De Puerto Natales para Ushuaia
Fizemos esta perna, de 400 milhas, em um semana.
Saímos de Puerto Natales, dia 5, e chegamos em Ushuaia, dia 12.
Uma parte do roteiro foi o mesmo da ida, em sentido inverso. Não há outra opção para sair de Puerto Natales, no fim da linha.
Retornamos pelo canal Smith até o estreito de Magalhães. Mas chegamos numa hora ruim. Ventava de Oeste, 40 nós. Nas rajadas, 45. Nesta altura, quase saída para o Pacífico, o estreito chega a 15 milhas de largura. E é aberto para o mar, sem proteção. Quando venta lá fora as ondas entram direto. Espremidas pelas margens, ou quando encontram corrente contrária, elas têm a tendência de ficarem um pouco mais altas, na altura, e mais curtas, na frequência. Tudo que um navegador não quer.
Era este o cenário quando reentramos no Magalhães. Para completar, o dia estava nublado, frio e chuvoso. Quer mais? As ondas vinham de través, o ponto fraco deste tipo de barco.
Ventos fortes de través, e trawlers, não se dão muito bem. Pedrão orçou, saindo da rota mais curta, de modo a diminuir o balanço. Quando conseguimos altura suficiente, demos a popa ao mar, e viemos surfando. Nesta etapa, em termos de navegação, este foi o detalhe que merece registro.
Ao sairmos do balança-mais-não-cai, do estreito, nos enfiamos na caleta Uriarte, para passarmos uma noite sem chacoalhar.
No dia seguinte, ainda com mar de popa, descemos até a altura do cabo Froward que tínhamos cruzado ao sair de Punta Arenas. Mais ou menos em frente, na altura da ilha Capitão Aracena, onde dormimos na ida, há uma grande fazenda de salmões em outra baía.
Faz tempo que eu queria visitar uma delas.
A maricultura ainda é um problema não resolvido no mundo. A razão é muito simples: a ração usada nas fazendas é feita à base de farinha de peixes. Espécies até agora sem valor econômico, deixadas de lado pelas frotas industriais, passaram a ser capturadas para serem transformadas em alimento para as criações. Para cada quilo de farinha é preciso entre três e quatro quilos de peixes. Com isto o volume da carne produzida é sempre menor que o total consumido como alimento.
A conta não fecha. A prazo, é insustentável. Retira-se do mar cada vez mais espécies, e em quantidades sempre maiores ( a maricultura cresce no mundo). A pesca industrial não respeita nem o tempo necessário para se completar o ciclo de vida de cada espécie. Parte do que é pescado ainda não atingiu a idade de reprodução.
Pior: espécies ainda não sobreexploradas passaram a ser visadas. Elas se tornam alimento em fazendas que produzem menos carne, que a quantidade retirada dos mares para alimentá-los. Dá pra entender?
Os níveis de consumo da nossa geração estão esgotando os recursos naturais do planeta, ultrapassando em mais de um quarto a capacidade de reposição da biosfera. Não é pouca coisa. A fatura será cobrada da próxima geração. Mas é bom saber que seremos julgados pelos que vierem depois. Temos informação, sabemos o que acontece, somos constantemente alertados pela comunidade academica, mas agimos como nossos líderes políticos: cada um por si e que se dane o resto. A culpa é do vizinho…
Para mudar o quadro é essencial informação, e mudanças de hábitos, afinal, de quem é a responsabilidade?
A maricultura ainda traz dois outros problemas: poluição da água, e conflitos sociais com os pescadores artesanais chilenos.
A história é interessante. Tudo faz lembrar a carcinicultura, criação de camarões em cativeiro, praticada no Nordeste brasileiro. Um escândalo ambiental que ajudei a denunciar, ao produzir a série Mar Sem Fim, para a TV Cultura.
Tanto na carcinicultura, como nas fazendas de salmão, existe a introdução deliberada, com apoio do poder público, de uma espécie exótica. No Nordeste do Brasil cria-se um camarão originário do Pacífico.
Nos canais da patagônia foi introduzida uma espécie oriunda do Hemisfério Norte: o salmão.
A introducão de espécies exóticas é a segunda maior causa de perda de biodiversidade. Só o desaparecimento de habitats é pior.
Ambas as culturas são praticadas em áreas públicas, “doadas” pelo Estado (aos amigos, claro…). No Brasil são manguezais (considerados pelo CONAMA, Áreas de Preservação Permanente…), aqui, no Chile, são baías e enseadas, desde Puerto Mount, no Pacífico, até Punta Arenas, mais embaixo.
Ou seja, o criador já sai com a vantagem de não ter que pagar pelo terreno onde “instalará sua fábrica”.
Amigo é para estas coisas.
Criação intensiva aumenta o risco de infecção. Para prevenir, quantidades expressivas de antibióticos são jogadas nos tanques criatórios, e ainda outras substâncias tóxicas, como metabisulfito de sódio, no caso da carnicultura.
Aos poucos estes rejeitos tóxicos, engrossados pelas fezes dos milhares de peixes, vão sendo depositados no fundo do mar.
E tudo isto polui ainda mais as já maltratadas águas marinhas, causando, muitas vezes, floração de algas nocivas. Quando o processo é intenso, surgem as marés vermelhas. O veneno acumulado no mar é tão poderoso que um marisco contaminado (ou outro organismo filtrante), se for ingerido, pode causar a morte de uma pessoa.
Você adivinhou. Nos canais patagônicos existe maré vermelha crônica.
As causas desta reação da natureza estão sempre associadas à presença humana. Normalmente três fatores contribuem para sua formação: esgotos não tratados, maricultura intensiva, ou fertilizantes usados na agricultura. As substâncias agem como nutrientes.
Estamos próximos de Punta Arenas, com 120 mil habitantes, e Ushuaia, com cerca de 70 mil. E as salmoneiras estão por todos os lados.
Aparentemente seriam estas as causas. A agricultura é incipiente na área (por enquanto esta é uma suspeita sujeita a confirmação, por um especialista, que continuo procurando por aqui).
A outra peculiar acusação, feita aos criadores de salmão, serve também aos carcinicultores. Diz respeito à posse da grande maioria das fazendas, quase sempre na mão de políticos. No caso das salmoneiras, dizem as ONGs, e o premiado documentário Ovas de Ouro, “foram loteadas entre amigos e políticos ligados ao Partido Democrata Cristão”.
O mesmo documentário menciona conflitos entre criadores e pescadores artesanais, “quase excluídos” da atividade pela Lei da Pesca chilena. Eles são impedidos até mesmo de capturarem os salmões que fogem dos tanques criatórios.
No caso brasileiro, investigamos na viagem do veleiro Mar Sem Fim, cerca de 80% das fazendas do Nordeste têm como proprietários prefeitos, deputados e senadores. Ao se apropriarem de grandes áreas de manguezais, que são derrubados, criam conflito com as populações nativas que retiram do mangue seu sustento diário.
Mas vamos à visita.
Fomos muito bem recebidos. A empresa usa tecnologia de ponta. No total tem 15 tanques, com 30 mil salmões em cada. O peixe demora 2 anos para atingir os 4 quilos, tamanho ideal para a despesca. Cada tanque tem três redes de proteção. Uma impede que pássaros ataquem por cima. Outra faz o mesmo papel na parte que fica submersa. E ainda há uma terceira rede, mais grossa, para assegurar que os mamíferos marinhos não façam a festa invadindo as jaulas.
Os salmões são vigiados 24 horas por dia através de câmeras submarinas, alimentadas por energia eólica, ou células de bateria solar.
Doze funcionários, em turnos de seis pessoas embarcadas por vez, tomam conta da fazenda. Aparentemente o custo é baixo. A produção, ao contrário, é alta. O Chile é o segundo maior produtor de salmões, só perdendo para a Noruega. Toda a produção é para consumo externo. Mais uma coincidência com o camarão brasileiro…
Obviamente não perguntei sobre poluição ou conflitos sociais. Apenas visitamos, fotografamos, e gravamos para nosso documentário.
Constatar o mau uso do espaço marítimo por gente esclarecida é muito triste. Por ignorância, vá lá. Mas, por egoísmo… O mar não aguenta o desaforo. Cientistas já avisaram que a bolha vai estourar em algo como 20, 30 anos, no máximo. Estamos detonando os recursos marinhos em escala planetária. A pesca industrial é uma prova. Recebe subsídios anuais de 15 bilhões de dólares (dados do Banco Mundial). Quer prova maior?
A produção mundial alcança 120 milhões de toneladas por ano. No mesmo período a fauna acompanhante ( espécies não visadas, presas nas redes) chega a 20 milhões. VINTE MILHÕES DE TONELADAS DESCARTADAS. Jogadas de volta ao mar, mortas pelas redes de arrasto.
E ainda temos a aquicultura crescendo. A produção mundial já chega a 40 milhões de toneladas. Cada vez mais peixes são tirados do mar pra serem processados, virarem farinha, e se tornarem ração…
Se a devastação parasse agora já seria tarde. Mas vai aumentar. A FAO prevê que a pressão sobre os estoques marinhos deve triplicar até 2050.
Tem mais. Todos os dias dois milhões de litros de esgotos não tratados são despejados nos oceanos.
A agricultura contribui com seu quinhão, despejando mais de 100 milhões de toneladas/ano, de resíduos tóxicos, nos mares.
A enormidade dos dados é chocante. E não estou contando novidades. Cientistas já cansaram de nos alertar sobre o colapso da pesca em poucos anos. Alguns dizem que, a continuar esta situação, as próximas gerações terão mares povoados por bactérias e águas- vivas. São especialistas, e cientistas renomados, que publicam estudos em revistas como Nature e Science.
Algumas pessoas leem, a imprensa repercute, os governos estão cansados de saber, a comunidade científica fica em polvorosa, mas…
Seguimos. Pegamos vários canais secundários, pela ordem, o Madalena, Cockburn, Ocasion, Brecknock, Balenero, e finalmente, o espetacular braço Noroeste do canal de Beagle, onde estamos agora.
Durante estes dias tivemos cenas de marinharia explícita, bem divertidas, como o abastecimento de água de bordo, via uma cachoeira formada pelo degelo.
Fundeamos o Mar Sem Fim com a popa perto da queda d”água. Uma mangueira com um funil na ponta, e muita boa vontade do Manoel, nosso marinheiro, resolveram a questão.
A cada dia um novo lugar para passar a noite. Alguns, como a caleta Brecknok, tinham paisagens sensacionais. Paredões de pedra de centenas de metros em nossa volta, tão altos que às vezes nem o sinal do Iridium (um dos telefones satelitais de bordo) pegava.
Neste momento passa uma enorme e linda geleira pela janela da frente de meu escritório. Olho para trás e vejo um cadeia com 4 ou 5 montanhas, em fila, na margem oposta do canal Noroeste do Beagle. É muita beleza pra um só lugar. Não dá pra continuar…
Fui obrigado a parar meu relato para explorar a região de bote. Subimos um rio, eu e Cardozo, o cinegrafista, até onde foi possível. O sol saiu, realçando o espetáculo dos picos nevados, bem altos, em nossa volta. É de tirar o fôlego. Nem o frio atrapalhou.
Em seguida nos preparamos para passar a noite na caleta Olla, já bem perto da entrada do canal principal do Beagle. Amanhã chegaremos em Ushuaia.
Jogamos o ferro numa baía deserta. Minutos depois um barco de pesca se aproximou. Eles têm o costume de parar a contrabordo do primeiro que ancora. Não perguntam se podem, já chegam com os cabos nas mãos.
Pra nossa sorte era o barco que recolhe a produção de centojas. Segundos depois parte da frota pesqueira veio atrás. Ao todo éramos cinco barcos, um amarrado ao lado do outro. Circulando entre eles, um cachorro mais carente que meu labrador, o pobre Baunser…
A amabilidade nos rendeu duas panelas de centojas, que foram ao fogo no ato.
Banquete dos deuses, vinho, e cama.
Hoje o dia amanheceu enfezado. Cinzento e chuviscando. Mas quando entramos no Beagle o sol saiu e tomou conta do céu. Esquentou em poucos minutos. E assim permaneceu, “exuberantemente bonito”, até chegarmos ao iate clube de Ushuaia.
Ato contínuo o tempo virou. Enquanto o vento zunia as cores murcharam. Perderam viço. O cinza chumbo tornou a dominar . E a temperatura despencou num átimo.
Coisas das altas latitudes…