Baleias dentadas são alvos de tiros de armas de fogo por alguns pescadores industriais
Há muitas coisas estranhas acontecendo na pesca internacional que quase não chegam a estas plagas. Nem por isso devemos deixar de divulgá-las. Ao contrário. É preciso que o público interno saiba o que acontece pelos mares do mundo. Não faz muito tempo que divulgamos, para espanto da maioria, que pescadores da América do Sul, possivelmente brasileiros do Espírito Santo, cortam o bico de albatrozes que se atrevem a roubar o pescado de suas linhas, e os devolvem ao mar para morrerem de fome. Agora, repercutimos que baleias dentadas, qualquer baleia que se alimente com dentes em vez de barbatanas, como cachalotes, baleias piloto e orcas, se tornaram alvos de tiros de armas de fogo em pescarias internacionais.
Tiros de armas de fogo em algumas espécies de baleias
A matéria é do pescador e jornalista Nick Rahaim, e foi publicada no hakaimagazine.com em março de 2022. Fizemos um breve resumo. Nick era um dos pescadores em um barco de pesca comercial no oeste do Golfo do Alasca. Passamos a palavra: ‘senti o baque repentino de um revólver reverberar em meu peito’.
‘Eu me virei quando um colega de tripulação disparou mais balas; seguiu-se uma rodada de chumbo grosso, de uma espingarda carregada pelo meu capitão (um ato ilegal que pode levar a uma multa alta e um ano de prisão nos Estados Unidos)’.
‘Eu sabia que a raiva deles estava crescendo à medida que os cachalotes comiam nossa pesca (o sablefish), mas não esperava que eles desabafassem suas frustrações com munição real. Olhei para fora e vi um cachalote subir à superfície em busca de ar a cerca de 20 metros de distância, aparentemente imperturbável pelo fogo pesado’.
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Como no macabro caso dos albatrozes encontrados mortos sem parte do bico em praias atlânticas da América do Sul, os pescadores usavam o espinhel.
Imensas linhas com às vezes mais de 40 km de extensão, com milhares de anzóis em busca do sablefish, peixe-carvão-do-pacífico da família Anoplopomatidae (habita fundos marinhos lodosos no Pacífico Norte, a profundidades entre os 300 e os 2.700 metros, e é uma espécie comercialmente importante no Japão).
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Nick Rahim: ‘Em vídeos feitos por pesquisadores ao longo dos anos, as baleias são surpreendentemente graciosas – gigantes pesando de 15 a 40 toneladas, mordendo suavemente sablefish de meio metro de comprimento fora dos anzóis’.
‘Às vezes, os cachalotes varrem a linha enquanto ela é puxada, deixando os anzóis correrem sobre os dentes inferiores, com o peixe saltando ao contato. Outras vezes, as baleias pegam uma linha esticada na boca e a puxam como uma corda de violão, tirando os peixes dos anzóis com a vibração’.
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“Nos últimos cinco a 10 anos, tornou-se um grande problema em cada vez mais pescas”, diz Paul Tixier, biólogo do Instituto Nacional de Pesquisa para o Desenvolvimento Sustentável da França, que escreveu dezenas de artigos sobre depredação com foco em cachalotes e orcas visando a marlonga da Patagônia nos oceanos do sul’.
‘No Golfo do Alasca, bem como na pesca com espinhel em todo o mundo, desde o Mar de Bering até a Antártida e águas tropicais, baleias dentadas estão aprendendo a ver os pescadores e seus equipamentos como fonte de uma refeição fácil’.
A pesca com espinhel e as capturas incidentais
Comportamento conhecido como ‘depredação’: ‘a maior história de pesca que quase ninguém conhece’
‘Os cientistas que pesquisam esse comportamento, conhecido como depredação, dizem que as baleias estão cada vez mais comendo capturas lucrativas (para os pescadores) imediatamente, em vez de forragear naturalmente. Não há uma maneira fácil de pará-las, e o comportamento está se espalhando pela cultura das baleias. A propensão das baleias para peixes fisgados pode ser a maior história de pesca que quase ninguém conhece’.
‘Tubarões, focas e leões marinhos também são conhecidos por predadores, mas as baleias causam os maiores problemas para a pesca com espinhel’.
Andrew Read, diretor do Duke Marine Lab na Carolina do Norte, foi um dos primeiros na comunidade científica a chamar a atenção para o crescente conflito com um artigo de 2008, “ The Looming Crisis: Interactions Between Marine Mammals and Fisheries (em tradução livre, A crise iminente: interações entre mamíferos marinhos e pesca).”
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E, desde então, ele tem visto o problema aumentar. “Isso resulta em perdas econômicas significativas para os pescadores e muitas vezes em medidas de retaliação às baleias”, diz Read.
É provável que haja mais conflitos
À medida que as baleias e os pescadores se cruzam, é provável que haja mais conflitos. Os pescadores, muitos dos quais já sofrendo com a queda das taxas de captura e margens de lucro, correm o risco de perder ainda mais renda, e as baleias predadoras o risco de serem mortas a tiros ou fisgadas, o que poderia limitar seu crescimento populacional, segundo receio de alguns.
Baleias mortas no litoral do Brasil
Recentemente, o Mar Sem Fim publicou o post: Mapa global da migração de baleias expõe perigos crescentes, onde comentamos muitos perigos: o enredamento em artes de pesca mata 300.000 cetáceos por ano, a poluição plástica pode matar baleias que a confundem com comida e colisões com navios podem ser mortais.
Não adianta proteger as baleias apenas no lugar onde elas se reúnem?
Isso significa que não adianta proteger as baleias apenas no lugar onde elas se reúnem. É preciso protegê-las em toda a extensão dessa rota de migração, porque elas estão enfrentando ameaças o tempo todo, defendem pesquisadores.
Para se ter uma ideia, só no Brasil, e mesmo com o aumento de novas aparições no litoral em 2021, até o final do mês de julho 87 jubartes foram encontradas mortas em nosso litoral.
Convenhamos, é uma taxa alta.
Assista ao vídeo da NOAA sobre as espécies ameaçadas e como mitigar o problema
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As baleias dentadas
Nick conta que outros colegas de equipe e amigos da indústria relataram histórias semelhantes de retaliação, mas como têm sérias consequências, o assunto raramente é falado. ‘Perder dinheiro e tempo é frustrante, mas a maioria dos pescadores que conheço aceitam de má vontade a depredação como um custo para fazer negócios no ma’r.
A pesca com espinhel e a recuperação do número de baleias
Na década de 1990, o uso do espinhel explodiu na pesca em todo o mundo, assim como as populações de muitas espécies de baleias começaram a se recuperar de um século de abate e muitos estoques de peixes começaram a mostrar sinais de sobrepesca.
Uma das razões para o aumento foi que, a partir de 1992, a Assembleia Geral das Nações Unidas proibiu redes de deriva com mais de 2,5 quilômetros em alto mar por causa de suas altas taxas de captura incidental e morte de tartarugas marinhas e cetáceos.
Nick diz que, enquanto os cachalotes estão no centro do conflito na pesca de sablefish do Golfo do Alasca, são as orcas que causam mais problemas para as pessoas que capturam o sablefish nas Ilhas Aleutas e no Mar de Bering.
Estado da população do sablefish
De acordo com o site da www.fishwatch.gov, ‘Existem dois estoques de sablefish: Mar de Bering Oriental / Ilhas Aleutas / Golfo do Alasca, e costa do Pacífico. De acordo com as avaliações de estoque mais recentes, o primeiro estoque não sofre sobrepesca (avaliação = de 2020) e não está sujeito à sobrepesca com base nos dados de captura de 2020.
E, sobre o outro, informa a autarquia: ‘O estoque da costa do Pacífico não sofre sobrepesca (avaliação 2019) e não está sujeito à sobrepesca com base nos dados de captura de 2018’.
Pesca de sablefish financia pesquisa sobre sustentabilidade da pescaria
Em algumas questões os norte-americanos são especiais. Nas pesquisas, por exemplo. O site da NOAA, agência governamental para tudo que se relaciona ao espaço marítimo, informa que ao estudarem a pesca do sablefish ‘realizamos uma pesquisa anual de espinhel para saber mais sobre o sablefish e as principais espécies de peixes de fundo no Mar de Bering, nas Ilhas Aleutas e no Golfo do Alasca’.
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E informa ao consumidor do país quem paga a conta: ‘A pesquisa é realizada usando um navio de pesca fretado capaz de capturar e processar as capturas no mar, o que permite que o navio permaneça no mar por várias semanas entre as escalas dos portos. Um aspecto único desta pesquisa é que o navio fretado retém a maior parte das capturas depois que os dados científicos são registrados, o que financia as operações de pesquisa’.
Não é especial?
O atum e espadarte como alvo das baleias dentadas
As orcas e as falsas orcas também têm como alvo a pesca de atum e espadarte no hemisfério sul, nas costas do Brasil, Uruguai e Argentina. Mais ao sul, em águas subantárticas, orcas e cachalotes têm como alvo a marlonga da Patagônia. Nas pescarias tropicais de atum do Oceano Pacífico, a falsa orca é muitas vezes a espécie mais provavelmente encontrada predando.
Pesca incidental e seus brutais resultados
Dificuldades para pescadores e cientistas
Uma das maiores dificuldades para pescadores e cientistas que esperam mitigar a depredação é que ainda há incerteza sobre por que as baleias optam por se alimentar dessa maneira.
“Os pontos ainda não estão totalmente conectados”, diz Jan Straley, investigador principal do Projeto de Prevenção de Cachalotes do Sudeste do Alasca (SEASWAP), com sede em Sitka, que pesquisou a depredação no Golfo do Alasca por cerca de duas décadas.
Enquanto isso, um estudo de 2012 da SEASWAP descobriu que os cachalotes que depredam o peixe sable no Golfo do Alasca consomem o mesmo número de calorias em apenas três horas do que se forrageando naturalmente por até 12 horas.
Nick relata: ‘Em uma viagem de pesca em que estive, encontramos cachalotes dormindo ao lado de nossas boias, aparentemente esperando que puxássemos o equipamento para que pudessem comer’.
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‘Se o som do motor de um barco pesqueiro está vindo de 55 quilômetros – uma natação de seis horas – um cachalote parece achar que vale a pena queimar as calorias para viajar até lá e predar’.
Baleias-piloto, um das espécies de baleias dentadas
Na pesca de espinhel pelágico do Atlântico, algo muito diferente está acontecendo – através da depredação, as baleias-piloto de barbatana curta estão encontrando uma fonte de alimento totalmente nova.
“As baleias-piloto não podem pescar atum; eles são muito rápidos”, diz Read. “Mas, por meio da depredação, elas fizeram algo notável e subiram um nível trófico – agora estão comendo sua concorrência.”
E, acrescentamos, as baleias-piloto são anualmente massacradas na Islândia devido a um ‘costume centenário‘.
Se os ecossistemas alterados pelas mudanças climáticas pressionarem para baixo as populações de lulas, as baleias-piloto de barbatanas curtas poderão procurar cada vez mais os barcos de pesca para se sustentar.
Preocupação com a sustentabilidade
A depredação ainda não colocou em risco a saúde dos estoques de peixes em questão, mas levou alguns gerentes de pesca a reduzir as cotas por preocupação com a sustentabilidade.
Depois de saber que os cachalotes comem cerca de 2,5 por cento da pesca total de sablefish no Alasca, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) reduziu a cota total para a pesca em um a dois por cento nos últimos anos, diz Dana Hanselman, diretora de divisão da NOAA Auke Bay Laboratories no sudeste do Alasca.
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Depredação nas ilhas Crozet e medidas mitigatórias, serão elas suficientes?
Nas Ilhas Crozet, um território subantártico francês no Oceano Índico, as orcas e cachalotes comem 30 por cento da captura total de marlonga, diz Tixier. Os gerentes de pesca franceses ajustaram a cota de acordo, permitindo que os pescadores pescassem 300 toneladas a menos em 2010 do que em 2009. Outras regiões onde a marlonga (conhecido como robalo chileno) é capturada fizeram o mesmo.
Percentagem nos lucros, o ganho dos pescadores
Embora os pescadores possam pescar sua quantidade alocada sob o sistema de cotas, perdemos a isca, a comida, o combustível e o tempo se prejudicados pela depredação. Os marinheiros dos barcos de pesca dos EUA geralmente ganham uma parte dos lucros da pesca líquida, geralmente entre um e 10 por cento. Sem lucro significa sem dinheiro.
Medidas mitigatórias nos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, a NOAA tenta limitar a mortalidade de baleias por espinhéis pelágicos de várias maneiras. No Havaí, isso inclui exigir que os pescadores usem certos equipamentos, como anzóis circulares fracos o suficiente para quebrar sob o peso de uma baleia; ter observadores a bordo para uma parte das viagens de pesca para monitorar a atividade; e implementação de encerramentos quando a taxa de capturas acessórias fatais exceder um limite estabelecido. Na costa atlântica, as medidas incluem limitar o comprimento dos palangres a 37 quilômetros.
O descaso com a vida marinha e o litoral
Sobre observadores a bordo (já houve alguns que ‘sumiram’ durante as pescarias) e outras práticas indecentes da pesca, como escravidão humana especialmente na Ásia, o Mar Sem Fim recomenda o livro do jornalista Ian Urbina, do New York Times, traduzido e publicado no Brasil.
O nome antecipa: “Oceanos Sem Lei“, da editora Intrínseca. A história das baleias dentadas se parecem a contos da carochinha perto das que ele conta no livro.
Também recomendamos o filme já comentado nestas páginas, Seaspiracy, um chocante, ainda que superficial, documentário que mostra a pesca nos oceanos (pode ser visto na NetFlix).
Mas nem por um minuto imagine que só pescadores industriais de alto-mar fazem sandices. Alguns dos ‘endeusados’, por certos pesquisadores, pescadores artesanais, também dão imensa contribuição.
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Para finalizar…a paisagem do litoral é destruída assim como ecossistemas marinhos
Depois de mais de 50 anos estudando a questão, pesquisando in loco ao longo de toda a costa brasileira, nada disso me surpreende. Esta é a realidade em que vivemos.
Surpreendente mesmo, é o estupro praticado no litoral do Brasil por aqueles que conseguiram estudar, crescer na vida, e passar às classes média, alta, e os ricos.
Grande parte, ao comprar uma casa de segunda residência, muitas vezes a constroem em cima dos mais importantes ecossistemas marinhos como manguezais, restingas, dunas, falésias, e até costões. Todos ‘protegidos’ pela legislação ambiental brasileira.
Especulação imobiliária
O mesmo fazem alguns empreendedores e a indústria da construção civl ‘amparados’ pela especulação imobiliária ao construírem hotéis, marinas, resorts, condomínios, e prédios cada vez mais altos e mais perto do mar, nestes mesmos locais destruindo de vez aquilo que os atraiu: a incrível beleza natural e a ‘natureza’ no litoral brasileiro.
Um ‘puxadinho’ sem graça e banal
Enquanto isso nosso litoral vai aos poucos se transformando ‘num puxadinho’ sem graça e banal, espécie de ‘cortiço’ de ricos que não se importam que a altura inconcebível de alguns prédios roubem a insolação de suas praias preferidas para o lazer (?) como é o caso do Balneário de Camboriú, em Santa Catarina, ou a ‘ex-pérola do Atlântico’, o Guarujá, em São Paulo.
Locais de grande beleza cênica como o litoral Santa Catarina; Ubatuba, Ilhabela e São Sebastião, em São Paulo; Angra dos Reis e Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro; e muitas das mais belas praias do Nordeste, são destruídas sem piedade, muito menos culpa, por aqueles que gostam de ‘usufruir’ os prazeres da zona costeira.
Muitas das construções não respeitam as leis de uso e ocupação do solo. Os turistas querem vista para o mar, as ‘casas pé na areia’ são as mais valorizadas. É forçoso ter uma, custe o que custar. Mesmo que isto possa destruir, via a erosão, as próprias residências como ocorre em mais da metade dos quase 8 mil km da costa de Pindorama.
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Empoderação da especulação imobiliária
Mas, prepare-se para o pior. Em fevereiro de 2022 a Câmara dos Deputados aprovou proposta de emenda à Constituição que repassa a Estados e municípios a propriedade, sem ônus, dos terrenos de marinha que hoje pertencem à União. É a empoderação definitiva da especulação no litoral.
E, apesar de tantas evidências, quase ninguém se comove com o que acontece no litoral onde começa a cadeia vida marinha de 90% das espécies.
Não entendem que, sem pressão da opinião púbica, o deus-dará tende a se perpetuar.
(Para ler na íntegra a matéria de Nick Rahaim, clique neste link).
Imagem de abertura: Audun Rikardsen.
Fontes: https://hakaimagazine.com/features/clever-whales-and-the-violent-fight-for-fish-on-the-line/; https://www.fisheries.noaa.gov/alaska/science-data/alaska-sablefish-fisheries-and-assessment.