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Viagem da Kika, Península Antártica, relato Nº 14

Viagem da Kika, Península Antártica, relato Nº 14

A Antártica tem o poder de nos transportar para outro mundo. Somos completamente tomados pela beleza, aquela que toca a alma. Hoje vamos comentar nossa visita a Península Antártica.

Três viagens à Península Antártica

Durante o verão fizemos três viagens à Península Antártica, sempre partindo de Ushuaia, conhecida como a cidade mais austral do mundo. Atravessar o Drake é um rito de passagem. Nomeado em homenagem ao explorador inglês do século XVI Sir Francis Drake a passagem compreende 480 milhas de mar aberto, é o trecho mais curto para se chegar à Antártica desde qualquer ponto do planeta.

Nestas latitudes não existe nenhuma massa significativa de terra que impeça o vento e a ondulação, este mar impõe respeito a qualquer navegador. A poderosa Corrente Circumpolar Antártica absorve 43% do dióxido de carbono do mundo e ainda conhecemos muito pouco sobre ela.

Atravessando o Drake

No Drake podemos avistar, além de outros pássaros e mamíferos, uma grande variedade de albatrozes. O albatroz gigante é um magnífico viajante que pode atingir 3,50 metros de envergadura e voa sem esforço no oceano aberto, principalmente com muito vento. Rumando sul atravessamos a Convergência Antártica, a partir deste ponto a agua fria das correntes antárticas submerge sob a agua mais quente subantártica criando uma zona altamente produtiva para o krill, um tipo de camarão que é a base da cadeia alimentar do ecossistema da Antártica, dele se alimentam desde pinguins até baleias.

Ilha Decepção

Depois de três a quatro dias de travessia chegamos na Ilha Decepção, atravessamos a estreita Janela de Netuno e entramos na cratera de um vulcão. Na Baía dos Baleeiros avistamos as ruinas da fabrica processadora de óleo de baleias norueguesa do inicio do século XX, com carcaças de barcos e baleias compondo a paisagem.

A ilha Deception.

Posteriormente bases cientificas foram estabelecidas, inclusive um hangar britânico no local de onde partiu o primeiro sobrevoo do continente antártico em 1928. Com as erupções do final da década de 60 as instalações ficaram parcialmente soterradas por lava e as bases científicas foram evacuadas. Na praia, envoltos pelo vapor, nos banhamos na água do mar naturalmente aquecida e apreciamos o cenário desconcertante.

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Viagem da Kika, Península Antártica

Seguimos navegando rumo sul ao longo da costa oeste da Península Antártica, através de canais e baías bastante abrigados do vento e da ondulação. Os dias de verão são longos e podem ser bastante ensolarados com temperaturas amenas. À noite dormimos ancorados, dentro do barco o aquecedor a diesel mantém o ambiente cálido. A bordo somos doze pessoas, quatro tripulantes e oito passageiros, a aventura humana torna-se uma experiência gratificante de solidariedade e tolerância.

O encontro com a filha Samanta, na foto cozinhando a bordo do Kotic.

Numa das viagens nos encontramos com o Kotik, o célebre veleiro construído por Oleg e Sophie Bely. Seu filho Igor herdou o barco e junto com minha filha Samanta navegam todos os anos para a Península Antártica, seguindo a tradição da família.

A sincronia para que dois veleiros se encontrem num universo vasto como a Antártica é forte e eu me senti a mãe mais afortunada do mundo, passei 24 horas com eles desfrutando cada minuto.

Vida selvagem

Nesta época do ano a vida selvagem é abundante, avistamos muitas baleias, diversos tipos de focas, pinguins e pássaros. Ao longo do verão assistimos ao rápido ciclo reprodutivo dos pinguins-gentoo, muito presentes nesta região.

Os pinguins Gentoo.

Eles fazem seus ninhos com pequenas pedras e é muito divertido ver como tentam roubar pedras dos vizinhos. As fêmeas colocam dois ovos e os pais se revezam na criação dos filhotes, enquanto um fica no ninho o outro sai para pescar.

Os adultos alimentam suas crias regurgitando comida digerida, o pequeno coloca sua cabeça dentro do bico dos pais para comer. Com 4 a 5 semanas de vida os filhotes ficam agrupados em creches aos cuidados de um adulto. Com 7 a 8 semanas os pais se recusam a alimentar seus filhotes para que sejam independentes e aprendam a pescar.

Canal Lemaire

Durante os meses de janeiro e fevereiro nos deparamos com muito gelo no Canal Lemaire e não conseguimos prosseguir até a base ucraniana Vernadsky. O estreito canal ladeado por penhascos escarpados é tão lindo que é apelidado de “Kodak Gap”.

O ‘pack ice’ dificulta a navegação.

Abrigamos em Port Charcot onde nos encontramos com outros veleiros que tampouco conseguiam passar. Nos primeiros anos do século XX o francês Jean-Baptiste Charcot invernou duas vezes nesta região, ele foi o primeiro a cartografar a costa oeste da Península Antártica.

Nesta bela baía que leva seu nome há uma colônia de pinguins e uma trilha que leva ao topo do morro com uma vista 360˚ espetacular, dois casais do nosso grupo decidiram acampar em terra.

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Em fevereiro fizemos uma expedição com um grupo de alpinistas australianos buscando conquistar picos nunca antes escalados. No final do verão o gelo está mais derretido e a chance de conseguir chegar em lugares de acesso difícil é maior.

Viagem da Kika, Península Antártica: a base ucraniana Vernadsky

Navegamos diretamente para Vernadsky onde celebrei meu aniversário com muita animação dos anfitriões ucranianos e vodka. Depois seguimos rumo sul, numa região desabrigada e pouco frequentada por outros veleiros.

Vernadsky, à direta, próxima ao mar.

Encontramos muito pack ice, gelo marítimo à deriva que se desloca com o vento e a correnteza. O Antarctic é construído com chapas de alumínio espesso e consegue abrir caminho através do gelo flutuante desde que não esteja concentrado em blocos.

Navegamos pelas ermas baías Beascochea e Leroux e fizemos algumas ancoragens surpreendentes numa zona onde as cartas náuticas não são detalhadas. As condições de vento e correnteza podem mudar radicalmente em pouco tempo, o desafio não se trata apenas de conseguir chegar em determinado lugar mas poder retornar semanas depois para resgatar as pessoas. São decisões de muita responsabilidade.

Ilha Anvers

A equipe finalmente optou por fazer a travessia inédita de uma cadeia de montanhas chamada Achæan na Ilha Anvers, mais ao norte. Escolheram um local que consideraram adequado para desembarcar, levaram quilos de equipamentos e provisões para duas semanas.

Paradise Harbour, ao fundo a ilha Anvers.

Nos comunicávamos pelo radio cotidianamente para passar a meteorologia. Eles montaram um acampamento base a partir do qual se locomoviam por um território completamente inexplorado. Para retornar ao barco fizeram uma travessia com esquis puxados por kites, as imagens que trouxeram eram de pura aventura e liberdade.

Explorando a Península Antártica.

Leia o relato anterior da viagem da Kika

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