Litoral Sul do Maranhão: de São Luis para Luis Correia, no Delta do Parnaíba, Piauí
Litoral Sul do Maranhão; Sábado, 2 de julho, 2005.
Chegamos a São Luis três dias atrás, na quarta feira, dia 29. E trabalhamos na gravação do centro antigo da cidade, tombado pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade. Em nossas andanças fomos acompanhados por Luiz Phelipe Andrés, mineiro, apaixonado pelo Maranhão e pelo patrimônio histórico brasileiro em geral, que escolheu São Luis para viver.
De tão envolvido com a cidade, acabou chegando a Secretário Estadual da Cultura. Posteriormente foi o coordenador do estudo exigido pela Unesco, para qualquer cidade que queira se tornar Patrimônio da Humanidade. Hoje, Luiz Phelipe, é Superintendente do Patrimônio Histórico do Estado do Maranhão. Estávamos em excelente companhia.
O centro histórico de São Luis
Ele nos levou em alguns dos prédios mais emblemáticos, como o Palácio dos Leões, atual sede do governo, a igreja Matriz, o convento das Mercês, a Fonte do Ribeirão, etc.
Andamos pelas ruas mais importantes, sempre ouvindo as explicações sobre as pedras de Cantaria, espécie de mármore português que vinha como lastro nos porões dos navios, e aqui se transformaram em calçadas das ruas, ou sobre a função dos azulejos colocados nas fachadas dos edifícios mais ricos. Além de embelezarem, demonstravam o status superior do proprietário.
Os azulejos são muito mais resistentes que o simples reboco, ajudando a manter o clima mais fresco, uma vez que refletem o sol, não permitindo que as paredes fiquem quentes como fornos de pizzas.
Litoral Sul do Maranhão: Raposa e São José do Ribamar
Visitamos ainda duas cidades do outro lado da ilha de São Luis que ficam às margens da baía de São José : Raposa, e São José do Ribamar. Ambas tiveram sua origem em colônias de pescadores. São famosas sobretudo pela quantidade de bianas, estes lindos barcos tradicionais, com a proa lançada, bem elevada, e não em “V”, como as canoas tradicionais, mas chatas.
Originariamente as bianas são do Ceará
Mas atravessaram o litoral do Piauí, tendo ótima acolhida no Maranhão onde se tornaram uma das embarcações preferidas dos pescadores artesanais. E são lindas . De pequeno porte, armadas com duas velas- estai e carangueja- e um leme de grandes proporções que serve também como bolina. Elas são sempre coloridas, tanto o velame como o casco, e extremamente elegantes quando navegam. Foi um show de grande beleza plástica assistir estas embarcações voltando de um dia de pescaria na praia da Raposa. Aproveitamos para visitar um grande amigo do Luiz Phelipe, construtor de bianas, João dos Reis Calixto, mais conhecido como Mestre Jonas, que, aos 82 anos, extremamente ativo, inteligente, e muito simpático, dignifica seu ofício até hoje construindo as mais belas bianas que navegam por lá.
Litoral Sul do Maranhão: o estaleiro escola
Mas tem mais : em São Luis visitamos ainda a menina dos olhos do Luiz Phelipe, o estaleiro escola, que ele idealizou e construiu usando um antigo e decadente prédio, hoje tinindo de novo em sua reforma, onde no passado funcionou uma fábrica de beneficiar arroz . Este estaleiro será a grande contribuição de Phelipe, um mineiro que “sofre da nostalgia do mar”, para a preservação das técnicas centenárias da construção naval artesanal.
Idéia simples e engenhosa
A idéia é simples e engenhosa: levar para este centro náutico os melhores mestres carpinteiros em atividade, para que, ao mesmo tempo em que constroem seus barcos, possam ensinar o ofício aos mais jovens. Hoje eles trabalham ao ar livre, sem o menor conforto, no mangue mesmo, muitas vezes no quintal de suas casas. Entre outras dificuldades são obrigados a parar o trabalho quando chove. Suas ferramentas são poucas, velhas, e rudimentares. E o conforto, ou segurança no trabalho, iguais a zero. O prédio do estaleiro de São Luis tem alojamento, restaurante e área coberta com rampa de acesso ao mar. Um amplo espaço para a veleria, e todas as condições para tirar estes mestres da indigência e dar a eles um mínimo de dignidade no trabalho.
Restava seguir caminho em direção ao sul
Nesta madrugada, às cinco horas da manhã, levantamos ferro em direção a Ilha de Santana, 45 milhas abaixo de São Luis.
A tripulação do Mar Sem Fim estava meio baleada. Ontem fomos numa festa, no Convento das Mercês, onde assistimos uma primorosa apresentação por parte dos melhores e mais famosos grupos do Boi-Bumbá do Maranhão. Não vou me estender muito. Apenas adianto que pretendo voltar. Faço questão de um dia trazer meus filhos para que eles assistam ao espetáculo. E torço que a festa continue como esta que vi, sem influências que acabam tirando sua originalidade, transformando a festa popular num evento “holiudiano”, como aconteceu com o carnaval.
Por estarmos cansados dormimos, eu, Paulina e o cinegrafista Cardozo, quase até a hora da chegada na ilha de Santana.
Entrada na ilha de Santana
Só me levantei quando faltavam umas 10 milhas, ou pouco mais de uma hora de navegação. Assim pude acompanhar nossa entrada na ilha de Santana. Como sempre este é o momento mais crítico de toda a navegação. As pessoas imaginam que os acidentes com barcos acontecem no mar, mas 90% deles ocorrem quando um barco se aproxima de terra. Felizmente temos a bordo, nesta etapa, um marinheiro que conhece a região. Sua principal curiosidade, talvez seja o apelido, Chico Bem-Feito. Entramos sem maiores problemas.
Litoral Sul do Maranhão: fundeando em frente ao farol da Ilha de Santana
Em seguida navegamos mais meia hora, através de um furo, para finalmente fundearmos em frente ao farol da Ilha de Santana.
Nem bem o Mar Sem Fim ancorou, descemos para conhecer a vila e o farol.
Domingo, 3 de julho de 2005.
Logo depois do café, descemos de novo para novas conversas com o sargento Meireles, que está aqui há um mês, e ainda vai ficar mais cinco, até completar o período completo de permanência em Santana, exigido pela Marinha.
Para nós não deixa de ser exótico, e interessante, encontrar, e conversar com gente como ele. Suas histórias mais parecem romance, ou filme de cinema.
A vila de pescadores
A vila de pescadores de Santana deve ter cerca de 150 a 200 moradores, não mais, e como todas que conhecemos é mais uma comunidade de brasileiros excluídos. É triste ver o abandono do Estado em relação aos habitantes da costa. Muitas vezes eles estão próximos das grandes cidades mas, dada à dificuldade de acesso, vivem praticamente abandonados. Grande parte não tem documentos. Médicos são raridade, escolas, quando existem, são precárias, a pobreza é a regra. O clima é inóspito para viver. O sol é forte e persistente. Nem sempre existem sombras. E o vento poderoso bate direto, quase 24 horas por dia.
Povos do mar
Estes povos do mar, fruto da miscigenação entre índios, europeus, e escravos, são descendentes das primeiras levas da colonização. Uma espécie de arquivo vivo de usos, tradições, e costumes centenários. Às vezes meu sentimento é ambíguo em relação a eles. Ora de comiseração, ora de admiração. Esta dualidade vem de sua fibra fantástica, por um lado, e de seu abandono, e conseqüente, decadência, por outro.
Nos primeiros dois séculos após a descoberta, o Brasil era exatamente igual a esta parte que agora visitamos. Desde aquele tempo o elo entre os povoados eram as embarcações que eles mesmos construíam, cada uma feita especialmente para navegar numa determinada área. Daí a imensa riqueza e diversidade de embarcações típicas ainda hoje.
Eles são pescadores artesanais acima de tudo.
De acordo com dados do trabalho ” Estimativa Da Pesca De Água Doce E Marinha”,de autoria de José Ribeiro Borghetti, da Assessoria da Pesca e Aqüicultura, do MAARA- Brasília, há no Brasil cerca de 700 mil pescadores. No total, quatro milhões de pessoas dependem deste ofício no país. E 60% de todo o pescado vem da atividade artesanal. A pesca industrial no Brasil sempre foi, e continuará a ser, pequena, com exceção da foz do Amazonas, e o Sul.
A SUDEPE
Simplesmente por que nossa costa não é das mais piscosas. Diversos estudos já apontaram as evidências. Mas apesar disto, quando o governo investe, é na pesca industrial. A SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca), na década de setenta, torrou milhões ao oferecer financiamentos generosos para frotas industriais, pleiteados e conseguidos por empresários de outros ramos que pouco ou nada investiram no objetivo do financiamento. O descalabro foi tamanho que, mesmo tendo sido criada pelos militares na época da ditadura, a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca acabou sendo extinta. Gastou demais e produziu de menos.
Pesca artesanal sem apoio ou ajuda
E jamais nossos governantes investiram na pesca artesanal, oferecendo financiamentos para geradores, câmaras de gelo, entrepostos, etc. Na maioria de vezes atrapalhou, como quando a autoridade marítima exigia plantas assinadas por engenheiros para liberar os barcos. Ocorre que eles são feitos por mestres, a maioria analfabetos, mas com notória habilidade e saber. Mesmo assim a exigência absurda foi mantida e a frota acabou se tornando ilegal.
Ou ainda quando a mesma autoridade, à guisa de “normas de segurança”, exigia que estes pobres coitados tivessem a bordo equipamentos de salvatagem, caríssimos e sofisticados, que eles não podiam comprar… Quando o governo não atrapalha, como nestes casos, também não favorece. O pescador que se vire para conseguir a proeza de escoar o produto de seu trabalho. E ainda assim ele representa 60% do total da pesca no país. Imagine se o governo desse uma mãozinha…
Litoral Sul do Maranhão: problemas causados pela falta desta infraestrutura
Aqui mesmo em Santana verificamos os problemas causados pela falta desta infraestrutura. Num destes dias um pescador acertou a mão e tirou do mar mil quilos de xaréu. Sua biana a vela quase não agüentou trazer o pescado até a ilha onde mora. E em vez de satisfeito, ele correu desesperado atrás de óleo diesel, que não tinha, para poder levar o pescado até mercado de São José de Ribamar, aqui do lado. Não fosse o sargento Meireles ter emprestado o combustível, e este pescador teria o produto de seu trabalho estragado pela falta de meios para conservá-lo fresco.
Maior problema destas pessoas que vivem pela costa é a desunião
Talvez o maior problema destas pessoas que vivem pela costa seja a desunião. Vários grupos, mais ou menos excluídos, que se reuniram em torno de uma liderança no mínimo conseguiram dar alguma notoriedade para suas causas. As autoridades de Brasília adoram parecer sensibilizadas.
Suspendemos e iniciamos a navegação
Tínhamos que continuar nossa viagem. Suspendemos e iniciamos a navegação de 25 milhas até a comunidade de Primeira Cruz, do outro lado da baía do Tubarão. Foi bastante impressionante a viagem. Navegamos paralelamente as arrebentações do mar, que acontecem na barra devido ao assoreamento. Durante quase todo o tempo foi assim. A bombordo do Mar Sem Fim, ondas estouravam. A boreste , se investíssemos muito, encalharíamos.
Litoral Sul do Maranhão: a bela e pitoresca vila de Primeira Cruz
Seguimos por esta estreita faixa, procurando prestar atenção nas informações que nos dava o Chico Bem-Feito. Normalmente os maranhenses falam sem sotaque, de modo claro e natural. mas este nosso amigo desafina até quando diz “bom dia”. Ele fala rápido e de modo cantado, o que dificulta ainda mais a compreensão. No primeiro dia não entendi uma frase. Já havia até desistido até que hoje, prestando atenção, entendi um pouco mais o que ele procura explicar. Chegamos sem problemas na bela e pitoresca vila de Primeira Cruz, que fica no início dos Lençóis Maranhenses, em seu lado norte. Esta é a região de dunas e lagos mais famosa do Maranhão. Na outra extremidade, 45 milhas ao sul, fica Barreirinhas.
Litoral Sul do Maranhão: Primeira Cruz
Primeira Cruz é bonita. Dá impressão de ser bem organizada apesar de ter um início de processo de favelização. A vila é especialmente pitoresca. Ela foi erguida nas margens do rio Piriá. Chegamos ao final da tarde, já quase escurecendo, por isto não desembarcamos. No jantar ainda comemoramos os 27 anos de Paulina. Teve bolo, feito pelo Alonso, e champanhe.
Agora um bom banho no rio, depois cama.
Segunda- feira, 4 de julho de 2005.
Estes dois últimos dias não têm sido fáceis para mim. Peguei uma gripe chata em São Luis, e embarquei com ela. Febre e que tais. No barco acabo tomando sol, vento, ou os dois. Por mais que me proteja, sempre que possível debaixo de toldos, ou procurando uma sombra assim que desembarco, com camisas de manga longa, chapéu, e muito protetor solar, estou sempre me expondo e dificultando a cura. Mas vamos ao que interessa.
Caetés, antigo entreposto da Petrobrás
Logo cedo fomos combinar com um barqueiro para que ele nos levasse, umas dez milhas rio acima, até Caetés, antigo entreposto da Petrobrás. Ali nos esperava um carro 4 x 4, para nos levar até Santo Amaro, extremidade norte dos lençóis, e cidade onde foi filmado o filme com Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. O Mar Sem Fim fica aqui onde está, em frente à Primeira Cruz, onde há profundidade suficiente para seu calado de 1 metro e 80 cm.
Às 10 horas da manhã atracou em nosso contrabordo uma biana com casario
Às 10 horas da manhã atracou em nosso contrabordo uma biana com casario. Ela subiu o rio conosco, por pouco mais de uma hora, e nos deixou na modorrenta Caetés. O calor era de rachar, como tem sido a regra. Assim que desembarcamos procurei desesperadamente uma sombra em volta. E não havia nenhuma. Tornei a olhar e descobri um casebre, cercado de paus a pique, tipo paliçada mesmo, com uma placa que lembrava a de um bar. Fui chegando mais perto, bem devagar. Entrei. Havia sombra lá dentro, além de três crianças, uma delas um bebê com menos de um ano, e dois animais soltos: um cachorro pulguento, e um porco esquálido. Tudo no mesmo ambiente. Ah, esqueci de falar que o dono se balançava numa rede, no meio disto tudo, lendo um gibi sobre lendas bíblicas. Sei do conteúdo por que fui xeretar.
Mesmo assim puxei uma cadeira, sentei na única mesa que havia, e pedi um refrigerante gelado para a irritação do proprietário. Deitado em sua rede, ele ouviu e resmungou qualquer coisa que não entendi para a mulher, que dava banho numa das crianças, por detrás de um muro de cimento que havia no cômodo. Afinal a coca veio e matou a sede. Quem não veio foi o motorista que havíamos contratado. Por sorte duas horas depois, apareceram dois 4 x 4, trazendo gente da polícia que escoltava dinheiro para o banco. Acertamos um preço com o motorista de um dos carros e tocamos para Santo Amaro, distante uma hora.
Trechos de mata fechada
No caminho passamos por trechos de mata fechada, muita areia fofa, restingas, campos, e rios de diversos tamanhos. Uma aventura. Mas chegamos. Visitamos as dunas impressionantemente grandes, com lagoas também imensas em seu interior . Cumprimos nosso objetivo para hoje. As gravações foram um sucesso.
Às oito da noite estávamos de volta ao Mar Sem Fim. Todo mundo cansado mas feliz.
Litoral Sul do Maranhão: Bianas saindo para a pesca
Terça- feira, 5 de julho, 2005.
Logo depois do sol nascer o Alonso já me chamava avisando que as bianas estavam saindo para a pesca.
Saí correndo, peguei meu equipamento fotográfico, chamei Cardozo, o cinegrafista, e fomos de bote atrás delas.
Que show! Como são bonitas, rústicas, e funcionais ao mesmo tempo. Tirei centenas de fotos, e Cardozo não deixou por menos. Vale a pena ver o colorido, a forma dramática de sua vela, os desenhos que elas fazem no horizonte, e a habilidade com que são conduzidas. Foi uma manhã fantástica. A maioria das canoas desta região é formada por igarités com vela de espicha. Também se vê muitas bianas, a vela ou motor, com, e sem casario. Por fim, com sorte, você ainda verá um ou outro bote, com vela rabo de galo (o mesmo tipo usado em jangadas), construídos em Barreirinhas. Fiquei horas passeando com o botinho, admirando, conversando com os mestres, gravando e fotografando. Voltei pro Mar Sem Fim de queixo caído com tanta beleza, e doido pra um dia ter uma canoa destas. Eu iria abafar na Semana de Vela de Ilhabela…
Descansamos um pouco do forte calor, terrível mesmo com o vento, e depois descemos para conhecer a vila.
Primeira Cruz
Primeira Cruz leva este nome porque foi aqui que os Portugueses colocaram o primeiro marco quando, em 1614, estavam a caminho de São Luis para libertar a cidade do domínio francês.
É uma vila bem charmosa, cheia de coqueiros nas margens do rio, que nesta altura é relativamente largo. Muito verde em volta. Algumas poucas dunas atrás. A cidade é limpa, apesar de percebermos mais uma vez, a falta de saneamento básico, coleta de lixo, etc. Mas os moradores parecem ciosos de seu espaço e cuidam dele com carinho. A maioria das ruas é calçada, mas há algumas de areia pela periferia. Cerca de onze mil pessoas moram aqui. Visitamos uma salina, indústria típica de toda esta área, além de um estaleiro artesanal.
Saímos com uma belíssima impressão do lugar. Adorei ter vindo, conhecido, e assistido a tradição dos barcos artesanais, tudo isto cercado por um cenário deslumbrante.
Litoral Sul do Maranhão: até a foz do rio Preguiças
De tarde estávamos de volta preparando o barco para a etapa de amanhã. Vamos descer a costa, cerca de 45 milhas para o sul, até a foz do rio Preguiças. É bem complicado para entrar. Venta muito, a profundidade é baixa, e quase toda a foz está assoreada. Ainda assim vamos tentar. O rio todo é muito bonito, já estive lá antes. Subindo seu curso dá pra chegar até Barreirinhas, cidade mais próxima, na extremidade sul, dos lençóis maranhenses.
Vou até lá “ver a cara” da barra, sentir seu “cheiro”, e, se por acaso for fácil, entramos. Se não, seguimos em frente, em direção à barra de Tutoia, já no início do Delta do Parnaíba.
Quarta e quinta-feira, 6 e 7 de julho 2005.
Não deu para entrar na barra do Preguiças
Ela é rasa demais, com arrebentação, apesar de o vento ter sido camarada. Tivemos um leste-sueste fraco, para as condições daqui, que variou entre 10 e 15 nós. Vento sem força para levantar o mar. Navegamos com pequenas ondas, de um metro, a um metro e meio no máximo.
O Mar Sem Fim parado na frente da barra, a uma profundidade de dois metros e meio, e diminuindo conforme avançávamos. Sem conseguirmos ver a entrada do canal, com ondas estourando em volta, resolvi desistir.
“Alonso: bota aí 180 graus, vamos abortar”!
Litoral Sul do Maranhão: arribamos para a barra de Tutoia, no Delta do Parnaíba
Navegamos para fora, algo como 6 a 8 milhas, então, arribamos para a barra de Tutoia, 30 milhas abaixo. Chegamos de noite, às nove e pouco. Estava escuro, não havia lua. Quando fundeamos, oito milhas para fora da cidade, já eram quase dez horas. O mar fazia o veleiro “escorregar” nas ondas, enquanto no horizonte raios e trovões denunciavam o Pirajá que ia chegar. Somando estes indicadores, e tentando não parecer tenso, eu olhava fixamente para o relógio de vento que apontava 20, 25 nós. Todo mundo estava cansado depois de um dia navegando, ainda assim, não poderíamos relaxar naquela noite. Pedi um turno de duas horas, por parte de cada um. Como estávamos em quatro, e eram dez da noite, se cada um perdesse apenas duas horas de sono às seis da manhã, com dia claro, estaríamos prontos para entrar barra adentro. Em seguida fui dormir.
Alonso e Chico Bem-Feito se viraram sozinhos
Acordei esta manhã, sem ter percebido que não me chamaram para meu turno. Alonso e Chico Bem-Feito se viraram sozinhos. Que bom! De noite é terrível ter que ficar lá fora, no cockpit, servindo de alvo pra a chuva e o vento. Na maior solidão, sua única companhia é ouvir a modulação de tom produzido, a cada variação do vento, nos estais do veleiro.
Restava puxar o ferro e entrar barra adentro. Apesar de a carta náutica indicar que a última medição foi feita em 1978, e das profundidades marcadas serem muito baixas, a nossa entrada foi fácil. Em nenhum momento tivemos menos que três metros de profundidade da barra até a cidade. Ao chegar achamos um lugar, no rio Comum, que banha a cidade. Ali jogamos nossa âncora.
Agora já são 15h14. Esperamos, para qualquer momento a chegada de uma voadeira que contratei para nos levar até a ilha do Caju, que fica no meio do Delta do Parnaíba, distante 25 milhas de onde estamos. Enquanto o Marzão descansa em Tutoia, a tripulação segue até esta ilha para mais gravações. Na volta nos falamos
Uma jóia do Delta do Parnaíba, a Ilha do Caju
Sexta- feira, 8 de julho 2005.
O relógio de bordo marca sete horas da noite. Acabamos de voltar da ilha do Caju. Passamos uma bela noite por lá. Nesta manhã, logo cedo, fizemos um longo passeio a cavalo que atravessa todos os ecossistemas da ilha. E são muitos: praias, mangues, dunas, floresta, campos, restinga, e área alagada. É ótimo, num mesmo dia, poder passar por tantas regiões diferentes. Isto mostra a riqueza da ilha e suas diversas coberturas vegetais. A ilha do Caju, que tem 100 quilômetros quadrados, é uma das cerca de 80 que o Delta do Parnaíba abriga. O hotel em que nos hospedamos é pequeno, portanto causa um impacto mínimo ao meio ambiente.
Antes todos os hotéis da costa tivessem a responsabilidade que este tem. Não adianta erguer um imenso e maravilhoso complexo turístico, em áreas normalmente frágeis da zona costeira, sem infraestrutura para agüentar grandes levas de visitantes. Em pouco tempo a região toda será degradada. Depois disto nunca mais será a mesma. Melhor estudar qual a capacidade do lugar, para depois abrir as portas . Assim o turista poderá ver uma área original ainda com suas características principais preservadas. Que não se faça aqui, no norte do Brasil, cuja zona costeira ainda não foi plenamente ocupada, o mesmo que no sudeste, onde o litoral foi quase todo degradado, depois de uma ocupação não planejada, fruto de especulação imobiliária, da falta de informação, da omissão do Estado.
Ocupação desordenada da costa
A ocupação desordenada da costa é uma perigosa contribuição para que os oceanos se tornem um imenso deserto inanimado. Para mim é também um crime de lesa-pátria, já que os mares não pertencem a nenhum país, mas a todos que habitam o planeta. Talvez tenha sido este ponto, a desastrosa ocupação da costa sudeste, o fator principal que me levou a partir para esta expedição de mais de ano, descendo o litoral brasileiro de norte a sul para chamar a atenção da sociedade.
É uma tarefa ousada e, talvez, quixotesca, sei disso. Mas é preciso acreditar no que se faz, caso contrário, melhor ficar em casa “com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”. Como diria meu amigo Raul Seixas.
Nesta madrugada saímos para o mar novamente
Vamos descer mais 55 milhas, até Luis Correia, o primeiro dos cinco braços que formam o Delta do Parnaíba. Tutoia, onde estamos, é o quinto, e último. Vamos passar por fora dos outros três, até entrarmos no porto novamente. Ali o Mar Sem Fim vai aguardar pela próxima etapa que deverá nos levar pelo litoral do Ceará.
Pegamos uma marzão respeitável
Sábado, 9 de julho, 2005.
Pegamos uma marzão respeitável. Os ventos estavam fortes e constantes, de sueste, bem na nossa proa. Variando entre 20 e 25, e até 26 nós nas rajadas. Como navegávamos na direção contrária, o vento aparente chegava aos 31 nós nos picos. E levantou um belo mar. As ondas vinham do sul, com altura de dois a três metros. Balançamos um bocado. E avançamos mais lentamente que o normal. Algumas vezes o GPS marcou quatro, cinco nós, quando nossa velocidade normal seria quase sete nós.
O importante é que o Mar Sem Fim, que completa um ano fora de casa em Agosto, se comportou belamente, não dando bola para as condições, e seguindo seu caminho.
No final do dia entramos em Luis Correia, pequena cidade costeira do Piauí, o quarto Estado que visitamos nesta viagem.