A água de lastro de navios e a bioinvasão
Antes de tudo, é preciso entender o que é a água de lastro, usada por todos os navios. Ela serve para estabilizar a embarcação e garantir sua capacidade de manobra, especialmente quando o navio está sem carga ou com o peso variando ao longo da viagem, como acontece com o consumo de combustível durante a travessia de um oceano. Para compensar essa perda de peso, os navios enchem os tanques de lastro com água do mar. O problema começa quando descarregam essa água no porto de destino. Nesse processo, transportam organismos microscópicos do local de origem e os lançam em ecossistemas totalmente diferentes. Esse processo facilita a introdução de espécies invasoras — hoje, um dos maiores problemas ambientais ligados ao transporte marítimo.

O lastro em navios
Os navios sempre exigiram lastro para operar com sucesso e com segurança. Por milênios, os navios carregavam lastro sólido na forma de rochas, areia, telhas e muitos outros materiais pesados.
Por exemplo, os navios lusitanos que vinham ao Brasil desde o século 16, traziam lastro sólido em seus porões. Quem conhece São Luís, no Maranhão, há de ter reparado na lindas calçadas do centro antigo. Aquilo são ‘pedras de cantaria’ que vinham como lastro nas naus lusitanas.
Contudo, a partir da década de 1880, os navios usaram cada vez mais a água para lastro, evitando assim o carregamento demorado de materiais sólidos e instabilidades de embarcações perigosas resultantes da mudança de lastro sólido durante uma viagem.
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A água de lastro é particularmente negativa para a biodiversidade, já extremamente ameaçada pelo aquecimento do planeta. O volume de tráfego e comércio se expandiu muito nesse período, razão pela qual os efeitos da água de lastro só recentemente começaram a ser entendidos.
Para se ter ideia do perigo, e segundo o sensorex.com, estudos mostraram que a introdução de moluscos invasores nos EUA custa cerca de US$ 6 bilhões por ano. Note a cifra: seis bilhões de dólares ao ano!
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Para além disso, estudos realizados em vários países indicaram que muitas espécies de bactérias, plantas e animais podem sobreviver na água de lastro e sedimentos transportados em navios, mesmo depois de viagens de vários meses.
Alguns problemas provocados no Brasil
No Brasil temos ao menos três casos emblemáticos. O mais prejudicial foi a introdução do mexilhão-dourado no lago Guaíba em 1998, provavelmente por um navio oriundo da Ásia. De lá para cá, o mexilhão-dourado contaminou toda a América do Sul.
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A Itaipu empreende um programa que tem reduzido progressivamente a quantidade de larvas de mexilhão-dourado no reservatório da usina. O molusco é responsável pelo entupimento de encanamentos em equipamentos da hidrelétrica e também causa desequilíbrios ambientais.
A incômoda presença já foi detectada no Pantanal, no moribundo rio São Francisco, e agora ameaça até mesmo a Amazônia.
Do mesmo modo, outro caso é o do coral-sol natural dos Oceanos Índico e Pacífico que, ao que parece, veio parar aqui incrustado em plataforma de petróleo. Hoje, segundo o Instituto de Biodiversidade Marinha, há registros do coral-sol na Ilha do Arvoredo, em Santa Catarina; em Guarapari, no Espírito Santo; em Arraial do Cabo e nas Ilhas Cagarras, no Rio de Janeiro; em diversas ilhas do litoral paulista. Entre elas Vitória, Alcatrazes e Búzios.
Um terceiro, recentemente descoberto, é a introdução do mexilhão-verde, igualmente pela água de lastro.
80 mil navios pelos oceanos
A Bimco, maior organização de associação direta do mundo para armadores, afretadores, corretores de navios e agentes, estima que em 2021 existiam 74.505 navios de carga nos mares do planeta.
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Enquanto isso, o www.cruisemummy.co.uk que produz estatísticas de navios de cruzeiro, informa que em 2022 há 323 navios embalando turistas mares afora.
E apesar da enormidade destes números, a tendência é aumentar ainda mais já que cerca de 90% do comercio mundial é feito através de navios.
Além disso, de acordo com estimativas da IMO, Organização Marítima Mundial, uma agência da ONU, os navios transportam entre três e cinco bilhões de toneladas de água de lastro globalmente a cada ano.
Já o www.shipsbusiness.com diz que pelo menos 7.000 espécies diferentes são transportadas em tanques de lastro de navios em todo o mundo. Portanto, a água de lastro não tratada, quando lançada em uma área litorânea, pode destruir o ecossistema local.
Mas, então, não há nada a fazer sobre o problema? Sim, há o…
Sistema de Gerenciamento de Água de Lastro
Quem explica é o Ships business: O objetivo é minimizar a transferência de organismos aquáticos nocivos não indígenas e patógenos de uma área para outra através do sistema de água de lastro do navio. As espécies marinhas invasoras são uma das quatro maiores ameaças aos oceanos do mundo.
A mesma fonte diz ainda que, Ao contrário de outras formas de poluição marinha, como derramamentos de óleo, onde ações de limpeza podem minimizar os impactos, as espécies marinhas invasoras são muitas vezes irreversíveis.
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A mesma fonte revela que cada embarcação deve ter um “Plano de Gerenciamento de Água de Lastro” específico. Este Plano dá orientação geral e requer informações adicionais do navio para levar em consideração os arranjos exclusivos.
Ou seja, existem formas de tratar a água de lastro com outros produtos que diminuem a possibilidade da bioinvasão quando bem feitas.
Outra maneira, seria despejar a água de lastro que veio de determinado continente ainda em alto-mar, onde a grande maioria de invasores provavelmente morreria. Acontece que tudo isto custa caro. Ou seja, encarece ainda mais os fretes. Por isso, e por uma regulamentação frouxa como já mostramos, grande parte dos navios ignoram as recomendações.
Primeiros sinais da introdução de uma espécie invasiva
Até mesmo o site da IMO reconhece o problema. E explica quando começou. ‘Os cientistas reconheceram os primeiros sinais da introdução de uma espécie exótica após uma ocorrência em massa da alga fitoplâncton asiática Odontella (Biddulphia sinensis) no Mar do Norte em 1903. Mas foi somente na década de 1970 que a comunidade científica começou a analisar o problema em detalhes. No final da década de 1980, o Canadá e a Austrália estavam entre os países com problemas específicos com espécies invasoras e levaram suas preocupações à atenção do Comitê de Proteção ao Meio Ambiente Marinho (MEPC) da IMO.’
E, conclui: ‘A disseminação de espécies invasoras é hoje reconhecida como uma das maiores ameaças ao bem-estar ecológico e econômico do planeta.’
Amazônia é área de grande risco
A Amazônia, por sua importância para o mundo, tanto em termos de biodiversidade como pelo ciclo de chuvas, já foi estudada e considerada área de grande risco por bioinvasão.
Segundo o estudo ‘Análise Crítica da Legislação e Gestão da Água de Lastro: Um Estudo de Caso na Amazônia‘, de autoria de Alan Cavalcanti da Cunha, e José Pinheiro Neto Pereira Fragoso, do Departamento de Ciências Ambientais, Universidade Federal do Amapá, ‘O estuário do Amazonas é porto de entrada e saída de navios da Maritime Trade International (CMI). Esse meio de transporte é capaz de introduzir espécies invasoras e exportar para oceanos e áreas costeiras de todo o planeta. A bioinvasão representa considerável ameaça aos ecossistemas e pode causar danos ambientais, sociais e econômicos. Para evitar esses danos são necessários instrumentos legais e de gestão da água de lastro transportada por essas embarcações.
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Os muitos problemas da indústria marítima mundial
Contudo, a água de lastro é apenas mais um dos problemas ainda à espera de solução provocados pela indústria marítima mundial. Pelo fato do assunto ser muito pouco abordado pela mídia de Pindorama, este site já mostrou vários deles.
A começar pela brutal poluição atmosférica em razão da escolha do combustível de navios, o pior, e mais poluente, entre todos os meios de transporte.
Outro destaque negativo contamos no post Água cinza de navios, mais uma ‘contribuição’ à poluição dos oceanos. Como sempre, primeiro explicamos de que se trata: Ou seja, água(s) cinza(s) é o efluente proveniente de chuveiros, máquinas de lavar utensílios, pias e banheiros em geral, além das cozinhas e ralos.
Segundo o WWF ‘A poluição industrial crônica e as mudanças climáticas estão transformando nossos oceanos e ajudando a impulsionar a crise global de biodiversidade que nos ameaça. Entre as muitas fontes de poluição oceânica, nenhuma é tão prevalente – ou tão solucionável – quanto a “água cinza” dos navios’.
Como se vê, a WWF mostra que o caso é facilmente solucionável. Isto, se a IMO quisesse de fato resolver os problemas. Mas, como o post mostra, não é o caso.
‘Navios descartam lixo no mar; é quase uma unanimidade’
Em 2019 publicamos o post que mostra que a grande maioria dos navios, seja de cruzeiro, ou cargueiros, jogam lixo no mar por negligência, e mais uma vez, custos mais altos para armazená-los e descartá-los de maneira correta.
Para não falar nos acidentes com potencial destruidor como o famoso Exxon Valdez, por ter um comandante bêbado na ponte de comando que provocou o maior derrame de óleo da história, 11 milhões de galões de petróleo bruto nas águas ainda prístinas do Alasca. Até hoje, 30 anos depois, a região ainda sofre com os problemas.
Enquanto perdurarem práticas como as das bandeiras de conveniência, e a ‘proteção’ ou negligência da IMO, navios continuarão a ser essenciais a este mundo globalizado. Porém, poluindo absurdamente o ar, o mar, e até mesmo os continentes.