Mar ignora a engorda de praia e avança em Ponta Negra, Natal
O principal cartão postal de Natal fica na Ponta Negra: o Morro do Careca. Ele recebeu o nome porque de longe se parecia a uma pessoa careca, com cabelos só nas laterais. Assim era o Morro (na verdade uma imensa duna), com uma estreita faixa de areia em seus mais de 100 metros de altura, cercada por restingas. Contudo, o turismo desordenado, com milhares turistas subindo e descendo todos os dias, provocou o alargamento desta faixa. A restinga aos poucos perdeu seu vigor deixando no lugar uma agressiva erosão. Então, à exemplo dos maus tratos impostos à orla de Santa Catarina, as autoridades, na época o prefeito era prefeito Álvaro Dias (Republicanos), decidiram-se pela engorda de praia copiando o modelo capenga, ou seja, sem estudos que sustentassem a intervenção. O mar ignorou o banquete e seguiu avançando, escorado na ignorância e no desperdício.
Prefeitura de Natal justificou a engorda
Segundo o site da prefeitura (dez. de 2024), ‘a obra de engorda da Praia de Ponta Negra é de grande importância para a proteção da faixa costeira e a preservação desse importante ponto turístico de Natal. Sendo o principal investimento em infraestrutura nas áreas costeiras da história do RN e tão importante para nossa cidade! A previsão de finalização é em janeiro de 2025’.


Antes de prosseguir, o leitor deve saber que a lambança foi geral. A prefeitura de Natal contratou a mesma empresa, DTA Engenharia, responsável pela engorda da praia Central, em Balneário Camboriú, combatida por duas Notas Técnicas de especialistas da UFSC, e que está a caminho de sua terceira engorda em razão das inúmeras e anunciadas falhas do ‘projeto’.

Pois bem, “o principal investimento em infraestrutura nas áreas costeiras da história do RN” custou aos cofres públicos R$ 75 milhões jogados no lixo (segundo o site Quilombo Visível o custo final foi de R$ 107 mi). Quando isso acontece — e sempre acontece quando o serviço nasce eivado de podridão — as autoridades parecem ficar satisfeitas. Elas abrem novas concorrências, contratam outras empresas sem qualificação, sabe-se lá com quais benesses, a imprensa noticia com destaque e sem questionar, e os repastos de areia, que desafiam a ciência e o bom senso, tornam-se furúnculos crônicos vomitando recursos públicos.
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Obra orçada em RS 75 milhões saiu por RS 107 milhões
Mas não é tão rápido assim. Primeiro, o gestor político gasta ainda mais recursos para inaugurações grandiosas, o tal pão e circo – panem et circenses – que os imperadores romanos ofereciam à plebe inquieta, enquanto louvam a si mesmos.
Vejamos como agiu o prefeito e empresário Paulino Freire (União Brasil). Ele assumiu em 1º de janeiro de 2025 e declarou ao inaugurar a obra que o mar ignorou (site oficial):
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A Prefeitura do Natal concluiu a engorda de Ponta Negra. Uma obra importante, resultado do esforço da gestão municipal. Protegemos o nosso cartão postal, o Morro do Careca. Ampliamos a faixa de areia e temos mais espaço de lazer na praia para natalenses e turistas
Na mesma cerimônia, e ainda de acordo com a mesma fonte, o secretário de Meio Ambiente de Natal, Thiago Mesquita, declarou:
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Em setembro de 2024 surgiu a primeira contestação
Álvaro Dias (Republicanos) e Paulino Freire (União Brasil), os prefeitos no centro da polêmica, não podem alegar ignorância. As praias engordadas de Santa Catarina se esfarelam uma após a outra. Prefeitos do Sul ignoraram a ciência. Eles fecharam os ouvidos aos alertas da UFSC. Mesmo assim, seguem torrando milhões em aberrações, como muros de concreto enterrados sob a areia “para evitar erosão”.

Enquanto a grande mídia segue abobalhada destacando novas engordas sem quase nunca questioná-las, a academia permanece fiel aos alertas. A UFSC lidera esse esforço. Muitos sites também. Um exemplo é o Quilombo Invisível que publicou, em setembro de 2024, a matéria Engorda de Ponta Negra: Destruição Anunciada.
Obra começa em meio a ano eleitoral
O texto explica o contexto, informando sobre o projeto de Álvaro Dias (Republicanos), de 2021, ‘que começou no segundo semestre de 2024 em meio ao período eleitoral. Embora o projeto venha sendo discutido desde 2012. A obra inicialmente orçada em 70 milhões, já está em 107 milhões de reais.’
A reportagem comenta os fracassos do Sul. Balneário Piçarras, por exemplo, vai para a quarta engorda. E previne, como nós desde o início da pandemia de areia, ‘as engordas têm se transformado num “negócio” em si mesmo lucrativo para os consórcios empresariais que as realizam’.
‘O remédio proposto para o problema das erosões é a própria causa daquilo que se visa combater: ampliar mais ainda o turismo, ocupar mais ainda as regiões costeiras com pousadas, grandes hotéis, resorts, aquecendo ainda mais a especulação imobiliária‘. De quebra, a matéria cita os alertas da academia.
‘Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina, que analisaram diversas obras de engordas, mostraram, além disso, que os impactos ambientais não são apenas locais, mas afetam também praias vizinhas, além de contaminar a água e o ar’.

‘Projeto econômico-político para atender a classe política e empresarial’
Enfim, a matéria chega às mesmas conclusões que nós tiramos desta farra do boi: ‘Tudo isso dá mostras que a obra da engorda de Ponta Negra é, antes de tudo, um projeto econômico-político para atender a classe política e empresarial. O objetivo é puramente o lucro, e não a população local, residente da comunidade da Vila de Ponta Negra, que será a mais afetada’.
O site não estava só ao apontar a farsa. O presidente da Associação Potiguar de Amigos da Natureza, Francisco Iglesias, fez os mesmos alertas destacando que a obra mudaria a biodiversidade da praia – normalmente morta asfixiada. Iglesias destacou o improviso alertando que ‘vão retirar areia da praia em frente a comunidade Mãe Luiza e não existem estudos dos dois sistemas para combinação’.
E vaticinou: ‘O negacionismo não pode governar uma cidade, um país, um estado. A ciência deve ser considerada. O negacionismo mata o turismo. Não podemos repetir o Rio Grande do Sul aqui’.
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Os mesmos problemas da Praia central, em BC, se repetem
Menos de um ano desde a inauguração, a engorda da praia de Ponta Negra, já demonstra fragilidades, com o mar se aproximando da base do Morro do Careca e com a areia sendo levada até a região da Via Costeira. As informações são de Venerando Eustáquio, professor de Engenharia Civil e Ambiental da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e coordenador do Laboratório de Geotecnologias Aplicadas Modelagem Costeira e Oceânica (GNOMO), informou o Saiba Mais.
“Já temos evidências de que a areia do aterro de Ponta Negra já está sendo carreada e alcançando as praias da Via Costeira”. Segundo Eustáquio, os dados foram constatados em campo. ‘Com base nos dados do Transporte Longitudinal de Sedimentos já tínhamos a evidência de que o principal deslocamento é para Norte e com altos volumes’.
Engordas são apenas um dos recursos para evitar erosão quando a praia em questão assim o permite, não são panacéia, e só depois de complexos estudos que envolvem a morfologia da região, a direção para a qual a praia está aberta, a composição de suas areias, a profundidade, além das forças naturais como potência e direção de ventos, correntes, e das ressacas, entre outros.

Mas, uma coisa é certa: se não devolvermos o que decepamos, as Área de Proteção Permanente protegidas por lei, como restingas, os campos de dunas, e os manguezais, não há força capaz de brecar o processo erosivo que advém de algo muito simples: a ausência da reposição natural da areia tragada por ondas e ressacas. Como estes ‘detalhes’ não chamaram a atenção dos diligente gestores de Natal, menos de um ano depois do ‘panem et circenses’ os mesmos problemas das praias do Sul começaram a surgir.
E assim será enquanto as providências corretas e naturais continuarem ignoradas: a restituição das dunas e das restingas. Talvez, pelo baixo custo, as saudadas soluções baseadas na natureza não interessam aos gestores políticos. Mas deveriam.
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