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Como destruímos o Guarujá, a ex-pérola do Atlântico

Guarujá: de Pérola do Atlântico, para uma cidade onde impera o mau gosto e a violência

Se fizermos um exercício de imaginação, é possível perceber como era espetacular a ilha de Santo Amaro onde fica o Guarujá. E notar como conseguimos deformá-la. O nome da cidade em tupi, Guarujá (GU-AR-Y-YA), significa ”passagem estreita”; entretanto há  outras definições.  Outra interpretação, segundo o historiador, escritor, poeta, jornalista, crítico de arte, cantor de ópera, professor de História e Geografia e polígrafo Francisco Martins dos Santos (1903 – 1978), a palavra  significa “abertura de um lado a outro” aludindo ao antigo aglomerado de rochas que separa a Praia de Pitangueiras da Praia de Guarujá, atual Praia das Astúrias.

A ilha de Santo Amaro antes da ocupação

Antes de sua ocupação, talvez, Santo Amaro fosse uma das ilhas mais bonitas do nosso litoral. Morros cobertos de mata atlântica, praias espetaculares de todos os tipos: grandes, como Pitangueiras; charmosas, como Pernambuco; pequenas, como as praias Preta e Branca. Algumas surpreendem com  cachoeiras que descem até a areia, caso de Iporanga.

Hoje, de um lado da ilha fica o maior porto do Brasil, Santos, as favelas de Vicente de Carvalho e o polo industrial de Cubatão que contribuíram para desfigurar a paisagem. Do outro da ilha, há o canal de Bertioga que resiste cercado por manguezais — ralos, mas ainda presentes — num cenário que beira o milagre.

A especulação degrada qualquer cenário. Impossível não se revoltar. Que, ao menos, sirva de exemplo para outros não fazerem o mesmo.
Polo de Cubatão, vizinho incômodo.

O lado histórico, pouco valorizado, da ilha de Santo Amaro

A ilha de Santo Amaro é parte importante de nossa história, a primeira vila erguida no Brasil foi em São Vicente, ao lado do Guarujá. Ainda no aspecto histórico, a ilha guarda relíquias quinhentistas, como a fortaleza da Barra Grande, surpreendentemente, em bom estado de conservação.

No lado norte, na barra de Bertioga, outro forte importantíssimo, e igualmente em bom estado, o forte São João da Bertioga, onde foi assinada a “paz de Iperoig” quando, a duras penas, os padres Manoel da Nóbrega, e José de Anchieta, conseguiram acalmar o cacique Cunhabebe, assinando o primeiro tratado entre colonizadores e índios.

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O mangue no Canal da Bertioga

A primeira vila teria sido erguida na praia da Enseada

Observação: como explica o internauta Cassio Ramos Ribeiro, em mensagem ao término desta matéria, São Vicente não teria sido a primeira vila, “a primeira vila do Brasil não foi São Vicente, mas sim uma vila, encontrada em ruínas, por Martim Afonso de Sousa e descrita por Frei Vicente do Salvador, o historiador do século XVI, que nos contou sobre a fundação de São Vicente. Esta era a vila de Santo Amaro que ficava na praia da Enseada. Beauchamp, também historiador, escreve no século XIX, que a vila foi fundada em 1515, mas que sua ocupação era bem anterior a essa data”.

Mas, quem se importa com nossa história?

Fortaleza de Barra Grande

Guarujá e o glamour do passado

Quando os paulistas se deram conta de tanta beleza próxima da capital transformaram Guarujá no balneário das elites. Casas de madeira pré-fabricadas foram importadas dos Estados Unidos e ali montadas.

A avenida beira-mar e a praia de Pitangueiras no início do século 19. Imagem CEDOM.

Eram chalés, que abrigavam os ricos de São Paulo durante as férias. Este primeiro núcleo, na praia de Pitangueiras, ainda tinha o famoso Grande Hotel e seu cassino.

Guarujá em Cartão Postal, do acervo de Waldir Rueda
Guarujá nos anos 40 (acervo de Francisco Carballa).
Nos anos 50 ergueram os primeiros prédios.

Casarão do avô de Vicente de Carvalho

Outra relíquia dos tempos antigos é o casarão que pertenceu ao avô do poeta Vicente de Carvalho (O primeiro a dizer não para a privatização de parias, ainda nos anos 20), o Coronel Botelho. Candida Botelho publicou a foto e contou sua história no Facebook, explicando: “Uma relíquia que vai morrendo pouco a pouco. Este casarão, situado no sopé do Morro do Botelho, provavelmente é a construção mais antiga da cidade depois das fortalezas.”

A caso do avô de Vicente de Carvalho.

Segundo os registros encontrados pela arquiteta Patrícia Lima, já em 1790, este imóvel aparece citado em documentações dos tempos coloniais. A escritura mais antiga deste imóvel data de 1864, já no período do império. Patrícia Lima foi a responsável pela preparação da documentação enviada ao Condephaat para o tombamento do imóvel em 2005.”

E finalizou: “Vergonha total dos prefeitos, dos governadores e dos seus secretários de cultura que fingem que esse imóvel não existe.”

1942, o primeiro prédio. Salte no tempo…

Nesse ano foi erguido o primeiro prédio, o edifício Pitangueiras, com oito andares. A muralha de concreto começava a ser erguida. Guarujá foi ocupada sem nenhum planejamento, como sempre acontece no litoral.

Um dos prédios mais icônicos do litoral paulista é o Edifício Sobre as Ondas cujo alvará de construção é de 1945. Trata-se de um projeto modernista localizado no promontório que separa as praias de Pitangueiras e Astúrias. Interessante saber que em 1940 o Guarujá tinha apenas 7 mil habitantes, mesmo assim os prédios já começavam a subir. O Sobre as Ondas ficou pronto em 1951.

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Residência Sobre as Pedras, ou Casa da Pedra, Praia das Astúrias, Guarujá. Imagem, Wikipedia.

Outra construção notável é a Residência Sobre as Pedras, outra construção modernista de 1956.

Edifício Sobre as Ondas. Reprodução.

No lado rico, que dá para o mar, a beleza de suas praias foi-se embora. Trocada por uma fila interminável de prédios, formando uma barreira disforme de concreto. Do lado pobre, no interior, ou na parte da ilha que dá para o porto de Santos, a favelização explodiu. Guarujá tem 311 mil habitantes, 40 mil, acredita-se, vivem em favelas.

Como a especulação destrói um importante ecossistema, os costões. Eles, “não podem ser ocupados” , a não ser no Brasil, onde “há leis que não pegam”.

Consequências do processo de degradação

Junto com a destruição de sua linda paisagem veio a degradação. Os serviços públicos pioraram. Saneamento, e policiamento, são insuficientes,  assim como a limpeza das praias.

Isso fez com que os ricos que ainda frequentam a ilha se fechassem em condomínios, privatizando suas praias favoritas, como Iporanga, ou São Pedro, com a complacência do poder público.

Ali, pelo menos, os condôminos fazem as regras. Escolhem quem pode, ou não, entrar; pagam sua própria guarda particular e garis para limparem “suas praias”, criando mais um gueto no litoral. Nestes poucos, e proibidos espaços privatizados, reina a paz. Mas fora deles…

Vale arrebentar a paisagem, que é de todos, para alguns ‘terem vista para o mar’. A especulação não tem limites.

Guarujá bate recordes de roubos e assassinatos

No site The Eagle View, descobri o artigo O Triste Fim do Guarujá, que mostra uma série de estatísticas publicadas pela imprensa. É de arrepiar. Em 2013 o Guarujá já atingia a maior taxa de roubos por cem mil habitantes.

Um ano depois, 2014, acontecia um roubo por hora. Mais dois anos e chegamos em 2016 quando o crime continua a ganhar a guerra. Em um fim de semana houve 22 sequestros de pessoas que, “feitas reféns, foram torturadas”.

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O autor do artigo explicou o que levou Guarujá a este cenário de guerrilha urbana. Para Antonio Fernando Pinheiro Pedro,

Os três vértices desse triângulo de sumidouros têm identidade:

1- a corrupção histórica inoculada na prefeitura (seja qual for a gestão), que transformou o controle do uso do solo da cidade num leilão de interesses e compadrios;

2- a perseguição sistemática patrocinada pelo Ministério Público contra QUALQUER iniciativa urbanística ou imobiliária de revitalização da cidade, mistura de aparelhamento ideológico e xiitismo ambiental abominável que judicializou empreendimentos, desmoralizou a segurança jurídica e desestimulou qualquer investimento;

3- a política “criminosa” de segurança pública do estado na região.

O  Atobá  parece não se  ‘encaixar’ na “paisagem que construímos”.

Por trás da especulação estão empresários, milionários, políticos e grandes empresas

Mesmo acompanhando de longe, concordo 100% com o veredicto do autor. É o que acontece em 99% das prefeituras dos municípios da zona costeira: a corrupção, através da ‘venda’ de mudanças na legislação sobre ocupação e uso do solo.

Vejo casos iguais a cada dois ou três novos municípios visitados. Não canso de repetir: na zona costeira, quem manda na ocupação e uso do solo é a especulação imobiliária. A força que existe por trás dela é fenomenal, envolve grandes empresas, milionários, políticos, e os setores de turismo e da construção civil.

Junto vem a degradação, e com ela, aumento da criminalidade.

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A especulação banaliza a paisagem, ocupa áreas protegidas, destrói o patrimônio público

Com a especulação acontece a imediata destruição da paisagem que é um bem coletivo, e ‘protegida’ por todas as Constituições desde a de 1934 até a de 1988. Permite-se que áreas protegidas sejam ocupadas. Em seguida, a prefeitura, ao invés de embargar a construção, leva ao  local as melhorias como luz, água, e outras.

Com as benfeitorias, o preço do imóvel irregular vai às alturas, remunerando toda a cadeia marginal.

Guarujá não é exceção

Infelizmente, a ex-pérola do Atlântico não é exceção. Em todas as regiões do litoral brasileiro há casos semelhantes. No sul, por exemplo, temos a aberração do Balneário de Camboriú. No Nordeste, entre muitas outras, Pipa, no Rio Grande do Norte. E na região Norte, o exemplo que também não é único, é Salinópolis.

Falta-nos ética, estamos aqui de passagem

Aproveitar cada momento de nossa viagem pela Terra não implica deixar  duras pegadas, irreversíveis, que produzimos em série. As futuras gerações têm o direito de conhecer a zona costeira como nós a conhecemos. Ainda com sua beleza preservada.

A paisagem é um bem de todos. Não é possível que transformemos nosso litoral num imenso Guarujá.

Assista ao vídeo Um passeio no Guarujá nos anos 30

Fonte: http://www.ambientelegal.com.br;The Eagle View.

Mas é o que está acontecendo.

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