❯❯ Acessar versão original

Alonso Irineu Goes, um navegador sem igual, conheça

Alonso Irineu Goes, um navegador sem igual

No inicio do mês de maio de 2015 eu estava na foz do São Francisco gravando programas para a série sobre  as UCs federais marinhas. Pela manhã, bem cedinho, recebi uma ligação. Meu grande companheiro, Mestre do mares, Alonso Irineu Goes partia pra sua última viagem.

Foi um choque apesar de eu saber que sua saúde estava precária. No meio daquele cenário deslumbrante, que tanto gostávamos, relembrei nossas navegadas pela costa brasileira, argentina, chilena e na Antártica.

Na Península Vales Alonso se encantou com as baleias.

 

Alonso Irineu Goes, navegando pela costa brasileira

Foram mais de 40 mil milhas sem um único acidente. Obra do Mestre. Nunca conheci alguém que gostasse tanto do mar. Aquele era o habitat natural do Alonso. Ali ele se sentia pleno, completo, feliz.

Atol das Rocas

Fosse tempo bom, ou ruim, ele estava em seu elemento natural. Ele não era apenas um homem do mar. Era um homem completo. Um excelente caráter, amigo, ótimo pai de família.

PUBLICIDADE

Um choque para os amigos

Minutos depois começaram as ligações dos amigos, todos derrubados, lamentando a perda: Paulina Chamorro, embargada, quase não conseguiu conversar. Fernando Cerdeira, velejador que nos acompanhou em algumas etapas, com voz cavernosa estava desolado.

Fernando Cerdeira, Rodrigo, Paulina e Alonso, quando encalhamos no rio Calçoene, Amapá, em 2005.

Meu filho José, ‘criado’ por ele, ligou em seguida. Foi Alonso quem ensinou os segredos do mar ao meu pequeno, assim como ao mais velho, Luis. Eles eram amigos do Alonso apesar da diferença de idade. Ruy, meu irmão mais velho, preocupado, contou que tentou fazer uma homenagem ao Mestre, publicando um anúncio no jornal, mas não havia mais tempo.

As boas lembranças de Alonso Irineu Goes

Lembrei das várias regatas que fizemos, que ele tanto gostava. Foram três só para Trindade. Nunca vou esquecer de nossa chegada na primeira edição da Eldorado-Brasilis quando Alonso, embevecido pela beleza da ilha, entrou em êxtase. Aquele homem duro, severo, abriu um sorriso e não parava de exclamar: ‘Que beleza, meu Deus!, que beleza!’

Eu e Alonso navegando para o rio Oiapoque.

Da vela para o motor

Entrando na barra de Cananéia.

Vinte anos, e milhares de milhas depois, vendi o veleiro e passei para o trawler. Alonso não gostou. Sentia falta da vela.

Mar Sem Fim na Antártica com o Velho Lobo do Mar.

Relembro o que escrevi quando voltei da Antártica, depois do naufrágio do Mar Sem Fim, um duro golpe que sofremos juntos. Eu queria que o público que acompanhou nossa desventura soubesse quem era quem na tripulação.

Excelente cozinheiro, Alonso era um churrasqueiro de primeira!

Trabalhando com Alonso Irineu Goes

Trabalho com o Alonso há cerca de 20 anos. Somos mais que parceiros. O tempo nos transformou em amigos. No passado, quando navegava no veleiro Mar Sem Fim eu não tinha marinheiros. Viajava sozinho com conhecidos, ou namoradas. O tempo passou. Casei e tive filhos. Quando o mais velho nasceu, Luis (hoje com 16 anos e estudando no Canadá…), continuei a usar o barco com ele e minha ex-mulher, Gabriela. Meu filho tinha apenas seis meses de idade quando esteve a bordo pela primeira vez. Então percebi que não dava mais conta sozinho. Além da navegação, das noites em claro com mar ruim, eu tinha agora como companheiros mulher, e filho pequeno. Precisava ajuda. Recorri ao Plínio (amigo de longa data) de novo.

Nos canais da Patagônia.

Eu queria “um cara do ramo”

Expliquei a situação e pedi sugestões. Eu queria “um marinheiro do ramo”, que trouxesse segurança à família. Não demorou pra me apresentar  Alonso. Marinheiro raçudo, Catarina, ex-pescador, ex- mestre em barcos de pesca, e com um belo currículo na vela. Logo depois nasceu meu segundo filho, José, que também freqüentou o barco desde bebê.

Em San Blas, costa argentina, a caminho da Antárttica.

Com as crianças descobri uma nova faceta do Alonso Irineu Goes: a candura

…o carinho, que ele quase nunca consegue demonstrar aos adultos flui com naturalidade para os mais novos. É impressionante como trata os pequenos com gosto, tomando conta, divertindo, mostrando as primeiras regras do mar conforme vão crescendo, ensinando a pescar ou a pilotar motores de popa. Luis e, especialmente José, são amigos do Alonso, cresceram com ele ao redor.

Com Nádia Megonn chegando no Oiapoque.

Navegando pela costa brasileira

Quando fizemos a costa brasileira era comum eu ligar para meus filhos, do barco, pra matar as saudades. Naquela época eu ficava meio mês a bordo, meio em São Paulo. Era o tempo dos documentários para a TV Cultura. Depois de papear com o Luis contanto novidades e perguntados as dele, vinha o José :” Oi Pai, tudo bem, deixe eu falar com Alonso?”. Eu ficava sem graça. Comigo ele não queria papo, mas com o Alonso… E o cara é versátil. Um marinheiro só vira “lobo do mar” se tiver uma boa passagem pela vela. Alonso teve escola. E das boas.

Ele adorava pescar.

Escola no Wa Wa Too

Nos anos 70, quando Fernando Nabuco montou uma tripulação para correr regatas internacionais no legendário Wa Wa Too, Alonso fazia parte do grupo. Entre outras ele participou da famosa Admiral’s Cup, organizada pelo Royal Ocean Racing Club, da Inglaterra, uma espécie de campeonato mundial, não oficial, de veleiros de oceano. Outra regata emblemática era a Bermuda’s Race, uma competição bi-anual que existe desde 1906. Participando de uma delas o Wa Wa Too pegou um rabo de furacão. Durante vários dias navegaram em árvore seca (sem nenhuma vela) com ventos de 60, 70 nós e mais, fazendo 8, 10 milhas de velocidade enquanto esperavam o tempo melhorar.  Juntos fizemos mais de 40 mil milhas pelo litoral do Brasil. Como conto no livro O Brasil Visto do Mar Sem Fim (editora Terceiro Nome), Alonso é indispensável.

Alonso irineu Goes é daqueles que enxerga o vento

Ele é daqueles que “enxerga o vento” quando ninguém o vê, e “lê o mar”. Me ensinou demais. Devo muito, mas muito, ao Alonso. Ele está na casa dos sessenta. Para quem não é íntimo, se mostra reservado. Às vezes até carrancudo. Mas é fachada. Construída não sei por quê. Por trás da máscara está uma pessoa emotiva, amorosa. Um ótimo caráter. Excelente profissional, amigo verdadeiro, e o melhor cozinheiro entre os barcos que já naveguei. Opinião partilhada por todos que viajaram com ele.  No passado, quando fiz a costa brasileira de veleiro por dois anos, para os documentários da Cultura, foi o Alonso quem morou a bordo. Ele adorava o velho Marzão e seus dois mastros. Não gostou quando passei pro motor. Brigou comigo. Ficou triste de perder a vela, as regatas em Ilhabela, ou as várias Recife-Noronha que fizemos.

Na baía de Guanabara.

Participando da eldorado-brasilis

Foi com ele que participei da Eldorado-Brasilis, de Vitória no Espírito Santo, para a ilha de Trindade, 600 milhas ao largo. Que bela regata era aquela! Cinco a seis dias de mar e vento só pra chegar. Acho que fizemos três delas. O homem virava um bicho! Não dormia, velejava o tempo todo, cozinhava mesmo com barco adernado e jogando. Valia por dez.

PUBLICIDADE

Navegando nos furos da Amazônia.

Desta vez (na viagem do naufrágio) ele não se entusiasmou com a Antártica. Quando liguei pra avisá-lo percebi algo estranho, ele não queria ir… um sexto sentido no ar. Insisti e ele não me abandonou. O resto se sabe.

Num fiorde nos canais da Patagônia.

O que não contei desta personalidade marcante é o grande amor pelos barcos, e à profissão. Bonito de ver.

Emocionado, Alonso é homenageado pelo Capitão de Fragata Eduardo Rubilar Mancila antes de abandonarmos a ilha Rei George.

Não queria abandonar o Mar Sem Fim em Fildes. Tive que falar grosso com ele. Praticamente exigi que abandonasse o barco junto conosco.

Plínio Romeiro, Alonso, um dos imprescindíveis chilenos, e eu, pouco depois do naufrágio.

Na noite posterior ao naufrágio não conseguiu dormir. Estávamos no mesmo beliche. De cima pude ouvir, a noite toda, um choro abafado, sentido. De quem não se conforma em abandonar um barco.

Provocando Fernando Cerdeira, Amazônia.

Um grande abraço, meu amigo. Faço questão de tornar pública minha admiração, agradecimento, e respeito. Você sempre foi, e continuará sendo, imprescindível. O Mar Sem Fim está órfão.

Meus sentimentos à toda família.

Conheça o navegador brasileiro que usa a mão como sextante.

Sair da versão mobile