Sábado, quando saímos de Punta Arenas, o dia estava lindo.
Céu muito azul, e sol forte. O colorido vivo realçava os contornos da geografia especial do entorno, transformando o estreito num dos lugares mais bonitos em que já naveguei.
Os Andes chegam até aqui com seus picos nevados, encostas íngremes, e cortes dramáticos.
Mas tínhamos que curtir a paisagem de dentro do barco. Fora, no vento, faz um frio cortante, gelando até a alma. Não dá pra ficar.
Sem querer, descobri que o trawler é o melhor tipo de barco para navegar os canais. De veleiro você está constantemente exposto. Como ninguém aguenta mais de um par de minutos, acabamos descendo pra cabine, onde a visão externa é prejudicada. No trawler é o oposto. A sala e o comando parecem um jardim de inverno envidraçado. A visão externa, a partir desta área aconchegante, é espetacular.
Minha mesa de trabalho é um bom exemplo. Passo boa parte do dia na mesa da sala, lendo ou escrevendo. Roteiro de programas, pesquisas, textos da Band, do site. Ela é cercada por enormes janelas, que tomam toda a sua extensão. Entre uma vírgula e outra, vejo um cenário mágico que alterna vagas com albatrozes em vôos rasantes, picos nevados, bandos de Toninas Overas (um tipo de golfinho preto e branco) tirando finas do barco, nevascas que deixam a atmosfera inteiramente branca, e até baleias francas na Península Valdes.
Por mais de vinte anos naveguei em veleiros. Continuo adorando os barcos à vela. Mas às vezes um trawler tem lá suas vantagens. O Mar Sem Fim é o primeiro barco do gênero, do Brasil, a descer até aqui. Recomendo aos outros que façam a experiência. Não vão se arrepender.
Depois de algumas medidas simples, como as placas de acrílico nas janelas, parou de entrar o vento que invadia a sala. O ambiente ficou bem mais gostoso. E os aquecedores a gás estão dando conta do recado.
Quando começa a esfriar demais, ligamos o gás. Em poucos minutos a sala fica aquecida.
No primeiro dia navegamos pouco, até a ilha capitão Aracena, onde fica a caleta Hiden. Quando fundeamos a temperatura externa era de zero graus. 28/11
No dia seguinte, 29/11,ao acordarmos, uma forte nevasca caía. Não é comum nevar nesta época do ano, estamos com um “verão” atípico…
Suspendemos, e seguimos tateando por este labirinto de pequenas baías e canais, até chegarmos numa enseada não cartografada, o Seno Gelado, que acaba numa geleira.
Mais uma paisagem de tirar o fôlego. Os tons de azul são impressionantes.
Próximo dela enormes blocos de gelo flutuavam. Navegamos devagar, tomando cuidado com as hélices, até fundearmos próximo à massa de gelo.
Passamos a tarde gravando e fotografando. Antes de anoitecer, por volta de dez e meia da noite, saímos à procura de novo abrigo.
Encontramos o lugar ideal na caleta Nutland, aqui mesmo, na ilha Santa Inés, próxima de onde estávamos.
Nem bem fundeamos, e surgiu um pequeno barco de pesca. Começamos a conversar, em seguida eles atracaram a contrabordo.
Eram pescadores de centojas que nos contaram da dura vida que levam os seus pares.
Eles ficam até cinco meses embarcados, período que dura a temporada de capturas. De tempos em tempos, um barco maior recolhe o produto da pesca, entrega mais alguns víveres, e retorna para Punta Arenas, deixando os homens entregues ao seu destino. Nossos amigos já estavam há três meses no mar. A embarcação é pequena, quase sem abrigo para três pessoas.
Trocamos algumas latas de cerveja, e uma garrafa de Ypioca, por dois baldes repletos de centojas.
E continuamos o bate-papo. Como isca para as armadilhas, eles usam robalos, pescados na mesma baía onde estamos. Levei um susto quando vi os três jogarem as latas vazias na água. Então percebi que o barco em que estavam era tão pequeno, que não havia como guardar lixo. Tudo é jogado no mar.
Talvez seja esta a razão da maré vermelha crônica que existe nos canais da patagônia. Ainda não consegui entrevistar um especialista sobre esta questão, mas não desisti. Sigo procurando. De qualquer modo as marés vermelhas estão associadas à ação humana. Elas são uma reação provocada por excesso de nutrientes, como esgotos não tratados, poluição urbana, fertilizantes, ou maricultura intensiva, que despejam seus rejeitos no mar. Estes elementos, ricos em compostos de nitrogênio, carbono, ferro, fósforo, alteram a composição química dos oceanos, e favorecem a proliferação de algas e bactérias nocivas, que muitas vezes tingem a água, tamanha sua quantidade, em tons próximos do vermelho, daí o nome.
A maré vermelha contamina alguns orgamismos marinhos, especialmente moluscos como mexilhão, ostras, caracol, vieira, etc. Seu veneno, se ingerido pelo homem, pode matar.
Quando em excesso, este processo conduz a eutrofização (ausência de oxigênio, consumido pela floração nociva), e em seguida, às zonas mortas.
A ONU calcula que hoje existam cerca de 200 zonas mortas, espalhadas por todos os oceanos. São áreas sem oxigênio suficiente para que haja vida, medem de dois, até 70 mil quilômetros quadrados!
No caso de águas chilenas, além de poluição, existe a maricultura intensiva. O Chile, hoje, é o segundo produtor mundial de salmões, que são criados em fazendas no mar. A maioria delas fica na região de Puerto Mount, no Pacífico, bem mais para cima. Mas aqui, nos canais, também existem algumas fazendas.
Recentemente assisti a um documentário impressionante sobre a criacão de salmão do Chile. Chama-se Ovas de Ouro. O documentário recebeu prêmios em alguns festivais. Ele mostra os problemas da introdução desta espécie no Hemisfério Sul. Lembrando que a introdução de espécies exóticas é a segunda maior causa de perda de biodiversidade no planeta.
Tirando este ”detalhe’
nas fazendas ocorre o uso intensivo de antibióticos, jogados n”água para evitar pragas. A substância acaba agindo como os nutrientes citados acima, contribuindo não só para a maré vermelha, como para a criação de pequenas zonas mortas.
Já vi este triste filme no Nordeste brasileiro, onde ocorre a mesma devastação com a carcinicultura, a criação de camarões (exóticos), em manguezais, berçários de vida marinha.
A criação de peixes em cativeiro ainda está longe de ser a solução para diminuição dos cardumes, e esgotamento de bancos de pesca. Justamente porque a ração é feita à base de farinha de peixe. Normalmente são espécies até então não pescadas, por falta de valor econômico, mas que têm sua importância na cadeia de vida marinha. Quanto mais cresce a maricultura no mundo, mais estes peixes são pescados, alterando o equilíbrio da cadeia de vida marinha.
Pior que isto: o consumo de ração é maior que a produção de carne das fazendas. Ou seja, retira-se do mar mais peixes, para produzir menos peixes. Até padeiro faz a conta. A longo prazo, o resultado da equação pode ser chamado de “atividade insustentável”.
Dia 30, pela manhã, retomamos o estreito de Magalhães navegando em direção ao Pacífico, até 30 milhas antes de entrarmos no oceano propriamente.
Desviamos para a direita, entrando pelo canal Smith, para chegarmos até o local de fundeio, 20 milhas acima, na caleta Dardé, na ilha Hose.
Finalmente, ontem navegamos mais 90 milhas, atravessando estreitos canais e passes, alguns deles com correntes que chegam aos 12 nós durante certas marés, até chegarmos a Puerto Natales, no final do dia.
Tradicionalmente, Puerto Natales era uma comunidade de pescadores.
Além de centojas, e ouriços, por aqui também existem algumas salmoneras, as fazendas de salmão.
Hoje o turismo também é importante para a economia, sendo a região uma espécie de base para vários parques nacionais, chilenos e argentinos.