Já estamos na faixa dos 40º de latitude Sul. No meio náutico este pedaço do planeta é conhecido como the roaring fourties, ou os 40 uivantes (numa alusão ao barulho das ventanias).
Para você ter uma ideia do quanto já descemos, saiba que Santos, no litoral de São Paulo, fica nos 23º Sul. Cada grau de latitude corresponde a 60 milhas. Como entramos nos quarenta, quer dizer que já cobrimos dezessete graus, ou pouco mais de mil milhas. Daqui até a boca do estreito de Magalhães, onde termina esta primeira perna, são mais 760 milhas rumo Sul.
Entrar nos quarenta significa mais frio, vento gelado, e mudanças repentinas no tempo. Ontem de noite a temperatura externa era de 7º C, enquanto na cabine fazia 14º C. A sala do Mar Sem Fim é mais quentinha, por ser a parte do barco que recebe mais insolação.
De todo modo, ao sair para o convés, ou nas explorações de bote, já é preciso se vestir em camadas: primeiro um tipo de ceroula com malha especial. Depois, roupa de esqui na neve, no meu caso, formada por calça e casaco. Por cima de tudo isto, a roupa de tempo, também com calça e casaco. Cobrindo a cabeça, um gorro de lã. Nas mãos, luvas. E não vá querer ir ao banheiro em seguida. Dá um trabalho desgramado.
A Bahia de San Blás, onde passamos o fim de semana, é bem interessante. Ela é formada por várias lagunas. Quando a maré baixa, parte de seu leito fica exposto, deixando sem proteção diversos tipos de moluscos e larvas, alimento preferido de nove, entre dez tipos de pássaros. Então, bandos de flamingos, gaivotas, ostreros e maçaricos fazem a festa.
San Blás também foi nossa porta de entrada para a Patagonia. A área conhecida por este nome começa oficialmente no paralelo dos 40º Sul, onde estamos, e se estende, abaixo desta linha imaginária, até a ponta extrema da América do Sul, o Cabo Horn. São um milhão de quilômetros quadrados (a área total da Argentina, excluindo as Malvinas/Falklands, e as reivindicações territoriais Antárticas, de 2.766.889 quilômetros quadrados).
A Patagonia é formada em grande parte por estepes. Elas começam depois do declive dos Andes, e seguem até a zona costeira. Há bosques, e pequenas florestas também, próximas da cordilheira, mas ocupam porções menores do território.
Neste vasto espaço, que corresponde a mais de um terço do país, vivem apenas dois, dos quarenta milhões de argentinos, de acordo com o último censo nacional, o INDEC, realizado em 2001.
Enquanto a densidade média nacional é de 14 habitantes por quilômetro quadrado, na Patagonia a média despenca brutalmente. O motivo é o clima extremamente severo.
As maiores pressões ambientais, além do próprio clima, são as milhares de ovelhas criadas nas estepes, que utilizam a escassa vegetação como alimento. No mesmo sentido, a introdução de lebres europeias ajuda a piorar a saúde do ecossistema. Como se sabe, a principal causa da perda da biodiversidade no mundo, é a destruição dos habitats naturais. Em segundo lugar está a introdução de animais exóticos, caso da lebre. Por não terem predadores naturais, os que são introduzidos se proliferam de maneira exagerada, e a disputa por comida fica ainda mais acirrada no local. Muitas vezes a fauna estranha acaba por tomar o lugar da nativa. É o que acontece nas estepes daqui. Em nosso passeio de bote hoje, eu e Cardozo, nosso cinegrafista, vimos algumas lebres saltando de um lado pro outro. Aliás, pra onde você olhar, na estepe, verá alguma lebre saltitante. É apenas uma questão de minutos.
Outro problema ambiental para a Patagônia, é a distribuição de seus habitantes. 80% deles estão concentrados nas grandes cidades, e todas ficam na zona costeira. Na província onde estamos, Chubut, quatro, das cinco cidades mais populosas estão no litoral: Comodoro Rivadavia, com 136 mil; Trelew, com 88 mil; Puerto Madryn, com 57 mil; e Rawson, com 22 mil. E os serviços públicos não correspondem. Em toda a Argentina existem 10.059.866 domicílios. Mas somente 54,8% deles têm serviço sanitário. E 89%, coleta de lixo. Para onde vai o resto? Pro mar, como sempre.
No mundo é assim. O maior inimigo dos oceanos são os esgotos despejados desde tempos imemoriais. Acontece que agora a coisa está feia. Somos algo como seis bilhões e meio de terráqueos, 60% dos quais morando em regiões costeiras.
O resultado da aglomeração, entre outros, são dois milhões de toneladas de esgotos não tratados, atirados ao mar diariamente.
Sem falar na poluição industrial, ou nos agrotóxicos e inseticidas. E ainda temos o aquecimento global, que começa a mudar o Ph dos oceanos, deixando-os cada vez mais ácidos, e ameaçando matar os corais, o mais rico ecossistema marinho. Mas isto é conversa pra outro dia.
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