A saga de Ernest Shackleton nos mares austrais
Todo mundo já sabe: o Endurance foi encontrado no fundo do mar de Weddell, a 3 mil metros de profundidade, após apenas três semanas de busca. Mas será que conhecem a verdadeira saga de Ernest Shackleton ? Sua fama nasceu quando atravessou o temido mar austral em um bote, da ilha Elefante até a Geórgia do Sul, em busca de socorro para sua tripulação. Nunca antes alguém fez uma travessia tão difícil — e sobreviveu. Coragem, persistência e lealdade à tripulação fizeram dele uma lenda.

O Endurance deixa Londres
O Endurance zarpou de Londres rumo à Geórgia do Sul. No comando, o capitão F. Worsley. Como imediato, o veterano Frank Wild. Shackleton sonhava alto: queria atravessar a pé a Antártica, passando pelo polo Sul. Seriam 2.900 quilômetros sobre o gelo. Uma jornada para entrar na história.
Um segundo navio, o Aurora, também fazia parte do plano. Comandado por Aeneas Mackintosh, levaria um grupo de apoio até o estreito de McMurdo, no lado oposto do continente. Eles seriam responsáveis por esperar e resgatar a equipe de Shackleton. Enquanto isso, o Endurance faria a travessia pelo mar de Weddell.
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Anos antes, a Inglaterra amargou uma derrota na corrida ao polo Sul. O norueguês Roald Amundsen chegou primeiro. Robert Scott, o inglês, perdeu — e morreu com três companheiros. Shackleton queria mudar essa história. Sonhava com a revanche britânica.
Embora nascido na Irlanda, em Kilkea, Shackleton cresceu na Inglaterra. Aos dez anos, sua família se mudou para Sydenham, no sul de Londres. Nos estudos, não se destacava. Achava as aulas da Fir Lodge Preparatory School entediantes. Mas a inquietação do menino já apontava para outros caminhos: os mares frios do sul.
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Inquietação na escola
A inquietação de Shackleton era tanta que, aos 16 anos, deixou a escola para ir ao mar. Não tinha dinheiro para estudar e se tornar cadete da Marinha Real. Restavam duas opções: um navio mercante-escola ou um aprendizado prático em um veleiro. Escolheu a terceira. Seu pai conseguiu uma vaga na North Western Shipping Company. E assim Shackleton embarcou no Hoghton Tower, um veleiro de velas quadradas.
Começava ali sua vida de aventuras pelos mares do mundo.
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Antes mesmo da guerra de 1914, Shackleton já era veterano da Antártica. Entre 1907 e 1909, liderou sua própria expedição a bordo do Ninrod . Chegou mais perto do polo Sul do que qualquer outro até então. Mas a corrida terminou com vitória dos noruegueses. A Inglaterra perdeu prestígio. Shackleton queria recuperá-lo. Para ele, a honra do Império estava em jogo.
A glória em jogo, e a experiência do ‘Boss’
A glória da Inglaterra e a experiência de Shackleton — o “Boss”, como era chamado pela tripulação — convenceram muitos a apoiar financeiramente a Expedição Transantártica Imperial. O nome, pomposo, refletia a confiança no sucesso.
Shackleton sabia dos riscos. Mas também sabia por que partia:
“Escolhi a vida, para mim e meus amigos… Acredito que é da nossa natureza explorar, buscar o desconhecido. O único fracasso verdadeiro seria não tentar.”
Doações para a Expedição Transantártica Imperial
O governo britânico deu 10 mil libras — cerca de 680 mil em valores de 2008. Mas isso não bastava. Com sua fama, Shackleton saiu em busca de mais apoio. E conseguiu.
Sir James Caird (nome do bote com que realizou a travessia), milionário escocês, doou 24 mil libras. O industrial Frank Dudley Docker deu outras 10 mil. Janet Stancomb-Wills, herdeira de uma fortuna do tabaco, contribuiu com um valor não revelado, mas generoso. Seus nomes, como o de Caird, entrariam para a história.
‘Buscam-se homens para viagem perigosa’
Em 1914, Shackleton publicou um anúncio direto nos jornais de Londres:
“Buscam-se homens para viagem perigosa. Salários baixos. Frio extremo. Longos meses de escuridão total. Perigo constante. Retorno ileso duvidoso. Honras e reconhecimento em caso de sucesso.”
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O texto, seco e honesto, atraiu milhares. Era o espírito da época — e da aventura que estava por vir.
Mais de cinco mil inscritos
A resposta foi imediata. Mais de 5.000 homens se candidataram após o anúncio nos jornais. Shackleton escolheu a dedo cada membro da tripulação. Queria gente resistente, leal e adaptável.
Mas então veio um baque: em 3 de agosto de 1914, véspera da partida, a Primeira Guerra Mundial estourou. O futuro da expedição ficou incerto.
Ordem para partir apesar da Guerra de 14
Ninguém imaginava que a Primeira Guerra Mundial duraria tanto. Achava-se que acabaria em poucos meses. E o Império Britânico não queria abrir mão de uma nova conquista de prestígio.
Assim, em 3 de agosto de 1914, o Endurance recebeu ordem para partir. A autorização veio de Winston Churchill, então First Lord of the Admiralty.
Começava assim a saga de Ernest Shackleton nos mares austrais.
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A caminho da Geórgia do Sul, próspera estação baleeira
O Endurance seguiu rumo à Geórgia do Sul. Na época, a ilha era uma próspera base baleeira. Lá, o navio foi reabastecido e a tripulação descansou.
No dia 5 de dezembro, partiram em direção à baía de Vahsel, no mar de Weddell. Mas quanto mais avançavam rumo ao sul, mais gelo surgia no caminho. O progresso do barco ficou cada vez mais lento.
Sinistros sinais do gelo pelo caminho
Ignorando os sinistros sinais do gelo pelo caminho, ao entrarem no mar de Weddell perceberam condições críticas até que, a 19 de Janeiro de 1915, o Endurance ficou preso num banco. A expedição fora temporariamente interrompida. Medidas foram tomadas, como abrir o caminho a partir de picaretas.
Avanço desgastante e quase nenhum progresso
Cada milha exigia esforço extremo. O gelo fechava em torno do Endurance. Muito trabalho, pouca recompensa. Quase não havia progresso.
Em fevereiro, tudo piorou. O inverno antártico se aproximava rápido. O frio apertava. O mar congelava. Mas Shackleton não desistiu. Seguiu em frente, firme no comando.
Dois invernos seguidos na Antártica
Shackleton avaliou a situação. Conferiu as provisões. E decidiu esperar. Apostava que o gelo se soltaria com a chegada da primavera.
Lembrou do precedente: em 1898, o belga Adrien de Gerlache passou o inverno preso no gelo com a Expedição Bélgica. Quando o clima esquentou, o navio se libertou e voltou para casa.
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Shackleton esperava repetir a sorte. Mas o destino tinha outros planos.
A nova rotina de bordo
Manter o moral era vital. Shackleton sabia disso. Rapidamente, impôs uma rotina para enfrentar o inverno.
O Endurance virou abrigo. A tripulação se ocupava com tarefas diárias: caçar focas e pinguins, manter o navio limpo, cuidar dos cães de trenó. Também havia tempo para jogos na neve, partidas de futebol, leituras, estudos de fauna e meteorologia.
Disciplina, movimento e humor — a receita de Shackleton para manter todos sãos no coração do gelo.
Ocupação era o que não faltava. Ninguém sentiria tédio.
Começava a saga de Ernest Shackleton
Tudo seguia como planejado — até 24 de outubro. A água começou a invadir o porão. O gelo esmagava lentamente o casco do Endurance.
Dias depois, na posição 69° 5′ S, 51° 30′ W, Shackleton deu a ordem: “Abandonem o navio!”
Homens, provisões e equipamentos foram levados para acampamentos sobre o gelo.
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Em 21 de novembro de 1915, o Endurance afundou. A embarcação desapareceu sob as águas geladas do mar de Weddell.
A partir dali, começava de fato a maior epopeia de sobrevivência da história polar.
Este curto vídeo, da BBC, mostra as imagens finais do Endurance com imagens originais de Frank Hurley, o fotógrafo e cinegrafista da expedição
Dois meses à deriva numa placa de gelo
Entre os itens salvos estavam dois botes do Endurance. Um deles levava o nome de um dos maiores doadores: James Caird.
Por quase dois meses, Shackleton e seus homens viveram sobre uma placa de gelo à deriva. A esperança era que a banquisa os levasse até a ilha Paulet, a 400 km dali, onde haveria um depósito de provisões.
Mas os ventos e as correntes jogavam contra. Sem progresso e sem escolha, Shackleton decidiu: era hora de mudar de placa de gelo.
Em meados de março, o acampamento estava a apenas 97 km da ilha Paulet. Mas havia uma barreira de gelo no caminho. Intransponível. Não dava para seguir. Mesmo assim, Shackleton manteve a calma. E, mais uma vez, cuidou do moral da tropa.
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Então, no dia 9 de abril, a placa de gelo se partiu em duas. Não havia mais segurança para permanecer ali. Era hora de agir.
Shackleton ordenou que todos embarcassem nos botes salva-vidas. O destino: a terra mais próxima.
Mais de 490 dias serpenteando entre placas de gelo
Foram cinco dias duríssimos no mar. Homens exaustos, molhados, famintos. Navegavam entre placas de gelo, sob frio extremo e mar agitado.
Por fim, conseguiram. Desembarcaram na ilha Elefant, a mais isolada das Shetland do Sul. Estavam a 557 km do ponto onde o Endurance afundou.
Tinham passado mais de 490 dias à mercê do gelo. Agora, pela primeira vez, pisavam em terra firme.
A preocupação de Shackleton era tal que deu as suas luvas ao fotógrafo Frank Hurley, que as tinha perdido durante a viagem de barco; acabou por sofrer queimaduras provocadas pelo gelo nos seus dedos.
Ilha Elephant, a mais erma da região
Após alguns dias de descanso, sem remos nem tormenta, a realidade se impôs: a situação era grave. A ilha Elefant era o fim do mundo. Nenhum navio passava por ali.
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Só focas, leões-marinhos, pinguins e elefantes-marinhos habitavam aquelas praias desertas. Isolamento total. Shackleton sabia que ninguém viria resgatá-los.
Estreito de Drake, uma travessia épica
Sem jamais aceitar a derrota antes de esgotar todas as possibilidades, Ernest Shackleton toma a decisão mais ousada da expedição: enfrentar o Estreito de Drake, considerado o trecho de mar mais perigoso do planeta. A bordo do pequeno barco salva-vidas James Caird, adaptado às pressas pelo carpinteiro McNish, Shackleton parte com mais cinco homens rumo à Geórgia do Sul. Seriam mais de 1.300 quilômetros de mar revolto, ventos violentos, ondas de até 20 metros, frio cortante, e nenhuma margem para erro. Era a última chance de buscar socorro — ou morrer tentando.
Restava escolher quem faria parte da difícil travessia. Shackleton analisou as habilidades e o caráter de cada um de seus companheiros. Eles estavam juntos há muitos meses sob difíceis condições. Ele sabia com quem poderia contar. A escolha não foi tão difícil.
Frank Worsley, capitão do Endurance, faria navegação com o sextante; Tom Crean, que “implorou para ir “; dois marinheiros casca grossa, John Vincent e Timothy McCarthy; e o carpinteiro McNish. O James Caird foi abastecido para quatro semanas.
A partida do James Caird da ilha Elephant para a Geórgia do Sul distante 720 milhas
O James Caird partiu da ilha Elephant em 24 de abril de 1916. A missão: cruzar 720 milhas náuticas — quase 1.300 quilômetros — até a longínqua Geórgia do Sul. Nas duas semanas seguintes, os seis homens enfrentaram o pior que o mar pode oferecer. Tempestades implacáveis, ondas do tamanho de prédios, ventos cortantes, borrifos congelantes.
Molhados quase o tempo todo, tremendo de frio até nas poucas horas de descanso, seguiram adiante. Exaustos, famintos, em um barco improvisado e superlotado, eram guiados apenas por um sextante, coragem e pura obstinação. Estavam em um dos lugares mais inóspitos da Terra. E mesmo assim, continuavam.
Vendavais obrigam a um desvio de rota
Vendavais vindos do sudoeste obrigaram a tripulação a desviar da rota. Em vez da costa leste, habitada, foram empurrados para o lado mais selvagem e desabitado da Geórgia do Sul.
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O James Caird era agora um pequeno ponto em meio ao caos do mar, sacudido sem piedade. Mas então surgiram sinais de esperança: flutuando nas águas, algas marinhas. No céu cinzento, corvos marinhos em voo.
A mensagem era clara: terra à vista.
Pouco depois do meio-dia, os contornos gelados e montanhosos da Geórgia do Sul finalmente apareceram no horizonte. Haviam conseguido. Ou quase.
No dia 8 de maio, depois de duas semanas em alto-mar, a Geórgia do Sul estava ali — bem diante deles. Graças à impressionante precisão de Frank Worsley, haviam chegado perto da costa.
O pesadelo ainda não havia terminado
Ventos com força de furacão varriam o mar. As rajadas empurravam o James Caird contra as rochas. A cada minuto, a situação piorava. O pequeno barco balançava violentamente, prestes a ser esmagado.
Não podiam desembarcar. Não podiam recuar. Apenas resistir. Depois de horas angustiantes lutando contra o vendaval, Shackleton avistou uma estreita enseada na costa sudoeste da ilha. Era King Haakon Bay.
Encalhando na Geórgia do Sul
Com habilidade e nervos de aço, Worsley manobrou o James Caird pelas águas revoltas até encontrar abrigo. A pequena embarcação, já no limite, resistiu ao impacto das ondas e finalmente encalhou em segurança.
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Eles haviam tocado terra firme — pela primeira vez desde que deixaram a ilha Elephant, 16 dias antes.
Exaustos, molhados e famintos, os seis homens cambalearam até a margem rochosa. Haviam vencido o mar mais temido do planeta em um bote improvisado. Mas ainda estavam do lado errado da ilha. A estação baleeira, e a chance de resgate, ficava do outro lado — a mais de 30 quilômetros, separados por montanhas cobertas de neve e glaciares inexplorados.
E Shackleton sabia: era hora de seguir em frente.
Enfim, a Geórgia do Sul, 17 meses depois que o Endurance afundou
Encontrar aquela pequena ilha, perdida a centenas de milhas de distância, foi um feito tão extraordinário quanto cruzar o Estreito de Drake numa casquinha de noz.
Os homens estavam exaustos. Precisavam descansar, comer, se recuperar.
Enquanto isso, Shackleton já refletia sobre o próximo passo: como alcançar a estação baleeira em Stromness, do outro lado da ilha.
Diante da decisão entre contornar a ilha de barco ou atravessá-la a pé por geleiras inexploradas, Shackleton optou pela travessia por terra — um feito até então inédito. Como nem todos tinham condições físicas para o esforço, apenas os mais fortes seguiram: Frank Worsley e Tom Crean. Os outros três permaneceram na enseada, abrigados sob o casco do James Caird, puxado para terra, à espera do retorno do “Boss” com ajuda.
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Shackleton mal sabia que o que o esperava…
À sua frente, erguia-se um paredão de gelo colossal — íngreme, escorregadio, quase intransponível. Para alcançar a estação baleeira na costa norte da Geórgia do Sul, Shackleton, Frank Worsley e Tom Crean teriam que atravessar montanhas e geleiras jamais vencidas por ninguém.
E fariam isso sem mapa, sem barracas, sem saco de dormir. Apenas com coragem, um machado e 15 metros de corda.
Na manhã de 19 de maio, Shackleton, Worsley e Crean partiram rumo ao interior da Geórgia do Sul. O destino: Stromness.
Antes de sair, Shackleton deixou uma carta com Chippy McNish, o carpinteiro da expedição, que permaneceria em Peggotty Camp com Vincent e McCarthy. Era uma mensagem simples, mas carregada de gravidade — e esperança.
A travessia começava. Três homens contra um território desconhecido.
A carta de Shackleton antes da escalada na Geórgia do Sul
18 de maio de 1916
Geórgia do Sul
Senhor
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Estou prestes a tentar chegar a Husvik na costa leste desta ilha para aliviar nosso grupo. Estou deixando você no comando do grupo composto por Vincent, e McCarthy, onde permanecerão aqui até que o socorro chegue.
Você tem um amplo alimento com as focas, que pode complementar com pássaros e peixes, de acordo com sua habilidade. E ainda vai ficar com uma arma de cano duplo, 50 cartuchos – 40 a 50 rações de trenó Bovril, 25 a 30 biscoitos: 40 Streimer Nutfood.
Aqui fica todo o equipamento necessário para suportar a vida por tempo indeterminado em caso de meu não retorno. É melhor, depois que o inverno acabar, você navegar até a costa [norte]. O curso que estou fazendo em direção a Husvik é magnético.
Em seguida partiram.
Em vez de equipamentos de alpinismo, levaram alguns pedaços de cabos e um enxó
Sem crampons, cordas ou piquetas. Em vez de equipamentos de alpinismo, levaram apenas alguns pedaços de cabos do James Caird e, no lugar da tradicional piqueta, um enxó de carpinteiro improvisado.
Ao amanhecer, já no alto das montanhas, avistaram ao longe o brilho de um lago. Por um instante, pensaram estar próximos do destino. Mas logo veio a frustração: o mapa era impreciso. O que viam era Possession Bay. Haviam cortado a costa cedo demais. Estavam no lugar errado.
E tudo teria que começar de novo
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Geleiras e precipícios no trajeto
O litoral norte era traiçoeiro. Geleiras instáveis e precipícios abruptos tornavam impossível seguir a pé pela costa. Sem opção, os três homens recuaram, contrariados, rumo ao interior da ilha, avançando mais para sudeste.
No topo de mais uma montanha, não havia alternativas fáceis. A descida era arriscada, mas inevitável. Precisavam alcançar o fundo do vale antes do anoitecer.
A neblina começava a descer. A temperatura caía depressa. Se ficassem expostos naquela altitude durante a noite, estariam condenados.
Era agora ou nunca.
Sairiam do precipício e deslizariam para baixo
Tentaram primeiro cortar degraus no gelo. Um a um. Lentamente. Mas Shackleton logo viu que era inútil — perderiam tempo precioso, e a noite se aproximava rápido.
Foi então que sugeriu o impensável: sair do precipício e deslizar montanha abaixo.
Sem trenó, sem guia, sem garantias. Apenas uma corda enrolada, colocada sob os corpos como improviso.
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Lançaram-se encosta abaixo. A alta velocidade. O silêncio quebrado apenas pelo som do gelo sendo cortado. Esperavam despencar em uma fenda, ou se espatifar contra alguma rocha.
Mas, por milagre, “pousaram” em um banco de neve.
Tinham descido cerca de mil metros em dois ou três minutos. E, mais importante: haviam escapado da morte certa no topo gelado da montanha.
Estavam vivos. Ainda.
Exaustos e próximos do fim
Após o perigoso “trenó” improvisado, Shackleton, Worsley e Crean estavam física e emocionalmente esgotados, mas ainda longe de Stromness. A navegação pelo terreno desconhecido seguiu quase por intuição.
Horas depois, ao amanhecer, avistaram a Baía de Fortuna — sinal de que estavam próximos da estação. Apertaram as mãos em silêncio, aliviados.
Enquanto preparavam o café, ouviram ao longe o som de um apito. Às 7h em ponto, ele soou novamente — o primeiro som humano em mais de um ano.
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Em silêncio, iniciaram a descida rumo à salvação. Mas a encosta escolhida era íngreme demais, e mais uma vez tiveram que cortar degraus no gelo para seguir.
Chegada a Stromness
Ao se aproximarem da estação baleeira, Shackleton, Worsley e Crean tentaram se arrumar minimamente, conscientes da aparência selvagem após tantos meses. Mesmo assim, assustaram dois jovens ao chegarem, e o próprio gerente da estação, antigo conhecido, não os reconheceu de imediato.
Após relatarem sua incrível jornada, finalmente tomaram banho — algo que, segundo Worsley, já justificava tudo que haviam enfrentado. No dia seguinte, resgataram os três companheiros que ficaram com o James Caird. Agora, faltavam apenas os homens em Elephant Island.
Reinhold Messner, refaz o trajeto de Shackleton
Anos depois da lendária travessia, o montanhista Reinhold Messner — primeiro a escalar os 14 picos mais altos do mundo e a atingir o cume do Everest sem oxigênio suplementar — refaz o trajeto de Shackleton na Geórgia do Sul. Em um documentário, Messner recria a travessia para demonstrar a extrema dificuldade enfrentada pelo explorador e seus dois companheiros.
Depois de seguir a rota, Messner garantiu que o feito de Shackleton, sem experiência prévia ou equipamentos e ainda com roupas velhas, úmidas, pés e mãos quase desprotegidos e pouca comida, foi absolutamente extraordinário.
Acompanhe um grupo de alpinistas que repetiu o trajeto de Shackleton na Geórgia do Sul
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A ‘caminhada’ de Shackleton e seus dois companheiros não foi nada fácil. Entre outras, tiveram que atravessar glaciares que mais pareciam pirâmides de gelo cercadas por fendas profundas.
Tentativas frustradas e apoio em Punta Arenas
Shackleton tentou diversas vezes resgatar seus homens na ilha Elephant com um navio emprestado, mas foi repetidamente impedido pelo mar congelado e forçado a retornar.
Sem alternativas, ele, Worsley e Crean seguiram para Punta Arenas, no Chile, em busca de apoio. Lá, foram acolhidos com hospitalidade no palacete de Sara Brown, uma senhora rica e influente da região — ponto de partida para a próxima tentativa de resgate.
O Mar Sem Fim esteve no local onde hoje funciona o Hotel José Nogueira, em Punta Arenas. Ali, existe um charmoso bar em estilo inglês batizado Shackleton Bar.
Suas paredes são forradas com aquarelas belíssimas que retratam cada etapa da saga de Ernest Shackleton — do aprisionamento do Endurance ao reencontro no Palácio Sara Brown.
Sentei ali por um tempo. E tomei um par de gim-tônicas em sua homenagem.
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Pouco depois, Shackleton, Worsley e Crean deixaram Punta Arenas a bordo do rebocador chileno Yelcho.
Em agosto de 1916, após várias tentativas frustradas, finalmente conseguiram retornar à ilha Elephant.
No convés do Yelcho, sob comando chileno, o “Boss” reencontrou os 22 homens que havia deixado para trás. Todos estavam vivos. Nenhuma baixa.
Era o fim de uma das maiores sagas de sobrevivência da história.
O Palácio Sara Brown, atual Hotel José Nogueira
O James Caird em um museu de Londres
Este fantástico filme, com imagens antigas e outras refeitas, mostra a saga de Ernest Shackleton nos mares austrais
Imagem de abertura: IIustração da travessia épica do James Caird.
Fontes: https://www.pbs.org/wgbh/nova/shackletonexped/dispatches/20000413.html; https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60721784; https://nzaht.org/encourage/inspiring-explorers/crossing-south-georgia/#:~:text=In%20May%201916%2C%20Sir%20Ernest,of%20survival%20of%20all%20time.