A travessia do Drake
Depois de abastecer para pelo menos dois meses no mar saímos de Ushuaia, domingo, 20 de dezembro. Puerto Williams, no Chile, 30 milhas abaixo, foi a primeira escala na etapa antártica da viagem.
No dia anterior tivemos um encontro inusitado. Uma bióloga brasileira, que trabalha como guia de turismo a bordo de grandes navios, veio nos visitar. Cláudia Roedel já fez diversas viagens para a Antártica. Gravamos uma boa entrevista, trocamos informações, e deixamos em aberto um possível reencontro na Antártica.
Puerto Williams, às margens do Beagle, é bem charmosa. Um aglomerado de casas, com ar bucólico, em torno de uma base naval, onde vivem cerca de 2 mil pessoas.
É um lugar de importância estratégica para o Chile, país que já se desentendeu com a Argentina, pela disputa da posse de três ilhas no canal de Beagle. E quase foram à guerra…
O Iate Clube Micalvi, mantido pela Armada chilena, é a cereja do bolo. A sede fica em um navio encalhado, que serve de molhe. Por dentro há um aconchegante bar, ponto de encontro de navegadores das altas latitudes. Na nossa visita ele estava em reformas. Mesmo assim foi uma alegria conhecer o boteco elogiado por Amyr Klink, Beto Pandiani, Oleg Belly, entre outros.
Dormimos fundeados ao lado do molhe. Amanhã vamos desembarcar e fazer os papéis. Mudamos de país, começa tudo outra vez…
Na segunda (21/12), cedinho, atracamos no molhe e recebemos os oficiais da imigração a bordo.
Em seguida saí para um rápido giro pela comunidade. Ao voltar, a boa notícia: nosso serviço de meteorologia indicava que estava se abrindo uma janela de tempo, suficiente para o Mar Sem fim cruzar o Drake ( 50 horas para as 450 milhas).
Encomendamos este serviço à empresa americana Commanders Weather. Ela nos manda e-mails com seus prognósticos. Do barco, por segurança, analisamos, e reenviamos o material ao meteorologista Rubens Junqueira Villela. O Villela estuda a previsão, e nos devolve com suas impressões. E os dois concordavam: a hora era aquela.
No primeiro dia, com rumo para a ilhas Elefant, conforme planejado, teríamos ventos de Noroeste, com até 30 nós, e vagas de 3 metros, a 3 metros e meio. Elas iriam nos pegar na alheta de popa, por boreste. Uma posição cômoda, a favor.
Navegamos de Puerto Williams, para Porto Toro, outra comunidade chilena, na saída pro Drake, animados com a boa nova.
No molhe, enquanto a tripulação preparava o Mar Sem Fim, guardando o bote, amarrando as coisas que ficariam no convés, arrumando as caixas de comida, etc, eu e o cinegrafista Cardozo descemos para um breve passeio.
Porto Toro é outra área de importância geopolítica. Por isto abriga um grupo de militares, e alguns pescadores de centojas. Deve ter algo como 50, a 60 habitantes, se tanto.
Antes do meio-dia, com todos embarcados, saímos pro mar.
A tática, proposta por Pedro, para evitar os ventos de través, seria rumar para a ilha Elefant. Na travessia do Drake predominam os ventos de Oeste. Navegando para Elefant, daríamos a popa ao vento.
Nas primeiras horas o Mar Sem Fim surfava a quase 10 nós, com ventos e ondas a favor.
Eu estava otimista e confiante. A preparação foi minuciosa. Milhares de itens checados. Dezenas de peças trocadas. Novos equipamentos incorporados, e os antigos revisados.
Já estamos com mais de duas mil milhas de viagem e tudo vai bem. Para completar, o Mar Sem Fim nunca foi tão bem tripulado. Temos a bordo, como skipper, um dos melhores profissionais do mercado: Pedro.
O primeiro dia, aquele em que teríamos o pior mar, estava se mostrando de boa lide. Às onze da noite o vento rondou de Noroeste para Sueste. E, dos 30, se aquietou nos seis nós de velocidade.
Ao longo do dia trocamos e-mails com os serviços de meteorologia. A dúvida era o rumo. Se mantivéssemos a proa em Elefant, mas diminuíssemos o ritmo de 7 nós de velocidade, por qualquer motivo, poderíamos ter mau tempo, um dia depois de nossa chegada, quinta, ou sexta feira (24/12, 25/12).
Ao longo da noite as ondas foram diminuindo. No dia seguinte, terça- feira, 22 de dezembro, voltou o NW, como previsto. Mas já sem a força inicial.
Foi um dia emocionante. Durante muitas horas fomos escoltados por Albatrozes.
O planeio da ave sobre as vagas, com suas asas abertas, superando a espantosa marca de mais de três metros de envergadura, brincando com ventos de 50, 60 nós, é cena admirada por todos os navegadores polares.
Do astrônomo, matemático, inventor e marinheiro, Edmond Halley, o primeiro a realizar uma viagem de cunho científico aos mares austrais, no século XVII, passando por James Cook, no seguinte, ou Shakleton e companhia, na fase heróica da conquista da Antártica, já no século XX; o albatroz sempre foi uma unanimidade: a síntese perfeita das águas austrais.
Conosco não foi diferente. Eu assisti, hipnotizado, uma série de acrobacias entre uma onda e outra. Nem o frio incomodava. O Albatroz gosta de plateia, ou é curioso. Chegava pertinho do Mar Sem Fim, em seus razantes e curvas, sempre elegante. Voar, para ele, é mais que necessidade. Parece puro prazer.
O Albatroz Errante nasce nas ilhas Georgia do Sul. Ao atingir a idade adulta, parte num voo ao redor do globo, sempre pelas regiões polares, podendo durar até três anos, às vezes mais. Entâo retorna ao ponto de partida, e dá sequência ao seu ciclo de vida.
Mais tarde, naquele dia, ao confirmarmos o mau tempo para os lados da ilha Elefant, no fim da semana, mudamos o rumo. Navegamos para o Sul, em direção à ilha Deception, onde há bom abrigo.
Dia 23 acordei cedo. Coloquei uma roupa pesada, e iniciei meu turno às seis da manhã. Como sempre, ao assumir, plotei nossa posição na carta. Em seguida medi quanto faltava. Fiquei feliz. De madrugada teremos terminado a travessia. O mar continuava bom, cada vez mais liso, conforme previsto.
Duas horas depois, passei meu turno ao Pedro, e voltei pra cabine. Ainda estava me enrolando, tentando fechar as brechas do saco de dormir, quando percebi mudanças na rotação dos motores.
Pulei da cama. Não acreditei quando cheguei na sala. A porta da casa de máquinas estava aberta. Lá de baixo vinham as vozes de Alonso e Pedro falando sobre reversores…
Meus Deus, não pode ser, pensei. Não aqui!
Até um resumo posterior é doloroso pra ser escrito. Contar o que passamos faz lembrar cada momento de novo. E são recordações difíceis. A angústia produz um monte de perguntas, e dúvidas, que assaltam minha cabeça: como é possível perder dois reversores ao mesmo tempo? Já é raro acontecer com um. Dois, ao mesmo tempo, e sem ter nada nas hélices, nunca ouvi falar. Também não houve qualquer aviso pela marcação dos relógios do painel. Uma das obrigações que impus é o preenchimento, por todos que fazem turno, a cada hora, de uma planilha com os registros de cada relógio do painel. E eles estavam marcando rigorosamente o mesmo, e recomendado, nível de pressão. É lei de Murph ao quadrado? Por que comigo? Qual o motivo? Onde errei?
Meus reversores foram revisados ao longo da preparação, mais de uma vez, e por representantes da fábrica. Nenhum deles sugeriu qualquer mudança, ou troca de componentes, em razão da viagem à Antártica. Aparentemente estava tudo em ordem.
Mas, faltando pouco mais de cem milhas até o arquipélago das Shetland do Sul, os dois pifaram ao mesmo tempo. A segurança extra de ter dois bons motores a bordo (Detroit Diesel, praticamente inquebráveis) acabava.
Os reversores podem ser comparados às caixas de marchas de um automóvel. São eles que engatam os motores para a frente, ou para a ré. Ficar sem reversor significa estar a pé. Os motores funcionam, mas o barco não sai do lugar.
Ao perceber a situação, chamamos pelo rádio as bases chilenas em que fizemos escala: Puerto Williams e Porto Toro. Demos nossa posição, explicamos a pane, e aguardamos.
Menos de uma hora depois, nova troca de mensagens aconteceu via rádio. Um navio da Armada chilena, distante pouco mais de cem milhas de nossa posição, estava a caminho. Eram cinco horas da tarde, do dia 23 de dezembro, quando recebemos o aviso.
Felizmente Deus estava conosco. O mar, a esta altura, era de almirante: sem vento, ou vagas. Totalmente alisado.
Na manhã seguinte chegou o rebocador Lautaro.
O Chile e Argentina se revezam e deixam sempre um navio nestas águas, de prontidão, para ajudar as bases científicas das Shetland do Sul.
Foi graças a ele que chegamos à ilha Rei George, no dia de Natal. O Lautaro nos rebocou.
Abatidos, mas sem perder o ânimo ou a iniciativa, passamos ao telefone para conversar com mecânicos e peritos. Não demorou até descobrir o que havia acontecido.
Na casa de máquinas, Pedro comandava uma parte da tripulação com maestria. Operacões mecânicas complexas eram executadas várias vezes por dia. Peças enormes, e pesadas, eram removidas. Elas eram abertas, verificadas e recolocadas no lugar.
Nossas ferramentas são as mesmas de uma boa oficina média. Das menores, às maiores, passando por algumas específicas, como maçaricos, soldas, talhas que aguentam toneladas, macacos hidráulicos, enfim, tudo que é preciso para montar e desmontar um motor.
Em seguida encomendamos peças. Nossa equipe de apoio, em terra, mostrou eficiência. Em questão de horas o pacote estava pronto. Para não perder tempo, Regina, minha assistente, trouxe tudo até Punta Arenas, onde foram entregues na companhia aérea que opera voos diários para a base chilena, na ilha Rei George.
Elas chegaram ontem (31/12). No mesmo dia o Mar Sem Fim voltou a navegar.
O tempo passado em Rei George foi aproveitado da melhor forma possível. Descemos em terra várias vezes, conhecemos as bases da Rússia, e Alemanha, na mesma praia em que fica a chilena.
Descobrimos um deprimido chefe russo, que andava pela enseada solitário, catando o lixo que chega do mar, numa tentativa de se redimir pelo derrame de diesel de seus tanques de combustível.
Visitamos uma linda igreja ortodoxa, construída em madeira no topo de uma colina, com vista espetacular da baía Fields, onde estávamos ancorados.
Ficamos amigos de um chileno muito especial, Alejo Contreras, que tem uma casa na base chilena, onde trabalha para a companhia de aviação. Com o bote dele visitamos uma geleira onde havia focas leopardo, um impressionante predador, do topo da cadeia animal. E ainda conhecemos uma pequena colônia de elefantes marinhos, numa enseada que dá para o Drake.
Conversando com Alejo, que esteve a bordo para um copo de vinho tinto acompanhado por lascas de presunto de parma, falamos sobre o grande aparato militar dos chilenos na Antártica (não só deles. ..) Só na base Eduardo Frei, onde estivemos, são cerca de 50 pessoas entre oficiais da marinha, ou aviação (alguns acompanhados por suas mulheres), para apenas UM pesquisador.
O sonho de um continente desmilitarizado, sem fronteiras políticas, aberto e dedicado apenas à pesquisa científica, permanece um desejo.
Entre os países com bases na região, sete têm pretensões territoriais: Chile, Argentina, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia, França e Noruega. E até demarcaram as áreas que julgam ser de sua propriedade. Os motivos são os mais variados. Vão desde os protagonismos históricos, até a proximidade física, a continuidade geológica, etc.
Para evitar conflitos, no período da guerra fria, os Estados Unidos patrocinaram um acordo, por fim assinado em 1959. O Tratado Antártico congelou estas pretensões por tempo indefinido, consagrando o continente à pesquisa científica, e à cooperacão internacional. No papel funciona muito bem. Mas na prática, o que não falta por aqui, são militares. Toda a infraestrutura, de qualquer base, é providenciada por eles.
Documentamos tudo que foi possível. Afinal, o objetivo da viagem é produzir uma série de documentários para a Rede Bandeirantes. Nossa história estará no ar a partir de fevereiro.
Com tudo pronto, no primeiro dia do ano deixamos as Shetland do Sul, em direção às Ilhas Argentinas, na Península Antártica. Navegamos para a latitude 65 graus e 14 minutos Sul, o mais próximo do Polo Sul (que fica nos 90 graus Sul) que devemos chegar.
De lá retornamos devagar, costeando o litoral da Antártica, até chegarmos de volta às Shetland, onde temos um encontro marcado na base brasileira Comandante Ferraz.
Nesse momento reina a paz por aqui. A moral tornou a subir, e a confiança se renova. Navegamos no estreito de Gerlache, um dos cenários mais espetaculares que conheci. Céu azul, sol esquentando, barômetro em alta. Vento leste de seis nós. Do meu lado direito a ilha Brabant, com picos dramáticos, de 2.500 metros de altura. Na esquerda o litoral da Antártica, ocupado por morros com até mil metros. Tudo coberto de neve. O estreito está coalhado de icebergs, de todos os tamanhos, formas e cores.