Brasil, a Iniciativa Azul, na contramão como sempre
Em sete de setembro foi apresentado, Brasil, a Iniciativa Azul, no 4º Congresso Internacional de Áreas Marinhas Protegidas, no Chile. O site do ICMBio anunciou a proposta: “a Iniciativa Azul foi anunciada pela delegação formada por representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a presença de parceiros, como o WWF e a Conservação Internacional.”
Brasil, a Iniciativa Azul: um banho de água fria
Parece bom, não? Ao contrário. Se percebemos no texto o reconhecimento das falhas do MMA e ICMBio, o que já é um começo, não vimos nas propostas apresentadas nada de bom. Elas foram mais um banho de água fria, ao menos para aqueles que, como este site, defendem a urgente criação de novas áreas marinhas de proteção integral.
E por que o banho de água fria? Porque…
O Brasil, a Iniciativa Azul propõe a pesca sustentável!
Segue o comunicado do ICMBio: “os principais pontos a serem abordados serão a pesca sustentável, as mudanças climáticas e suas consequências, as espécies invasoras e exóticas, a sedimentação excessiva das áreas costeiras e conservação da biodiversidade marinha.”
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Ganha um doce quem explicar como a pesca é sustentável. Essa história, que corre solta no ICMBio, é pura falácia. Durante a última série de documentários Mar Sem Fim, entre 2014 e 2016, visitamos todas as áreas marinhas federais ‘protegidas’. Entre aspas mesmo. Por que tudo que não são, é ‘protegidas’.
A falácia das RESEX
RESEX é a abreviação de Reservas Extrativistas Marinhas. Entre as áreas marinhas federais, ditas protegidas, estão 19 RESEX. O ICMbio assim as define: “Área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte. Sua criação visa a proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, assegurando o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. As populações que vivem nessas unidades possuem contrato de concessão de direito real de uso, tendo em vista que a área é de domínio público.”
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RESEX: “assegurando o uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (!?)
Nas 19 RESEX que visitamos, entrevistamos nativos, pescadores, chefes das UCs. Apesar do “uso sustentável”, defendido pelo ICMBio, em todas ouvimos reclamação idêntica. Um mantra: ‘…a pesca está acabando….’ ‘Não há mais grande cardumes…’ ‘…cada dia é mais difícil pescar…’, e assim por diante.
Gestores do ICMBio não sabem a quantidade de peixes ou crustáceos das RESEX
O ICMBio sabe do problema. Mas não o reconhece. O Mar Sem Fim relembra a situação comum em todas as 19 Resex: os gestores não sabem a quantidade de peixes, ou crustáceos que a área contém, muito menos a quantidade retirada por mês. Como é possível falar em sustentabilidade sem responder estas perguntas?
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E acredite, algumas Resex, como a de Tracuateua, no Pará, chegam a ter 9 mil famílias inscritas. Imagine a quantidade retirada para alimentar essa gente. Impossível a sustentabilidade.
Nesta Resex entrevistamos Donda, que foi presidente da associação dos usuários de 2008 até 2014. Ele é uma das lideranças mais respeitadas da unidade. Donda mora na comunidade de Nanã, distante 21 quilômetros de Tracuateua. Neste trajeto, diz ele, “há oito pontos de venda de crack”.
E a polícia, perguntei, não age, não dá em cima?
“Eles passam lá pra pedir propina”, respondeu…
Também entrevistamos Mandira, presidente da associação de usuários. Com o semblante triste, ele fala da época em que fisgar um Mero com até 180 quilos era prática comum. Era…
”Hoje não tem mais”, diz resignado.
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Atualmente os Meros estão na lista do Ibama de peixes ameaçados de extinção, ao lado de outras 97 espécies marinhas. É isso que acontece nas Resex.
Ainda sobre Tracuateua. A área protegida tem 27.864,08 hectares. O DIPLOMA LEGAL DE CRIAÇÃO é de 20 de maio de 2005. Até hoje a Unidade não tem Plano de Manejo, passados mais de 12 anos! 30% da população de Tracuateua, estimada em cerca de 30 mil pessoas, (IBGE) depende dela para sobreviver. E sabe qual a força tarefa da Unidade? Uma única pessoa, o chefe da UC, Paulo Henrique Oliveira.
Será que o ICMBio, e o MMA, não sabem desta realidade? Apresentaram isso no Chile?
Brasil: apenas 0,05% de toda a zona exclusiva econômica está protegida de forma integral
Durante a série de documentários entrevistamos especialistas. Entre eles o professor Mauro Maida, preservacionista, que chamou a atenção para o fato de que apenas 0,05% de toda a zona exclusiva econômica brasileira, com aproximadamente 3,6 milhões de quilômetros quadrados, ou 40% do tamanho do Brasil, está protegida de forma integral. Os outros 99,95% estão abertos a todos os tipos de usos.
Agora, durante o Congresso de áreas marinhas protegidas, o Brasil apresenta a ‘Iniciativa Azul’, propondo “que os principais pontos a serem abordados serão a pesca sustentável…”. Ouvi direito?
Iniciativa Azul reconhece as falhas do ICMBio cobradas por ambientalistas
O reconhecimento da biodiversidade, até agora desprotegida, está no parágrafo de abertura do comunicado: “os mares do Brasil são o lar de 1,6 mil espécies de peixes, 100 espécies de aves marinhas, 2,3 mil de invertebrados e outras 54 espécies de mamíferos.”
Em seguida o texto admite o tratamento desigual dado ao mar e zona costeira versus a parte continental brasileira (que tem cerca de 15% a 17% ‘protegidas’ por alguma forma de UC). Outro ponto positivo. Sem esse ‘mea culpa’ não poderíamos ter avanços.
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“Entretanto, apenas 1,5% (3,5 milhões de hectares) do nosso território marinho-costeiro está protegido. A expectativa é de atingir 10% da zona marinho-costeira até 2027, cumprindo compromissos internacionais na área de meio ambiente, dentre eles, o Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) e a Meta de Aichi Nº 11.”
ICMBio assume que o governo não é capaz de fazer tudo sozinho, mais um ponto positivo.
“Não será uma operação centrada nas mãos do governo. Nosso papel será o de direcionar a criação das áreas seguindo critérios de prioridade para a conservação das espécies, o potencial turístico e econômico, com foco na sustentabilidade” (a declaração é de Cláudio Maretti, diretor do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Novo banho de água fria da Iniciativa Azul
Voltamos ao comunicado do ICMBio: “além do anúncio da Iniciativa Azul, o Brasil apresentou outros destaques na área de conservação marítima.” O Mar Sem Fim chama a atenção para a expressão “destaques na área de conservação marítima”…E prossegue: “pesquisadores da Reserva Extrativista (Resex) Marinha de Cassurubá (BA) apresentaram o programa Monitoramento Ambiental Comunitário, um programa que tem como objetivo envolver os extrativistas nas atividades de proteção da unidade…”
RESEX de Cassurubá excelente retrato da falência deste tipo de Unidade de Conservação
A Resex de Cassurubá é um exemplo emblemático do que acontece. É inacreditável que tenha sido citada na conferência. Em nossa visita estivemos em Barra Velha, mais uma das comunidades da Resex. Conversamos com um dos líderes, Lasmar Vieira da Silva, sua família mora por ali há cinco gerações. Lasmar afirma que barcos de pesca de Nova Viçosa não respeitam a faixa de mar de 500 metros praia afora, liberada para a pesca apenas aos membros da Resex. Quando são pegos com a mão na massa alegam que não sabiam que estavam dentro da faixa proibida. Eles não teriam como medir a distância certa. A desculpa irrita profundamente o povo de Barra Velha.
Assassinatos nas Resex de Cassurubá
Lasmar estava preocupado. Segundo ele o pessoal de nova Viçosa é “gente perigosa”. “Andam armados, muitos são fugitivos da justiça”, e completou: “15 dias atrás mataram o tio dele”, apontando com o dedo um pescador ao lado.
“É verdade” confirmou o amigo, “e meu tio era paralítico”.
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Lixinha (analista da Resex) intervém, propõe cercar a área com boias, mas nem assim os pescadores se acalmam.
Será que na apresentação do Chile, mencionaram que pescadores se matam dentro da Resex de Cassurubá?
Resex de Cassurubá não sabe a quantidade de crustáceos da área protegida
Durante nossa visita conversamos, e acompanhamos o trabalho, de Anders Schmidt (UFSB), da Rede de Monitoramento de Andadas Reprodutivas de Caranguejos – REMAR.
Ele estuda os hábitos dos caranguejos-uçá para, um dia, saber ao certo qual a quantidade existente na área da Resex. Hoje, não se sabe. Muito menos a quantidade retirada.
Atenção: sobre esta questão há uma contestação de Anders Schmidt, a quem este site respeita e admira pelo envolvimento, o estudo, e o trabalho que desenvolve. Anders escreveu para este site. É muito importante que os leitores conheçam a posição deste nosso amigo. Ela está no final deste post, logo abaixo de “Artigos Relacionados.’
Não há mais peixes da RESEX de Cassurubá
Para encerrar visitamos o sítio Fábrica, onde mora o pescador, seu Eliseu. Muito simpático e falante, ele contou que tem oito “panos de rede” (como se referem às redes de pesca), mas nem se dá ao trabalho de arma-las. “Não pego nada, acabou o peixe”.
E quais seriam as novas áreas marinhas protegidas? O texto do ICMBio não diz…
Como ficam as áreas mais importantes de zona costeira e mar territorial, assuntos que já conversamos com as lideranças do MMA e do ICMBio? Nenhuma palavra sobre elas no comunicado da Conferência!!
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Como ficam a Cadeia Vitória-Trindade; o Albardão, no sul do país; a ampliação do PARNA de Abrolhos; e, finalmente, um de nossos maiores tesouros, os Penedos São Pedro e São Paulo?
Aaargh. Que gosto amargo ficou deste comunicado…
Brasil, a Iniciativa Azul, e as grandes ONGs na Conferência do Chile
Voltamos ao início do comunicado: “a Iniciativa Azul foi anunciada pela delegação formada por representantes do MMA e ICMBio, com a presença de parceiros, como o WWF e a Conservação Internacional.”
Este escriba foi convidado, anos atrás, para ser conselheiro da CI. Aceitei pelo respeito que tenho pelo Presidente do Conselho, Marcos de Moraes, que veio à minha casa fazer o convite. Ele é um empresário vencedor, pessoa extremamente inteligente e bem intencionada; ambientalista, fez belíssimos trabalhos em Ilhabela.
Ao aceitar o convite, pensei que teria oportunidade de questionar os trabalhos da CI no Brasil, com os quais não concordo, apesar de ver neles boas intenções. Mas, em todas as reuniões que participei não tive chance de questionar seja o que for. Como, assim me parece, todas as ONGs internacionais, as diretrizes da CI vêm de fora, ou seja, de outra realidade. E são aplicadas no Brasil. Um dos exemplos é a citada ação na RESEX de Cassurubá.
Fui, também, Conselheiro do Greenpeace, onde vivi exatamente a mesma situação: as diretrizes vinham de fora, dos chefes internacionais, e não há força capaz de mudá-las por aqui. Por este motivo, ainda hoje pedirei demissão do Conselho da CI. Ao criticar publicamente o comunicado da delegação brasileira e seus parceiros, não tenho mais condições éticas de permanecer no Conselho. Desejo, entretanto, que tenham sucesso e consigam de fato realizar o trabalho a que se propõem.
Documentários Mar Sem Fim
Eles foram veiculados pela TV Cultura por mais de um ano, com ótimos índices de audiência. E até hoje estão disponíveis neste site. Foi a primeira vez que todas as UCs federais marinhas foram levadas à TV. Mostrei cruamente a realidade que vi, que me foi contada pelos chefes das UCs, funcionários do ICMBio. No início, não era contrário às Resex. Procurei analisá-las e mostrá-las ao público com seus aspectos positivos e negativos.
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Quem leu meus textos sobre as UCs federais marinhas, percebe nitidamente que não havia preconceito contra qualquer um dos 12 tipos de UCs que temos. Mas, à medida que fui conhecendo cada um, acabei por formar posição. Uma delas diz respeito às APAs e RESEX. Se fosse minha a decisão, elas não existiriam. Foi o que aprendi nesta expedição. Respeito o atual presidente do ICMBio, pessoa inegavelmente inteligente, e de mente aberta. Respeito, e defendi publicamente, várias vezes, o atual ministro do MMA. Mas esta conferência do Chile, a julgar pelo comunicado do ICMBio, foi para mim um tremendo banho de água fria. Torço para estar enganado. Mas não posso deixar de comentar o que aprendi durante anos de documentários na costa brasileira.
Assista o vídeo onde os nativos do litoral falam sobre fiscalização, uma das funções do ICMBio.
Brasil, a Iniciativa Azul- um banho de água fria
Agora ouça o depoimento dos chefes de várias UCs visitadas, comentando a extrema pobreza, e falta de recursos das Unidades de Conservação federais marinhas. A culpa não é dos chefes, mas da União, que não investe no MMA e ICMBio. Considero, também, um erro total do ICMBio que jamais denunciou publicamente a falta de recursos. Trata-se, a meu ver, de uma falha da autarquia. Os professores reclamam sobre a escassez de recursos. A Polícia Federal torna pública a miséria em que vivem (caso recente dos passaportes). A Polícia Civil faz o mesmo, e provoca caos do Espírito Santo (outro caso recente). E assim por adiante. A pergunta que fica é: por que o ICMBio se omite? O público, que paga a conta, tem o direito de saber. A biodiversidade é nosso maior ativo. A ausência de denuncias do ICMBio é um tremendo equívoco. E contribui para este crime de lesa- pátria cometido pelos acima citados.