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Carcinicultura no Nordeste, escândalo ambiental fora da mídia

Carcinicultura no Nordeste, escândalo ambiental Fora da mídia

A história que vamos contar tem tudo a ver com suas escolhas como consumidor, e lembra um filme de horror. Contempla a extirpação de grandes espaços de mangue, área protegida (APP – Área de Preservação Permanente); e envolve crimes de morte, ameaças e intimidações, como testemunhei sobre a carcinicultura no Nordeste.

Manguezais são o segundo mais importante criatório marinho depois dos corais. Os produtores de camarão no Nordeste continuam ocupando mangues, áreas públicas protegidas, e ignoram os muitos e importantes serviços ecossistêmicos que eles nos oferecem. A carcinicultura no Nordeste representa um escândalo ambiental que a mídia quase não aborda.

Quando fiz a primeira viagem pela costa brasileira, saindo do Oiapoque e chegando no Chuí dois anos depois, fiquei impressionado com vários aspectos, bons, e ruins; o pior era o descaso com o tema que hoje debatemos. Ao entrar  no Piauí, e até o Sul da Bahia, o que mais vi foram estuários degradados pela carcinicultura. O único Estado a contestar a atividade era a Paraíba.

Em todos os outros, quando perguntava sobre carcinicultura os funcionários públicos desviavam do tema, rodeavam, e não explicavam. Como seria possível explicar a destruição impunemente a um dos mais importantes berçários de vida marinha protegido pela legislação ambiental?

O escândalo da Operação Marambaia no Ceará

Em 2008, a Polícia Federal iniciou no Ceará a Operação Marambaia, investigando licenças ambientais fraudulentas em áreas de preservação, estudos de impacto ambiental manipulados, tráfico de influência, peculato, prevaricação, suborno e outros crimes que favoreciam a especulação imobiliária no litoral de Fortaleza.

Geólogo condenado a 32 anos por laudos fraudulentos

O juiz Danilo Fontenele, da 11ª Vara Federal, condenou o geólogo Tadeu Dote Sá, de 62 anos, proprietário da Geoconsult, a uma pena de até 32 anos e meio. Ele recebeu a sentença por elaborar laudos fraudulentos que viabilizaram quatro empreendimentos construídos em praias do Estado.

Professor da UFC condenado à pena acima de 30 anos

Jornal O Povo: ‘Outro sentenciado que teve uma pena acima de 30 anos foi o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luís Parente Maia. Ele, que já coordenou o Laboratório de Ciências do Mar (Labomar), pegou 32 anos em regime fechado e terá de reembolsar R$ 2 milhões por dano ambiental’.

Parente Maia utilizava pessoal e material da UFC para fazer seus pareceres de impacto ambiental, e ‘recebia honorários que eram pagos pelos empreendedores’.

‘Entre os condenados da Operação Marambaia está Raimundo Bonfim Braga (Kamundo), ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), que pegou seis anos em regime aberto. Também Hebert de Vasconcelos Rocha, ex-superintendente estadual do Meio Ambiente (Semace) durante a primeira na gestão do governador Cid Gomes, que pegou sete anos’.

Pareceres pagos à pesquisadores

Atenção: a carcinicultura conseguiu diversos ‘pareceres’ semelhantes aos mencionados, alguns assinados pelo mesmo Luís Parente Maia (coordenador do Labomar, da UFC) negando impacto ambiental mesmo para ações que extirpavam manguezais.

Como a Justiça no Brasil, é a Justiça do Brasil, em 2019 o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF 5), absolveu nove réus da Operação Marambaia, já condenados pela Justiça Federal. O décimo envolvido foi absolvido pelo processo ter prescrito. O décimo primeiro teve a pena reduzida, e outro réu morreu antes do julgamento.

Escândalo na carcinicultura da Bahia

Como disse, parte das fazendas é de políticos, outras, nas mãos de gente do crime; caso de uma das maiores da Bahia (à época da viagem, 2005 -2007), a Lusomar, no município de Jandaíra.

Investiguei os antecedentes da empresa. Tudo indicava que o então governador da Bahia, Paulo Souto, financiou as obras com dinheiros públicos do FNE (Fundo Constitucional do Nordeste).

O FNE estabelece em suas diretrizes a “preferência aos mini e pequenos empreendedores” e projetos que “protejam o meio ambiente”. Apesar disso, Paulo Souto aprovou o empréstimo em troca de uma contribuição da Lusomar para a campanha de um prefeito alinhado à sua corrente política no município de Jandaíra, onde fica a fazenda. O antigo prefeito era aliado de ACM, adversário e rival político de Souto.

A Lusomar cumpriu sua parte, elegeu Herbert Maia, do PDT, como prefeito de Jandaíra. Fui atrás. Ele tem dois CPFs, e farta ficha policial. Cinco processos na Justiça de Alagoas, 41 no TJ de Sergipe, e 11 processos do Tribunal de Contas da União.

Herbert Maia envolveu-se em diversos crimes, incluindo emissão de notas fiscais frias, roubo e desmanche de veículos, além de crimes de pistolagem. Em 1988, as autoridades o prenderam em Sergipe, acusado de liderar uma quadrilha que vendia notas fiscais falsas para várias prefeituras.

Pesquisas indicam que ele também esteve envolvido em homicídios, como o do promotor de Cedro de São João, Waldir de Freitas Dantas, assassinado em 19 de março de 1998.

Além disso, seu comparsa, Cristinaldo Santana, conhecido como “Veneno”, o denunciou por receptação e desmanche de carros roubados. Esses casos ganharam destaque após sua vitória nas eleições, onde obteve 1.797 votos contra 1.721 do segundo colocado.

Este é mais um dos exemplos de como funciona parte da carcinicultura no Nordeste.

Sustentável ou insustentável?

Os camarões criados em fazendas recebem alimentação à base de farinha de peixe, cuja produção exige sete quilos de pescado para cada quilo de farinha. Esses peixes, embora fora do foco da pesca profissional, têm importância crucial na cadeia de vida marinha. O paradoxo é evidente: para produzir um quilo de crustáceos, sacrificam-se sete quilos de peixes, tornando a atividade completamente insustentável.

E os problemas não param aí. A carcinicultura gera poucos empregos, em sua maioria sazonais e sem carteira assinada, enquanto deixa um rastro de destruição ambiental. Durante a despesca, a água poluída dos tanques retorna para a gamboa, contaminando o restante do manguezal e ampliando o impacto negativo da atividade.

Escracho ambiental ausente da mídia

Apesar de parte das fazendas serem de políticos, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, e até um ex-presidente da República, a mídia tupiniquim raramente abre um parágrafo para comentar a carcinicultura. Assim, como o público fica sabendo? A despeito disso, a mídia internacional botou a boca no trombone.

Desde 2005 o Mar Sem Fim denuncia a criação de camarões praticamente sozinho (entre a mídia) no Brasil.

Você come camarão? Se sim, use seu poder de consumidor

Saiba que até o início dos anos 2000, a maior parte da produção era exportada para o exterior. Os clientes de fora, ao descobrirem o impacto ambiental, boicotaram o produto. A partir de então a quase totalidade da produção passou a ser vendida no mercado interno.

Aqui entra o poder do consumidor. Ao comprar camarão, verifique a origem do produto. Se for do Nordeste, exerça seu poder. Dê preferência ao do Sudeste (onde quase não há carcinicultura).

Conheça Jeovah Meireles

Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e dos Programas de Pós-Graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA). Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona (2001).

Imagem, http://www.escolhas.org/.

Desenvolve pesquisas em Geociências, com ênfase em Geografia Física e Geomorfologia.

Imagem de abertura: https://theecologist.org/

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