho estava esgarçando. Em pouco tempo estávamos rodeados por pinguins-rei.
Centenas deles vieram nos ver curiosos, levantando a cabecinha quando chegavam perto. Não têm medo, ao partirmos nos seguiram até onde puderam.
Festa a bordo
No primeiro dia mais tranquilo organizamos uma festa a bordo. Coloquei música brasileira, salsa e cumbia para esquentar. Depois entramos no rock clássico, a pedidos e, finalmente, temas mais exóticos graças aos playlists do meu filho Matias. Me deletei como dj. As pessoas dançaram animadamente como se estivessem lavando a alma.
Perspectiva humana
A perspectiva humana desta viagem talvez tenha sido a maior aventura, apesar das dificuldades físicas e da convivência num espaço tão limitado durante 35 dias. As pessoas saíram desta experiência com um sentimento de família. Enfrentar adversidades juntos gera cumplicidade.