Carcinicultura no Nordeste, escândalo ambiental Fora da mídia
A história que vamos contar tem tudo a ver com suas escolhas como consumidor, e lembra um filme de horror recheado de escândalos. Contempla a extirpação de grandes espaços de mangue, área protegida (APP – Área de Preservação Permanente) até recente desmonte de mais uma regra pelo ministro que deveria proteger o meio ambiente; e envolve crimes de morte, ameaças e intimidações, como testemunhei. Manguezais são o segundo mais importante criatório de vida marinha depois dos corais. Mangues (até então) são áreas públicas protegidas, que foram ‘doadas’ aos produtores de camarão do Nordeste que Ricardo Salles pretende proteger; sem falar nos muitos e importantes serviços ecossistêmicos que presta. Carcinicultura no Nordeste, escândalo ambiental fora da mídia.
Quando fiz a primeira viagem pela costa brasileira, saindo do Oiapoque e chegando no Chuí dois anos depois, fiquei impressionado com vários aspectos, bons, e ruins; o pior era o descaso com o tema que hoje debatemos. Ao entrar no Piauí, e até o Sul da Bahia, o que mais vi foram estuários degradados pela carcinicultura. O único Estado a contestar a atividade era a Paraíba.
Em todos os outros, quando perguntava sobre carcinicultura os funcionários públicos desviavam do tema, rodeavam, e não explicavam. Como seria possível explicar a destruição impunemente a um dos mais importantes berçários de vida marinha protegido pela legislação ambiental?
O escândalo da Operação Marambaia no Ceará, um dos muitos exemplos do que está por trás da carcinicultura
Em 2008 foi iniciada no Ceará a Operação Marambaia, investigação da Polícia Federal, sobre licenças ambientais fraudulentas em áreas de preservação, estudos de impacto ambiental viciados, tráfico de influência, peculato, prevaricação, suborno e outros crimes que favoreciam a especulação imobiliária no litoral de Fortaleza.
Pena de 32 anos para o geólogo por ‘laudos fraudulentos’
O juiz Danilo Fontenele, da 11ª Vara Federal ‘aplicou pena de até 32 anos e meio a um dos acusados, o geólogo Tadeu Dote Sá, 62 anos, proprietário da Geoconsult’. Foi acusado ‘por elaborar laudos fraudulentos para a viabilização de quatro empreendimentos construídos em praias do Estado’.
Professor da UFC condenado à pena acima de 30 anos
Jornal O Povo: ‘Outro sentenciado que teve uma pena acima de 30 anos foi o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luís Parente Maia. Ele, que já coordenou o Laboratório de Ciências do Mar (Labomar), pegou 32 anos em regime fechado e terá de reembolsar R$ 2 milhões por dano ambiental’.
Parente Maia utilizava pessoal e material da UFC para fazer seus pareceres de impacto ambiental, e ‘recebia honorários que eram pagos pelos empreendedores’.
‘Entre os condenados da Operação Marambaia está Raimundo Bonfim Braga (Kamundo), ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), que pegou seis anos em regime aberto. Também Hebert de Vasconcelos Rocha, ex-superintendente estadual do Meio Ambiente (Semace) durante a primeira na gestão do governador Cid Gomes, que pegou sete anos’.
Pareceres pagos à pesquisadores
Atenção: a carcinicultura conseguiu diversos ‘pareceres’ semelhantes aos mencionados, alguns assinados pelo mesmo Luís Parente Maia (coordenador do Labomar, da UFC) negando impacto ambiental mesmo para ações que extirpavam manguezais, áreas de preservação permanente, as APPs.
Como a Justiça no Brasil, é a Justiça do Brasil, em 2019 o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF 5), absolveu nove réus da Operação Marambaia, já condenados pela Justiça Federal. O décimo envolvido foi absolvido pelo processo ter prescrito. O décimo primeiro teve a pena reduzida, e outro réu morreu antes do julgamento.
Escândalo na carcinicultura da Bahia, apenas mais um exemplo de quem é quem na carcinicultura
Como disse, parte das fazendas é de políticos, outras, nas mãos de gente do crime; caso de uma das maiores da Bahia (à época da viagem, 2005 -2007), a Lusomar, no município de Jandaíra.
Investiguei os antecedentes da empresa. Tudo indicava que o então governador da Bahia, Paulo Souto, financiou as obras da empresa com dinheiros públicos do FNE (Fundo Constitucional do Nordeste).
O FNE afirma em suas diretrizes “preferência aos mini e pequenos empreendedores”, e projetos que “protejam o meio ambiente”. Paulo Souto favoreceu o empréstimo em troca da Lusomar contribuir para a campanha de um prefeito de sua corrente política no município de Jandaíra onde se localiza a fazenda (o antigo prefeito era aliado de ACM, inimigo e rival político).
A Lusomar cumpriu sua parte, elegeu Herbert Maia, do PDT, como prefeito de Jandaíra. Fui atrás. Ele tem dois CPFs, e farta ficha policial. Cinco processos na Justiça de Alagoas, 41 no TJ de Sergipe, e 11 processos do Tribunal de Contas da União.
Herbert Maia estava envolvido em emissão de notas frias, roubo e desmanche de veículos, e crimes de pistolagem. Em 1988 foi preso em Sergipe. Acusação: líder de quadrilha, vendia notas fiscais frias para diversas prefeituras.
Segundo nossa pesquisa, também estava envolvido em crimes de morte, como o que vitimou o promotor de Cedro de São João, Waldir de Freitas Dantas, assassinado em 19 de março de 1988.
Por fim, Herbert foi denunciado pelo comparsa de nome Cristinaldo Santana, vulgo “ Veneno ”, de receptação e desmanche de carros roubados. Os casos vieram à tona com sua “ vitória ” nas eleições (1797 votos contra 1721 do segundo colocado).
Este é mais um dos exemplos de como funciona parte da carcinicultura no Nordeste.
Carcinicultura no Nordeste: sustentável ou insustentável?
Os camarões são alimentados com farinha de peixe. Para produzir um quilo de farinha, são necessários sete quilos de peixes não visados pela pesca profissional, mas com igual importância na cadeia de vida marinha. Note o paradoxo: para produzir um quilo de crustáceos, mata-se sete quilos de peixes. A conta não fecha, é totalmente insustentável.
Isto não é tudo. Além de gerar poucos empregos, a maioria sem carteira assinada mas empregos sazonais, a atividade é extremamente poluidora. Na hora da despesca, a água poluída dos tanques de criação é devolvida para a gamboa, contaminando o restante do manguezal não extirpado.
Sobre estas questões o ministro que deveria proteger o meio ambiente, mas faz ao contrário, nada falou quando tirou a proteção legal dos manguezais.
O maior escândalo de todos: carcinicultura no Nordeste, escracho ambiental ausente da mídia
Apesar de parte das fazendas serem de políticos, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, e até um ex-presidente da República, a mídia tupiniquim raramente abre um parágrafo para comentar a carcinicultura. Assim, como o público fica sabendo? A despeito disso, a mídia internacional botou a boca no trombone.
Desde 2005 o Mar Sem Fim denuncia a criação de camarões praticamente sozinho (entre a mídia) no Brasil.
Você come camarão? Se sim, use seu poder de consumidor
Pois saiba que até o início dos anos 2000, a maior parte era exportada para o exterior. Os clientes de fora, ao descobrirem o impacto ambiental, boicotaram o produto. A partir de então a quase totalidade da produção passou a ser vendida no mercado interno.
Aqui entra o poder do consumidor. Ao comprar camarão, verifique a origem do produto. Se for do Nordeste, exerça seu poder. Dê preferência ao do Sudeste (onde quase não há carcinicultura).
Podcast, conheça
Eles são o mesmo que um bom e velho programa de rádio. Só que agora, com a tecnologia disponível, são encontrados na internet através de variados aplicativos. Assim você ouve quando quiser.
Conheça Jeovah Meireles
Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e dos Programas de Pós-Graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA). Doutor em Geografia pela Universidade de Barcelona (2001).
Desenvolve pesquisas em Geociências, com ênfase em Geografia Física e Geomorfologia.
Imagem de abertura: https://theecologist.org/
Fontes: https://www20.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/12/03/noticiasjornalcotidiano,3357067/operacao-marambaia-11-condenados-por-crime-ambiental.shtml; https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/nove-reus-acusados-de-fraudes-em-licencas-ambientais-tem-sentencas-revistas-e-sao-absolvidos-1.2122890.
Ouça o podcast Fernando Henrique Cardoso e a Amazônia, e mais…