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Investimentos no litoral oeste do Ceará causam surto especulativo

Investimentos no litoral oeste do Ceará causam surto especulativo

Eu testemunhei inúmeros surtos de especulação imobiliária no litoral, a ponto de considerá-la o maior problema da zona costeira. Essa especulação gera uma série de problemas simultâneos em qualquer lugar onde se estabelece. Um dos mais graves é a ocupação de ecossistemas sensíveis, como restingas, manguezais, dunas, falésias e praias, além dos costões. Em vez de preservar o cenário original, deixa um rastro de concreto armado, desconsiderando os movimentos geológicos da Terra e os princípios da Constituição que garantem a proteção da paisagem. Outro aspecto preocupante é o impacto social: os nativos e caiçaras são privados de seus usos, costumes e tradições, perdendo o acesso ao mar e sendo relegados a viver nas periferias. Assim começou a especulação imobiliária, depois de pesados investimentos no litoral oeste do Ceará.

Falésia ocupada litoral leste
Imagem do início dos anos 2000, no litoral leste, mostra falésias ocupadas mesmo sendo uma Área de Proteção Permanente cuja ocupação é proibida.

Outra consequência da falta de fiscalização é o aumento da poluição marinha já que a maioria dos locais visados são ermos, não têm infraestrutura. E, acredite, estas são apenas algumas das repercussões.

Em 2006 flagrei estas duas ‘casas pé na areia, literalmente, no litoral leste. Assim como os governadores Tasso Jereissati (PSDB), 1995 a 1999, e Lúcio Alcântara (PSDB),  2003 a 2007, não agiram para conter os crimes ambientais, hoje Elmano de Freitas (PT) faz a mesma vista grossa para os que acontecem no litoral oeste.

O litoral oeste do Ceará

No início dos anos 2000, observei, perplexo, a especulação imobiliária avançar pelo litoral leste, com construções em áreas proibidas enquanto a fiscalização se omitia. Gradualmente, o ataque se deslocou para o oeste, uma região preservada, onde comunidades de pescadores ocupavam as últimas praias intocadas.

Os municípios de Cruz, Jijoca, Barroquinha, onde estão as últimas praias desocupadas não têm qualquer infraestrutura, há vários lixões a céu aberto.

Estes locais carecem de infraestrutura básica. Quando o surto especulativo começa, centenas de pessoas migram para o local. Alguns buscam lucrar com a revenda de terrenos, outros querem umacasa pé na areia e, além disso, levas de desempregados chegam em busca de trabalho na construção civil, que cresce junto com a ocupação descompassada.

Mais uma placa, desta vez em Jijoca.

Sem fiscalização ambiental, o que era idílico torna-se caos. ‘Superadensamento’ e ‘crescimento desordenado’, problemas recorrentes nas praias brasileiras, tomaram conta da Região dos Lagos (RJ) nos anos 60, do litoral norte paulista nos 70 e dos litorais de Santa Catarina e Bahia nos 80. Será provavelmente este o fim do litoral oeste do Ceará.

E, em todos os Estados, a paisagem, um bem protegido por todas as  Constituições desde a de 1934 até a de 1988,  tornou-se uma caricatura do que era.

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No trajeto de carro, de Camocim para Bitupitá, é preciso passar por dentro de três vilas, e seguir viagem. As casas dos nativos são como esta.
Apesar de 4, entre 5 tipos de tartarugas, desovarem no litoral do Ceará, as praias são usadas como estradas. Diariamente centenas de carros e caminhões passam por elas.
Esta imensa restinga deveria ser ‘protegida’ pelo Parna de Jericoacoara. Acontece que cerca de 3 mil carros, entre 4×4, caminhões, quadriciclos, etc, foram liberados para trazer turistas. O resultado é este que se vê, uma restinga dilacerada pelos excessos.

Praia do Preá, litoral oeste do Ceará

Nossas fontes no Ceará já alertavam sobre a especulação na praia do Preá. Recentemente, percorri de Barrinha ao Pontal das Almas, divisa com o Piauí.

Esta foi a praia do Preá que conheci em 2006. Havia quase só pescadores, a praia era deles.

Visitei as vilas, conversei com nativos, lideranças comunitárias, empreendedores e turistas. Voltei impressionado. O assunto dominante era o dinheiro. Não apenas dos investimentos em turismo, mas  grandes somas em espécie que circularam durante a eleição, levantando suspeitas de lavagem de dinheiro.

O município de Barroquinha também está à venda.

Para entender o processo, é essencial conhecer o contexto da região. Até o ano 2000, partes do litoral oeste permaneciam isoladas, quase desconectadas do Brasil. Somente com a chegada da luz elétrica, a partir do século 21, os moradores começaram a saber o que se passava no restante do País. Muitos mal conheciam o papel moeda, viviam da pesca e da roça de subsistência. Quando precisavam produtos manufaturados trocavam por peixes.

Mais um hotel em breve, em Jijoca. Esta é a obra do Gran Vellas do cantor Zezé de Camargo que também quis aproveitar o ‘boom do turismo’.

No início dos anos 2000 o italiano Marco Dalpozzo e seus sócios, apaixonados por kitesurfe, foram os primeiros a enxergarem o potencial da praia do Preá para o esporte. Em 2004, inauguraram o Rancho do Peixe, o primeiro hotel, marcando o início do turismo na área.

A palavra de Marco Dalpozzo

Conversei com Marco Dalpozzo, que chegou a Jericoacoara em 1997 e, assim como a maioria dos europeus, ficou encantado com a região. Dois anos depois, ele e seus sócios fundaram o Vila Kalango, um hotel que respeita a paisagem característica, e emprega nativos que foram treinados para atender os visitantes em suas respectivas línguas.

A região do Preá em 2019, ainda sem os estragos na vegetação.

Em 2005 o grupo inaugurou o Rancho do Peixe, em Preá,  dando início a uma nova fase de hotéis na região. Segundo eles, “as construções foram projetadas para se integrar ao ambiente; nunca derrubamos uma árvore, construímos ao redor delas.”

Sócios oriundos de multinacionais europeias

Os sócios de Marco são oriundos de multinacionais europeias. Eles consideram que ‘os nativos têm tudo de bom, só é preciso orientá-los’. Perguntei se a formação da equipe demorou muito tempo. A resposta foi curta e grossa. ‘Nós os orientamos para que nunca percam de vista que, em primeiro lugar, estão as pessoas’.

Preá em 2021, o inicio dos estragos já pode ser visto.

Para Marco e seus sócios,  a principal ideia por trás de seus hotéis era “respeitar a casa dos outros”, ou seja, harmonizar com o entorno, infundindo uma dose de “charme europeu” nas construções.

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Quando perguntei até que ponto a súbita alta do custo de vida havia afetado seus negócios, responderam que a região enfrenta uma escassez de mão de obra qualificada, além da falta de matéria-prima. No entanto, destacaram que “gostam de concorrência”, para eles é sempre positiva. Questionaram, entretanto, se todos os empreendedores haviam legalizado suas obras, se suas licenças ambientais estavam em dia, além da  regularização fundiária de suas terras.

Em 2023 a perda da restinga é evidente em vários terrenos desmatados.

Para encerrar, perguntei sobre os problemas que identificaram desde que começaram a operar no litoral oeste. A resposta foi uníssona: “Falta fiscalização”. E acrescentaram, “as leis são ótimas”, referindo-se à legislação ambiental, “mas não são aplicadas.”

Em 2024 o Preá já transformado. E o empresário ainda insiste no ‘planejamento’, e ‘sustentabilidade’.

Sobre a alta de preços que se verifica hoje eles contaram  que, ao chegarem, o metro quadrado valia dez reais. Hoje o preço é de mil reais o metro quadrado. Isso demonstra o que aconteceu depois da ação da turba de especuladores.

Aeroporto e estrada asfaltada em 2018, e licenciamento frouxo a partir de 2019

Em 2018, o aeroporto de Jericoacoara entrou em operação, e a estrada de 10 km até o Preá foi asfaltada. No ano seguinte, o governo Elmano de Freitas transferiu o licenciamento ambiental do Estado para os municípios, era o que faltava. Logo após, a especulação imobiliária começou, ainda que em menor escala, com as primeiras vendas de terrenos em áreas de marinha sobre dunas.

À exemplo dos outros municípios Camocim também tornou-se um canteiro de obras.

Com a chegada de forasteiros trazendo dinheiro vivo, os nativos seduzidos pela ilusão passaram a vender lotes que não lhes pertenciam e até parte dos terrenos onde viviam, outros cercavam áreas e as revendiam em seguida. Dez, quinze mil reais, eram suficientes para comprar as primeiras posses.  A paisagem bucólica e idílica começou a mudar, assim como os usos e costumes tradicionais.

Com os forasteiros chegaram mais carros

Os novos habitantes precisavam autonomia para se locomover. Assim, aumentou o número de carros, especialmente 4×4, quadriciclos e, pior de todos, os UTVs, que hoje infestam o local. As dunas viraram pistas de prova, enquanto a fiscalização segue ineficiente. Situações similares já causaram estragos permanentes, como o desmoronamento da ‘duna do pôr do sol’ na praia de Jericoacoara.

Estas são imagens do site do Vila Siará, projeto independente de alguns sócios do Grupo Carnaúba. Duas delas mostram um quadriciclo e um UTV. Ou estou enganado, ou ambos estão em dunas.

Percebendo a algazarra, uma facção do Comando Vermelho, que encabeça o tráfico de drogas na vila de Jeri, se instalou no Preá. Hoje, a região é ‘dominada’ por duas facções do C.V. Muitas  placas de trânsito estão pichadas pelos milicianos que ‘pedem respeito’, e ‘avisam sua chegada ‘.

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A bomba estava armada, faltava o detonador.

Um brutal investimento em 2020

Enquanto a desordem se espalhava, em 2014, um empresário interessado em kitesurfe conheceu a praia do Preá, favorecida pelos alísios do nordeste durante seis meses do ano. Percebendo o potencial para o esporte, ele idealizou um projeto ousado — ousado demais, na nossa opinião.

Imagem de 2015, um ‘hotelzinho’ em construção. Note-se a preocupação do empreendedor com a paisagem…

Conheça Julio Capua

Julio Capua, cofundador da XP ao lado de Guilherme Benchimol, deixou a empresa em 2020 para empreender. Craque no kitesurfe, Julio revelou à revista Forbes que aprendeu rapidamente o esporte, passando até cinco horas por dia na água.

Mais concreto armado sobre dunas, desta vez na praia do Preá.

Em 2019, Julio e seu sócio, Cristhian Bendixen, identificaram um terreno de 500 mil metros quadrados ideal para seus planos. Em 2020, concluíram a compra, investindo R$ 33 milhões. O detonador estava armado.

O Mar Sem Fim tentou entrevistar Julio Capua. Entramos em contato com a assessoria de imprensa e dissemos de que se tratava. Depois de nossa viagem, não poderíamos deixar de mencionar o Grupo Carnaúba. A entrevista foi marcada, e desmarcada na véspera. Insistimos, mas depois de certo tempo  a assessoria disse que Julio declinava o convite.

Decidimos em comum acordo que, antes de publicar o post, o enviaríamos para que fizesse as considerações que julgasse necessárias uma vez que o Grupo Carnaúba é o protagonista da história que hoje contamos.

Assim, em 9/12 enviamos o texto para o e-mail da assessoria e cobramos resposta. Fizemos o mesmo na terça e na quarta. Não houve retorno. Como temos certeza que o endereço não mudou de uma semana para a outra, concluímos que Julio Capua preferiu não responder.

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‘Tivemos a visão de fazer uma cidade planejada’

Durante uma das visitas ao Preá, Julio revelou à Forbes sua visão de criar uma “cidade planejada”. Ao mesmo tempo, ele e seus sócios começaram a buscar investidores vendendo o sonho da “primeira praia planejada do Brasil”.

Mais um condomínio na praia do Preá que chegou no rastro dos investimentos. Note a placa à esquerda, ‘proibindo a entrada de carros’.

Julio não economizou para divulgar seus planos, concedendo entrevistas a quase todos os veículos de mídia. Em uma delas, ao Sala Vip, destacou que “o destino se consolidou no mercado de luxo nacional e estrangeiro” e anunciou para 2026 a chegada de uma unidade Anantara, bandeira tailandesa, além de outros empreendimentos. A Vila Carnaúba “vai mudar enormemente a cara do Preá nos próximos anos”.

‘Destino sustentável e planejado’

E de fato mudou, embora o Sala Vip  insistisse que “o projeto defende transformar a praia do Preá, vizinha a Jericoacoara e Barrinha, no principal destino turístico ‘planejado’ e ‘sustentável’ do Brasil”.

A matéria também destaca ações desenvolvidas pelo Grupo, ‘para compensar as intervenções no destino e fazer valer a ideia de transformar o Preá em um destino turístico sustentavelmente planejado’.

Imagem do site mostrando o ‘Wind House’ e uma das lagoas. Segundo matéria de O Globo (09/2024), a Casa Siará é uma das que vêm dando essa nova cara à costa. Projetada pelo arquiteto Miguel Pinto Guimarães para ser a residência de veraneio do empresário Julio Capua, cofundador da XP Investimentos, e seus sócios, logo foi aberta ao público.

Expressões que se repetem no marketing 

Como era de se esperar, algumas palavras aparecem em quase todas as entrevistas: “sustentável” e “planejamento” são as campeãs. A repetição levanta questões sobre os motivos e confirma o uso excessivo por empreendedores da zona costeira, distorcendo seu significado.

Para qualquer lado que se olhe, entre Barrinha até à divisa com o Piauí, o que mais se vê são placas e canteiros de obras.

Entre as ações do Carnaúba, promovidas pelo Instituto Camboa (outra criação do grupo), Mari Campos menciona medidas como a redução da iluminação noturna para preservar o panorama do céu e minimizar os impactos na fauna.

A Zona de Amortecimento do Parque Nacional de Jericoacoara faz divisa com a praia do Preá, por isso está bastante detonada. Sua restinga tornou-se uma colcha de retalhos, as dunas, pistas para cerca de três mil carros autorizados a levar turistas, e ainda querem muuuito mais.

Gestão de resíduos e reciclagem de lixo

O projeto de gestão e reciclagem inclui uma parceria com a Coopbravo, no distrito de Barrinha, vizinho ao Preá, além da criação de um viveiro orgânico e ‘sustentável’ voltado ao reflorestamento dos terrenos do Vila Carnaúba e do Carnaúba Wind House, com mudas do cerrado, caatinga, floresta tropical e mata atlântica.

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Bitupitá.

É inevitável questionar: o projeto é  ambicioso ou apenas pretensioso? Ou talvez excessivamente ingênuo? É difícil acreditar que uma ocupação dessa magnitude se proclame sustentável e planejada, considerando que atrás dela seguiu uma turba de empreendedores sobre os quais ninguém tem controle.

Ora, serviços básicos como saneamento, coleta e tratamento de lixo, ou tratamento e fornecimento de água, são pífios, basta dizer que a luz elétrica chegou há apenas 20 anos.

Segundo o IBGE, só nos municípios de Acaraú, Jijoca de Jericoacoara, Camocim, e  Barroquinha, em 2022, foram despejados 337,55 mil m³ de esgotos na natureza sem tratamento’. Somando o esgoto jogado por quatro, dos cinco municípios (Cruz não informou ao IBGE a quantidade), temos cerca de 800.000 mil m³, ou o equivalente a 402 mil piscinas olímpicas de esgotos não tratados despejados na natureza todos os anos.

Para não falar nos lixões a céu aberto. Portanto, dizer que o empreendimento é ‘sustentável e planejado’ pode ser desejo, na melhor hipótese.

O Grupo Carnaúba e seus 12 milhões de metros2

Julio revelou à Forbes: “Fizemos uma rodada entre amigos que gostavam da região e levantamos R$ 150 milhões para comprar mais terras. Assim nasceu o Grupo Carnaúba. Também levantamos um fundo com a XP, garantindo mais R$ 150 milhões. Hoje temos 12 milhões de metros quadrados e direito de preferência sobre outros 8 milhões.”

Antes de chegar na praia de Curimã é preciso passar por um enorme campo de dunas. Note que ele está cercado, com placa de ‘Propriedade privada, proibida a entrada’. Dunas são APPs.

O que mais se fala na região, e nas entrevistas provocadas por Julio Capua, são os valores envolvidos.  A CNN, por exemplo, revelou que ‘condomínio de alto padrão, clube de kitesurf com parte hoteleira, unidade do resort Anantara e hotéis de bandeiras internacionais fazem parte de investimentos que podem chegar a R$ 4 bilhões pelos próximos 10 anos’.

Cinco quilômetros de frente para o mar

Essa área inclui 5 km de frente para o mar. A pergunta é, quantas posses foram compradas para alcançar essa extensão?

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Já na praia de Curimãs dá pra ver o tamanho da área de dunas cercadas.

Em julho de 2024, Julio Capua entregou a primeira fase do Vila Carnaúba, um condomínio de alto padrão com 230 lotes avaliados entre R$ 3,5 milhões e R$ 6,5 milhões. Nessa etapa inicial, o Grupo comercializou 80% dos 160 lotes disponíveis, alcançando um Valor Geral de Vendas (VGV) de R$ 280 milhões, segundo o InfoMoney.

O festival de crimes ambientais segue impune, aqui vemos outras dunas sendo ocupadas com concreto armado.

Paralelamente, o Carnaúba Wind House, voltado para a prática de kitesurf, já havia vendido quase 150 títulos até setembro de 2024, com valores entre R$ 236 mil e R$ 750 mil, conforme revelou O Globo.

Obras representam apenas 5% do total

Apurei que as duas obras representam apenas 5% do total que o Carnaúba pretende entregar até o fim do projeto.

O Rancho do Peixe, cujos funcionários são nativos que atendem europeus na língua deles, é o único que procurou se adaptar à região, e não o contrário.

Capua explicou ao InfoMoney que, ‘a segunda fase vai contemplar imóveis “mais baratos”, entre R$ 2 milhões e R$ 4 milhões. “Vamos vender a casa pronta, pois percebemos que o mercado de compradores de casa é muito maior do que o mercado de compradores de lote’.

Mais um condomínio, praia do Preá, possivelmente atraído pelos muitos bons negócios.

O projeto é um megaprojeto

Em resumo, o projeto é um megaprojeto, trata-se do maior investimento já feito por um único grupo no litoral brasileiro. Quando estiver concluído, atrairá milhares de pessoas para um local que claramente não comporta multidões.

Ainda assim, o site oficial afirma que “nossa missão é proteger a região da Costa do Preá do crescimento excessivo e desordenado”.

Em Jericoacoara, que já enfrenta o turismo de massa, construções estão cada vez mais altas.

Grupo também visa  comércio e até mesmo casas para as classes média e populares

O Grupo Carnaúba planeja desenvolver, além do turismo, setores como comércio e habitação para classes média e popular, com a expectativa de gerar até 10 mil empregos diretos e indiretos ao longo dos anos.

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Os UTVs infestaram a região…

No entanto, é desafiador conciliar a proteção contra o ‘superadensamento’ e o ‘crescimento desordenado’—problemas crônicos do litoral brasileiro—com a construção de inúmeros hotéis, condomínios e beach clubs que, juntos, empregarão um número de pessoas superior ao de habitantes de vários municípios. Por exemplo, a população de Cruz, que era de 5 mil habitantes antes da pandemia, saltou para 18 mil depois dela, mais que triplicando em menos de dois anos. Os serviços públicos já estão caóticos.

Embora o papel aceite tudo, novos empreendimentos surgem um atrás do outro. Um exemplo é o “Vilas Siará“, propriedade de alguns sócios do Grupo Carnaúba que decidiram investir em mais este empreendimento.

O interior das casas do Siará (diárias a partir de R$ 2.900, na baixa temporada) mostra que os muitos ricos são os mais visados. Imagem, Vilas Siará.

O site do Siará

O site do Siará informa que vai proporcionar ‘a sensação de casa e com serviço de hotel, cada vila tem sua estrutura independente com sala de jantar e estar integradas à área gourmet, que conta com churrasqueira e forno para pizza, além de piscina privativa’.

Do site do Vilas Siará. O letreiro informa que ‘a vila do Preá está localizada no Ceará, a 20 km ao sul da vila de Jericoacoara. A região fica entre dunas de areia branca, lagoas naturais e manguezais que formam os biomas do litoral cearense, um lugar onde a natureza permanece inviolada’. Inviolada?

‘Casas de 3 a 4 suítes – 188m² a 384m²’

Entre os 500 mil metros do empreendimento o interessado poderá escolher ‘casas de 3 a 4 suítes – 188m² a 384m², cuidadosamente projetadas para encaixe com os lotes.

Um dos chalés do Rancho do Peixe, rústico e gracioso, respeitando as características locais, mas aconchegante e com toda a comodidade de um cinco estrelas.

Os projetos do Grupo Carnaúba foram idealizados por ‘Miguel Pinto Guimarães, reconhecido como um dos cinco maiores arquitetos brasileiros da atualidade’.

E, para cada empreendimento destes, há menos restingas e dunas frontais no Estado. Ainda em maio de 2024, o Atlas da Mata Atlântica, coordenado pela Fundação SOS Mata Atlântica, informou, e o jornal O Povo repercutiu: ‘o Ceará é a unidade da federação que mais degradou a área de restinga em 2022 e 2023. O Estado é líder na supressão dessa vegetação costeira, presente principalmente em dunas, pelo menos desde 2017’ (grifo nosso).

A compra de currais de pesca

Julio também não mencionou que uma das primeiras ações após adquirir o terreno foi a compra de currais de pesca, armadilhas fixas conhecidas no Sudeste como “cercos”, de pescadores da aldeia de Castelhanos. Para ‘limpar a área’, o grupo optou por “pagar” aos nativos para que retirassem suas artes de pesca, desobstruindo o espaço.

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Outras vezes, o  empresário se contradiz. Em entrevista ao O Globo afirmou que “a ideia é tornar o Preá um dos destinos turísticos mais desejados do país”.

Mas, se isso acontecer, milhares de pessoas (ricas) inevitavelmente passarão a frequentar o local, certo?

‘Plantar “casas de rico” no meio de uma região frágil’

Outra contradição é revelada pelo Brazil Journal: ‘Julio começou a comprar terras na região para construir um condomínio de casas, mas a ficha logo caiu: plantar “casas de rico” no meio de uma região frágil (ambiental e socialmente) levaria Jericoacoara a ter o mesmo destino de outros paraísos que viraram infernos urbanísticos’.

Ele promete mudar esta situação ao Portalin: ‘o Grupo Carnaúba prepara-se para lançar um projeto do programa Minha Casa Minha Vida em parceria com a Olé Casas, construtora de Fortaleza com vasta experiência no segmento, tendo entregado mais de 26 mil unidades habitacionais em todo o Brasil’.

“A gente não quer verticalizar”

“A gente não quer verticalizar, diz Julio, mas fazer um bairro bem horizontal, com implantação diferenciada, ruas largas, paisagismo bom, ciclovia, colado à Vila do Castelhano, que já tem igreja, praça, mercado, escola, acabou de inaugurar um posto de saúde, e ao lado vamos fazer o MCMV faixas II e III, com uma demanda estimada de 1.000 unidades na primeira fase, talvez mais’.

Capua finaliza: ‘Queremos fazer vilas com cerca de 28 casas, mantendo a personalidade de uma vila de pescadores, com alguma bossa, cores vivas, mesmo sendo uma casa popular.

É muita pretensão e ousadia. Alguém consultou os nativos? É realmente isso que desejam: serem cercados por empreendimentos voltados para os muito ricos, enquanto sua vida, memórias e tradições já estão transformadas?

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Espero estar enganado, mas a história está cheia de casos semelhantes que fracassaram, mostrando que esse tipo de iniciativa não é tão simples quanto parece.

O interior do Rancho do Peixe também é impecável.

O detonador foi acionado, e a explosão mostrou força. Lideranças comunitárias relataram preocupações graves. Muitos pediram anonimato, alegando terem sofrido ameaças de morte. Um deles contou que foi emboscado e espancado com porretes, quebrando o braço e várias costelas.

Mais campos de dunas cercados, desta vez a cerca é  mais  tosca, pode ter sido obra dos nativos.

Consequências na aldeia de Barrinha

A praia da Barrinha, e a aldeia de mesmo nome, ficam coladas à praia do Preá, no sentido oposto ao de Jericoacoara. E a região também sente as consequências dos investimentos e da falta absoluta, parece até proposital, de fiscalização

Quanto às lixeiras de madeira colocadas em Barrinha pelo Instituo Gamboa, muitas já apodreceram, enquanto o lixo continua jogado na natureza.

É um deboche o que acontece, a placa indica que se trata de uma APP onde é proibido construir, e atrás da placa o que há? Será possível que só a Semace e prefeitura não vê?

Duas empresas foram autorizadas pela SEMA – Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Climaa construir pousadas dentro destes braços de mar, a DKI – Empreendimentos, do Rio de Janeiro; e a RPE Empreendimentos, de Campos do Jordão, aberta em 2019.

Obras e placas de vende-se

Ao percorrer o trecho entre a praia de Barrinha e a divisa com o Piauí, é impossível não notar os inúmeros canteiros de obras e as centenas de placas de “vende-se”. A expansão imobiliária salta aos olhos.

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Placas e mais placas….e canteiros de obras.

Seguindo o exemplo do megainvestimento, dezenas de outros empreendedores também chegaram à área. Em conversas com nativos, eles disseram que ‘a maioria  seria de Ilhabela, São Paulo’.

Na cola dos investimentos de Julio Capua, e Giorgio Bonelli, outros vêm no rastro, como este hotel, o Gran Vellas, em Jijoca. Entre os sócios do empreendimento está o cantor Zezé de Camargo, como se vê, mesmo quem não é do ramo quer aproveitar o ‘boom imobiliário’.

Um novo apartheid na região

Ao nosso ver a praia do Preá caminha para ser um enclave dos muito ricos, criando um apartheid, algo já comum no litoral do Estado, como mostra o trabalho Turismo E Especulação Imobiliária No Litoral do Ceará, de autoria de Luzia Neide Menezes Teixeira Coriolano, e Luciana Maciel Barbosa.

Município de Acaraú também sofre com a especulação.

‘Com a valorização de espaços litorâneos forma-se um enclave em Aquiraz (grifo nosso), município pobre, pela iniciativa privada, poder público e especuladores que fazem do Porto das Dunas praia seletiva, em função do poder aquisitivo dos consumidores. Assim, o lugar tem marcante particularidade: espaço de luxo, conforto, requinte e especulação’.

Aumento do custo de vida, e a supervalorização dos terrenos

Outra questão que fugiu às previsões da ‘cidade planejada’ foi o aumento do custo de vida, e a supervalorização dos terrenos. Em seguida aos milionários aportes, o custo de vida subiu proporcionalmente, e o valor das terras, mais ainda. É a lei da procura e da oferta se impondo.

A Área de Proteção Ambiental foi criada para ‘proteger’ a linda lagoa cercada por mata nativa. Ao mesmo tempo, o empresário Giorgio Bonelli que já construiu um imenso Beach Club nas margens, quer ainda outros 10 parques temáticos dentro da APA, um deles, um Jurassic Park.

Assim, hoje em Jeri são praticados preços de Milão e Paris. Conforme o Diário do Nordeste (2018), ‘adquirir um imóvel na badalada Praia de Jeri é tarefa para aqueles endinheirados…o metro quadrado de um terreno para venda, pode variar entre R$ 1.300 a R$ 12 mil; preços praticados em cidades da Europa, como Paris e Milão, compara a corretora…

Turismo de massa, o pior inimigo do litoral

Só em 2023, 1 milhão e 400 mil turistas visitaram o Parna de Jericoacoara. Além disso, a vila de Jeri já enfrenta o pior dos problemas no litoral, o turismo de massa. Diariamente saem ônibus de excursões de Fortaleza com destino a Jeri, em breve estes turistas estarão também em Preá, não há como segurar.

Com tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, o processo de especulação é tão forte que invadiu outro Estado, o Piauí. Hoje, a até então pitoresca vila de pescadores de Cajueiro da Praia enfrenta os mesmos problemas de Jeri e Preá, com direito até às milícias. E, além disso, tornou a igreja católica, por meio da Diocese de Sobral, outra protagonista da especulação em Caiçara, distrito de Cruz.

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Essas ações e omissões, somadas às dezenas de crimes ambientais e talvez a centenas de novas obras, tornam insustentável o discurso de “planejamento” e “sustentabilidade”. Insistir nesse caminho é perpetuar o “greenwashing”, ou seja, a Mentira Verde.

Giorgio Bonelli, o segundo grande investidor da região

Entre os projetos de Giorgio Bonelli destaca-se o Boneville Lagoa Esmeralda. Fundador da Bonelli Brasil, Giorgio se define como um visionário comprometido em ‘promover desenvolvimento social e cultural’ por meio de empreendimentos que integrem, de forma sustentável’, o homem e a natureza. Para ele, o Brasil vive seu momento de destaque, e o Ceará é o protagonista.

O Beach Club criado por Giorgio Bonelli dentro da APA da Lagoa Jijoca. Afinal, a APA veio para ‘proteger’, ou para ceder sua paisagem para hotéis, condomínios, clubes, e que tais?

Interessante notar as coincidências com o site do projeto Carnaúba. Além do uso frequente do termo “sustentável”, os nomes seguem um padrão com termos em língua estrangeira: “Boneville” Lagoa Esmeralda, Carnaúba “Wind House”, Alchymist Beach Club, entre outros.

Implicância com nomes estrangeiros, ou complexo vira-latas?

Particularmente, tenho profunda implicância com essa moda que se espalha pelo litoral. Já afirmei diversas vezes que considero esses nomes uma agressão aos costumes regionais. Além disso, são quase sempre sinônimos de especulação imobiliária, independentemente da intenção dos proprietários. Um exemplo é o bairro/praia Jurerê Internacional, em Santa Catarina, ‘planejado’ por ninguém menos que Oscar Niemeyer, em 1957, e que se tornou símbolo desse fenômeno.

A linda lagoa Jijoca já começa a perder suas margens para investimentos turísticos como este de Giorgio Bonelli. Nossas fontes disseram que as margens já estão todas vendidas.

Conforme nos ensina a coluna de Moacir Pereira, ‘o projeto de Niemeyer ainda se impõe na atual Jurerê’. 

Pois bem, Jurerê Internacional é hoje sinônimo de especulação e ostentação. Lá coexistem lado a lado, os “beach clubs” El Divino e Cafe de La Musique; ‘resorts’  como o “Il Campanário Villaggio” , e o Jurerê Beach Village; eventos como a  feira de produtos orgânicos “Jurerê Organic” ou a ‘Floripa Convention’; bares como o ‘Devassa On Stage’, que era o antigo ‘Stage Music Park’; e tem até o Jurerê Open Shopping.

Em 2021, o Diário do Nordeste  informou que o MPF recorreu ao STJ para que o TRF5 analisasse o pedido de suspensão das licenças do Alchymist Beach Club, localizado em área de preservação ambiental próxima à Lagoa de Jijoca e ao Parque Nacional de Jericoacoara. O MPF apontou irregularidades nas licenças e iniciou uma ação civil pública em 2017 para proteger o parque.

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O Mar Sem Fim procurou contato com Bonelli

O Mar Sem Fim, após muito procurar um contato, conseguiu enviar uma mensagem através da página de Bonelli no FaceBook. Pedimos uma entrevista.  Bonelli respondeu que chegaria ‘ao Ceará no dia seguinte’, e que não haveria problema em falar conosco.

Depois, por mais que enviássemos novas mensagens, ele não mais respondeu. Acredito que teve conhecimento das matérias já publicadas sobre a especulação, e preferiu o silêncio.

APA da Lagoa Jijoca

Giorgio Bonelli investiu pesado dentro da APA da Lagoa Jijoca, área de proteção ambiental criada para preservar uma bela lagoa cercada por mata nativa. Entre seus empreendimentos estão hotéis e beach clubs. No entanto, seus projetos sempre enfrentaram contestação dos moradores, que questionam o impacto ambiental e apontam possíveis irregularidades nas licenças obtidas.

‘Às vezes, falam sem saber’

Em 2018, Bonelli desabafou ao jornal O Povo: ‘às vezes, falam sem saber. Eu falei do meu projeto com o prefeito, obviamente, e falei com o órgão que me disseram ser o competente, que era a Semace. Mas, depois, disseram que não era a Semace. Era o Ibama, que deu um parecer para interpelar. A prefeitura gostava muito desse empreendimento porque eu disse que gostaria de fazer uma escola hoteleira’.

Mais dunas ocupadas, e dá-lhe concreto armado, desta vez na praia de Bitupitá, uma das últimas antes da fronteira com o Piauí.

As prefeituras adoram projetos

Por mais que sejam irregulares, normalmente as prefeituras adoram projetos no município porque trarão mais recursos. Assim, costumam aprovar seja o que for. Na sequência da resposta acima, Bonelli acrescentou:

‘Se você vai fazer um hotel de alto padrão, precisa pessoas mais qualificadas. E lá tem muitas pessoas inteligentes e gentis, mas infelizmente, não tem uma que possa atender um cliente que fale inglês (grifos nossos). Eu teria que ser um grande idiota para comprar um terreno num lugar maravilhoso e destruir o lugar. Eu sou o primeiro que tem esse interesse em cuidar’.

A resposta é emblemática, e mostra o que quase sempre acontece. Os nativos são chamados para a construção civil, e ponto final.Não tem uma (pessoa) que possa atender um cliente que fale inglês’.

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Mais uma casa de um nativo em uma das vilas de Barroquinha, no caminho até Bitupitá. Não estamos dizendo que todas as casas são como esta, o padrão em Camocim é de nível alto, mas  há muitas casas paupérrimas pelos municípios atingidos pela especulação.
Mais uma casa das vilas de Barroquinha.

Ceará, campeão em degradação ambiental

Tantas ‘colheres-de-chá’ para os empreendedores já geraram prejuízos ambientais comprovados. Conforme a SOS Mata Atlântica, ‘o Ceará é a unidade da federação que mais degradou a área de restinga em 2022 e 2023. O Estado é líder na supressão dessa vegetação costeira, presente principalmente em dunas, pelo menos desde 2017’

Por fim, informa O Povo, ‘outras dez cidades do Ceará aparecem na lista de municípios do Brasil com maior degradação de área de restinga. São elas: Aquiraz (87 ha), Acaraú (45 ha), Paracuru (20 ha), Paraipaba (19 ha), Jijoca de Jericoacoara (19 ha), Cruz (19 ha), Caucaia (16 ha), Camocim (9 ha), Itarema (9 ha), Bela Cruz (4 ha)’.

Quem perde, e quem ganha com isso? Em primeiro lugar, perde a população, perde o Estado que terá que reparar os danos da erosão nas praias, e perdem os nativos, os antigos donos da terras; por fim, perde a linda paisagem, banalizada, transformada numa Miami qualquer.

Primeiro, hotéis, bares e restaurantes fazem o que é proibido, avançam suas construções para a praia. Depois vem a erosão, como mostra a imagem, e o custo é dividido por todos, quem fez errado, e quem não fez.

A piora com o aquecimento global

É importante salientar que o processo que agora ataca o Ceará e o Piauí, com uma fúria nunca antes vista, leva no bojo os ecossistemas mais importantes, aqueles que previnem a erosão, e protegem a linha da costa. Entre eles, as praias, restingas, manguezais e dunas, todos APPs, com ocupação  proibida.

O que disse a Semace sobre fiscalização ambiental

Conversamos com Carolina Braga Dias, Diretora de Fiscalização da Semace.

‘Nós temos conhecimento deste processo, em todo o litoral do Ceará. No lado leste, que tem um processo de consolidação há mais tempo, hoje lidamos com construções já feitas, enquanto no litoral oeste lidamos com um processo que está se iniciando. A especulação se materializa com a colocação de cercas, e placas de vende-se’.

‘A legislação ambiental configura o cercamento de áreas como atividade de baixo impacto’

‘Quando nos deparamos com um processo destes, de cercamento de áreas, a legislação ambiental configura atividade de baixo impacto. Não é uma irregularidade em si, do ponto de vista ambiental’.

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‘Assim, temos um problema do ponto de vista patrimonial, e a grande maioria acontece nos Terrenos de Marinha, patrimônio da União. Quando vemos apenas as cercas, não temos muito o que fazer, orientamos e encaminhamos o caso para a Superintendência do Patrimônio  da União’.

‘Nosso corpo de fiscalização é baseado em Fortaleza, então, trabalhamos por meio de denúncias e operação programadas, as Operações de Fiscalização Ambiental. A quantidade de denúncias hoje é tão grande que priorizamos o atendimento e programamos as atividades de fiscalização. Mas entendemos que elas não têm surtido os efeitos que gostaríamos. A atuação das pessoas (grileiros) é muito mais intensa’.

Ceará aumentou o poder de polícia incluindo o Batalhão de Polícia de Meio Ambiente

‘Em 2021, tomando conhecimento disso o Ceará aumentou o poder de polícia incluindo o Batalhão de Polícia de Meio Ambiente. Mas a ação dessa gente (grileiros) é muito rápida. Eles cercam num dia e no outro já estão construindo. E, uma vez que se consolide a residência você só pode fazer a demolição com via judicial que é muito mais demorado’.

Insisti que fotografei e gravei inúmeros crimes ambientais, com perda de mangues, restingas, dunas niveladas, avanços sobre a praia, etc. Contei dos condomínios em campos de dunas e já com unidades vendidas, ou as lagoas intermitentes que foram aterradas. E questionei: Isso não é fator suficiente para vocês irem reprimir?

‘Em 2024 atendemos aproximadamente mil ocorrências’

‘Perfeitamente, tanto é que fomos. Só em 2024 atendemos aproximadamente mil ocorrências. Significa dizer que a ida ao local é um passo. Ao chegar, precisamos de duas situações para aplicar alguma medida: materialidade, e o responsável, e este é o mais difícil. Muitas vezes a comunidade oculta informações’.

‘O problema maior é, uma vez identificado o autor, aplicar a autuação ao responsável. Outras vezes conseguimos identificar a pessoa. Abrimos um processo e aplicamos as medidas. Mas estas pessoas têm o direito a defesa, ao contraditório, etc. Isso leva um tempo até que se consolide uma decisão. Hoje um processo destes demora um ano’.

‘O objetivo não está sendo atingido’

‘Enquanto isso ocorre, o grileiro prossegue na intervenção, isso mostra que o objetivo não está sendo atingido. É preciso entender que os crimes ambientais são passíveis de três responsabilizações, a administrativa estadual, e além destas temos outros entes, a União através do Ibama, e os municípios. Dos 23 municípios costeiros, 21 comunicaram ao Conselho Estadual que fazem a fiscalização’.

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‘Temos também a reparação civil, a cargo do Ministério Público, que não prescreve. Se um cidadão cometeu infração, mesmo que demore e ele consolide a construção, mesmo que passe a prescrição, que são cinco anos, ele ainda é o responsável, portanto, buscar esta responsabilidade civil poderia melhorar a eficácia’. 

Trezentos fiscais ambientais

‘Temos 27 fiscais e, com o Batalhão da Polícia Ambiental, chegamos aos 300. Mas os municípios são fundamentais porque os crimes acontecem lá. Se eles receberem uma denúncia, em minutos estarão lá, enquanto nós temos que sair de Fortaleza e demoramos de 3 horas e meia, a 4 horas, para chegar, enquanto isso muito coisa acontece’.

Ponderei que a maioria dos prefeitos tem interesse na especulação, e contei que tentei falar com o prefeito de Cruz, o milionário Jonas Muniz, dezenas de vezes, mas não consegui retorno. Portanto, disse, não vejo como um município possa ajudar, falta vontade, simples assim. É por isso que o Ceará tornou-se campeão em degradação ambiental de restingas conforme a SOS Mata Atlântica. E isso não volta mais, acabou. E mais uma vez o Estado foi incapaz de evitar a degradação, e assim vai continuar enquanto dependermos das prefeituras.

É, você descreveu perfeitamente. Estou na Semace há 14 anos, e a pressão é muito forte, muito mesmo. Eu entendo que deve haver fortalecimento dos órgãos de fiscalização em todos os níveis. O que você está nos cobrando é correto. Por isso digo que é preciso um acompanhamento maior. Alguns municípios se esforçam para fazer este controle, outros não. Para aqueles que nos procuram estamos sempre abertos para fazer uma parceria para tentar fortalecer a repressão’.

APA Lagoa da Jijoca

Nós tentamos conversar com o prefeito de Cruz, Jonas Muniz, tido como o maior dono de terrenos no Preá e entorno, além da APA ocupar parte do município (outra parte pertence a Jericoacoara). Deixamos dezenas de recados, mas não obtivemos resposta. Também pedimos à Mazé Farias Cruz, secretária de Meio Ambiente. Em 11 de novembro iniciamos uma conversa via WhatsApp. Mas ela sempre pedia mais uma semana, mais uma…até que percebi que Mazé ‘não pode dar entrevista’.

Muniz é o político mais rico do Ceará, em sua declaração de bens constavam quase 78 milhões de reais. E, segundo o portal UOL, em matéria sobre as eleições 2024, deste total, Muniz declarou guardar em casa R$ 17 milhões em espécie na data de 31 de dezembro de 2019. Desde que o município foi emancipado, em 1985, Muniz já foi prefeito seis vezes.

Os investimentos de Giorgio Bonelli

Apesar de sabermos que a responsabilidade pelo licenciamento não era do Estado, mas do município, conversei com Carolina Braga Dias, Diretora de Fiscalização da Semace.

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Comentei sobre os investimentos de Giorgio Bonelli, dentro de uma área de proteção ambiental, onde ele tem vários empreendimentos. Lembrei que Bonelli já é conhecido do MP por ‘fracionar’ o licenciamento ambiental. Ainda assim, sua página do FaceBook o mostra ao lado de caciques políticos como Ciro Gomes ou Elmano de Freitas. Ele foi até mesmo ‘homenageado’ na Assembleia Legislativa do Ceará. Como uma pessoa assim consegue licenciamento para obra de grande porte dentro de uma APA?

‘Este caso repercutiu muito aqui dois anos atrás. Na época que estivemos fiscalizando ele foi autuado, teve embargo da área e até uma Ação Civil Pública, movida pelo Ministério Público Federal, isto foi em 2017, 2018. O fato é que, depois disso, o licenciamento passou a ser feito pelos municípios. E, sem entrar no mérito, o ente municipal licenciou o empreendimento’.

‘Quanto à mudança de categoria, de rural para urbana, basta olhar para ver que é rural, mas a competência de legislar sobre isso é do ente municipal. Porém, quando a área é rural, o entorno da lagoa é protegido em 100 metros, de todas as margens; e quando é urbana, a proteção é menor, 30 metros’.

Evidente falta de vontade política do Governo de Estado

Ante estas respostas, ponderei que há evidente falta de vontade política do governo Elmano de Freitas. Fica a impressão de que os assuntos, crimes ambientais, e problemas sociais, não estão em seu radar. Mesmo com as dificuldade da legislação, ou a passagem do licenciamento do Estado para município, se houvesse vontade política a farra poderia acabar. Mas, pelo visto, os crimes ambientais aumentarão conforme a especulação avança. Resta saber a quem mais ela interessa, além dos empreendedores que já estão faturando.

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