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Marujá: comunidade caiçara do Lagamar é exemplo no litoral

Marujá: comunidade caiçara do Lagamar é exemplo no litoral

Marujá, comunidade caiçara do lagamar Iguape–Cananéia–Paranaguá, é um exemplo para o a zona costeira brasileira.

pier da comunidade caiçara do Marujá, no Lagamar
O pier do Marujá.

Antes de tudo, ao ler “comunidade caiçara”, entenda: no contexto deste texto, pode-se ler como sinônimo de “nativos da costa”. Estamos falando de milhares de brasileiros que nasceram e cresceram no litoral.

A diferença entre os termos é mais geográfica. Quem nasceu entre o centro do Rio de Janeiro e o Paraná é chamado de caiçara.  E qual seria o denominador comum? Todos vivem do que o mar e o litoral lhes dá, entretanto, os caiçaras têm uma rica e peculiar cultura.

São cerca de 200 km de canais no Lagamar onde deságuam centenas de rios que descem da Serra do Mar. O lagamar tem ainda quatro barras: Iguape, Cananéia, Ararapira, e Paranaguá.

Formação da população do litoral brasileiro

Até antes da chegada dos europeus, os donos do litoral eram o povo tupi-guarani. Depois, com a mistura entre os indígenas, europeus, e africanos, surgiu o que hoje se conhece como caiçaras.

Ilustração, www.todamateria.com.br.

“Os caiçaras são uma mistura de povos indígenas já extintos, europeus de diversos países e negros, principalmente quilombolas que após processos de ocupação do interior devido aos diversos ciclos econômicos do Brasil colonial, ficaram relativamente isolados nessa estreita faixa de terra entre o mar e a serra, que se estende do sul do Paraná até o centro do Rio de Janeiro”, explica Antonio Carlos Diegues, fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade Estadual de São Paulo (Nupaub/USP).

Ha sambaquis por todo o lagamar confirmando a origem dos tupis da região. Imagem, 2007.

Esse povo tradicional, que já destacamos, tem uma rica cultura que passou a ser ameaçada a partir de 1950  quando o homem da cidade começou a ocupar o litoral gerando distorções como a especulação imobiliária que persiste até hoje.

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A cultura caiçara

Essa cultura se manifesta na música, nos “causos”, nos costumes, na culinária. Inclui também tradições religiosas e profanas, como a festa do divino, a congada ou o fandango.

Para muitos estudiosos, como Daniel Toffoli e Gustavo Mansur, a população caiçara guarda um dos últimos traços visíveis da origem do povo brasileiro. É o que dizem em artigo publicado pela Fundart. E, dizemos nós, o Lagamar Iguape-Cananéia-Paranaguá, por uma série de questões peculiares, passou a ser o último bastião de resistência desta cultura.

Indígenas do clássico livro de de Hans Staden, Duas Viagens ao Brasil. As famosas caá-içara de suas aldeias.

O termo “caiçara” vem do tupi caá-içara. No passado, servia para nomear as estacas que cercavam as tabas ou aldeias. Também indicava o curral feito com galhos fincados na água para prender o peixe.

A miséria em que vivem a maioria dos caiçaras e/ou nativos da costa

Fora do lagamar, os últimos caiçaras da região Sudeste vivem hoje em bolsões de pobreza. Estão cercados por um turismo predatório que pouco trouxe de positivo — além da perda de suas posses, usos e costumes. Foram esquecidos pelo poder público. Os que ainda resistem, tentando sobreviver da pesca, da mariscagem e da extração nos manguezais, são minoria. Vivem em condições subumanas.

A avifauna do lagamar é outros dos espetáculos das região.

Equipamentos simples, como um freezer ou uma fábrica de gelo, poderiam ter resolvido boa parte dos problemas desses caiçaras. Mas o Estado jamais os atendeu. São melhorias básicas que teriam transformado suas vidas. Essas pessoas são credoras do Estado. Viveram sem devastar a paisagem muito menos os ecossistemas, ao contrário dos cara-pálidas, que desde que usurparam suas posses destroem tudo sem qualquer pudor.

Turismo de base comunitária é a melhor alternativa

Hoje, a principal proposta para essas comunidades espalhadas pelo imenso litoral é capacitá-las para o turismo de base comunitária. Não há dúvida de que essa atividade representa uma vocação natural da costa brasileira. Mas, na prática, o processo ainda engatinha. Está longe de substituir o antigo e tradicional ganha-pão.

Em 2007 o veleiro Mar Sem Fim atravessou o Lagamar de Cananéia até Paranaguá.

Vi essa precariedade de perto em minhas viagens pela costa brasileira. Na região Norte, as dificuldades para chegar ao litoral a partir do interior são tão grandes que inviabilizam qualquer iniciativa. Antes de pensar em turismo comunitário, o Estado precisa implantar uma infraestrutura que simplesmente não existe.

Nas regiões Nordeste e Sul, apesar da infraestrutura mínima, o processo ainda engatinha. No litoral Sul, não conheço nenhum exemplo que valha ser citado. Já no Nordeste, houve algum avanço — mas muito tímido. No Ceará, me hospedei em casas de nativos e pude constatar o quanto ainda falta para que essas famílias deixem de depender dos humores da pesca.

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A comunidade caiçara de Marujá no lagamar paulista

Enfim, chegamos à exceção que mencionei no título deste post. O que vi em Marujá, durante minha última visita em julho de 2025, me deixou mais do que animado. Marujá fica na Ilha do Cardoso, dentro do Parque Estadual de mesmo nome. Ali, seis comunidades tradicionais ainda resistem e convivem com a natureza em equilíbrio.

A tradição da construção naval artesanal agora está em perigo nas comunidades caiçaras.

O acesso é difícil — só se chega de barco, partindo de Cananéia, no extremo sul de São Paulo. Mesmo assim, o vilarejo floresce. No lugar dos antigos ranchos de pescadores, surgiram pousadas simples, mas dignas,  tratadas com visível esmero e por isso mesmo quase sempre  ocupadas. Não se vê um cisco de lixo no chão, seja nos gramados, nas trilhas, na restinga, ou na praia. É algo que impressiona.

Com o crescimento, percebe-se no ar a vibração de uma comunidade caiçara que recuperou a autoestima. A miséria ficou para trás. Hoje, os moradores investem em melhorias constantes, pavimentando com esforço próprio a estrada para um futuro melhor.

Os caminhos pela mata no Marujá impressionam pela beleza e limpeza, não se vê um cisco no chão. Imagem de 2025.

Não conheço outra comunidade caiçara — ou de nativos — em situação melhor que a de Marujá. Por isso, sua história merece ser conhecida e debatida. Quem sabe, assim, possa inspirar e servir de modelo para tantas outras que ainda lutam para sobreviver.

Cananéia, Ilha do Cardoso, e o Lagamar, um pouco de história

Cananéia, no extremo sul de São Paulo, foi uma das primeiras vilas do Brasil colonial. Já em 1502, o navegador Américo Vespúcio arribou na região. Apesar disso, a cidade sempre teve uma população pequena, por muito tempo em torno de cinco mil habitantes. Só recentemente ultrapassou essa marca. O Censo de 2022 registrou 12 mil moradores. Segundo o professor Antonio Carlos Diegues, até as primeiras décadas do século XX, a agricultura na Ilha do Cardoso e a pesca dominavam a economia local. Naquela época, a Ilha do Cardoso tinha mais habitantes que a própria Cananéia.

A igreja de S. João Batista é do século 16, na época ela era cercada por muros e atuava também com um fortim.

Com o crescimento do porto de Santos, a agricultura perde seu valor e provoca um êxodo do moradores para a Cananéia que passa a viver da pesca, alguma cultura de arroz e, eventualmente, engenhos de produção de pinga.

Ainda resta un poco do casario colonial de Cananéia.

Na segunda metade do século XX, o turismo começou a ganhar força. Ao mesmo tempo, a pesca cresceu quase sem concorrência. Isso porque o estuário de Iguape já se encontrava bastante degradado pelo excesso de água doce causado pela abertura do Canal do Valo Grande — um erro histórico que continua gerando prejuízos até hoje.

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A valorização da biodiversidade e beleza cênica da região

Enquanto a Mata Atlântica da Ilha do Cardoso se regenerava, o governo do Estado criou o Parque Estadual da Ilha do Cardoso em 1962. Na época, técnicos e ambientalistas já reconheciam seu valor ecológico e a vocação para o turismo de baixo impacto.

Aos poucos, toda a região começa a receber proteção oficial. Em 1982, o governo federal cria a APA Cananéia-Iguape-Peruíbe. No mesmo ano, o Paraná também valoriza sua parte do lagamar com a criação da Estação Ecológica de Guaraqueçaba.

O cerco, uma tradição que se mantém.

Em 1988, veio o reconhecimento internacional. A União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) classificou o lagamar como o terceiro estuário mais produtivo do mundo e um dos mais bem preservados. No ano seguinte, em 1989, foi criado o Parque Nacional do Superagui. Já em 2012, surgiu a Rebio do Bom Jesus, mais uma unidade de conservação federal que protege áreas de Antonina e Guaraqueçaba, no Paraná.

A região também ganhou reconhecimento da UNESCO. Em 1999, entrou na lista de Sítios do Patrimônio Mundial Natural. Em 2005, passou a integrar a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera.

O turismo na Ilha do Cardoso

Mesmo antes da conclusão do Plano de Manejo do Parque Estadual, entre 1998 e 2000, a comunidade do Marujá já sentia os efeitos do turismo. Em 2007, entrevistei Ezequiel de Oliveira, líder comunitário, caiçara de olhos azuis e inteligência aguda. Preocupado com o impacto da chegada de visitantes, ele reuniu os moradores para discutir o problema e buscar soluções antes que fosse tarde demais.

Seu Ezequiel Oliveira, líder caiçara de Marujá cujos filhos hoje aproveitam a visão privilegiada.

Algumas atrações da Ilha do Cardoso

Entre as atrações da Ilha do Cardoso estão os diversos tipos de vegetação da Mata Atlântica, que criam uma impressionante variedade de ambientes e uma altíssima diversidade biológica. A fauna inclui mamíferos de grande porte, como os bugios, e outros menores, como as suçuaranas e os veados-mateiro — num total de 86 espécies catalogadas pelo Instituto Florestal de São Paulo.

É possível avistar botos-cinza (Sotalia guianensis) em todo o Lagamar, além de fazer trilhas monitoradas que levam a cachoeiras, poços de águas cristalinas, praias desocupadas, roteiros de caiaque e stand-up paddle. A região também oferece pesca esportiva.

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Já foram catalogadas 986 espécies de vegetais, incluindo 147 espécies de orquídeas e 41 de bromélias. A fauna abriga muitos animais ameaçados de extinção, como o papagaio-de-cara-roxa, jacaré-de-papo-amarelo, bugio, veado-mateiro, lontra, queixada, araponga e guará-vermelho, entre outros. Para não falar na rica tradição cultural.

Seu Ezequiel preocupado com o lixo, a contaminação ambiental e a ameaça à cultura caiçara

Seu Ezequiel se preocupava com o lixo, a possível contaminação do lençol freático pela população flutuante e o risco de que apenas alguns lucrassem com o turismo. Também temia a perda da cultura tradicional, como nos contou na entrevista.

Diante disso, a comunidade agiu cedo. Decidiu que todos os caiçaras teriam o direito de construir anexos em suas casas para receber turistas. Também permitiram um número limitado de visitantes em áreas de camping. Na época, o chefe do parque era Marcos Campolim, profissional de ótimo nível, que também entrevistamos.

Região da antiga barra de Ararapira. Imagem de 2025.

Quando o Plano de Manejo ficou pronto, Marcos nos contou que as medidas propostas pela comunidade foram incorporadas. Naquela época, ainda era permitido usar troncos de árvores para construir canoas, mantendo viva uma tradição centenária. Infelizmente, isso hoje está proibido. As novas canoas preservam o formato original, mas são feitas de fibra de vidro — um completo contrassenso, na nossa opinião.

A construção de canoas caiçaras hoje é proibida, uma bobagem que merece ser revista

Na maré baixa os guarás fazem sua refeição enquanto as raízes do mangue mostram cachos de ostras.

A proibição não apenas interrompe uma arte tradicional — a construção naval artesanal — como impõe o uso de um material problemático. O IPHAN reconhece as embarcações tradicionais como um bem cultural. Já a fibra de vidro, além de descaracterizar a técnica, é ambientalmente nociva. Quando descartada, não se decompõe completamente e, como o plástico, libera partículas por milhares de anos.

Mesmo assim, os caiçaras seguem felizes. Marujá hoje conta com várias pousadas recém-construídas e uma área de camping bem organizada. As regras são rígidas: quem for pego fazendo xixi no chão é expulso na hora. Para evitar abusos, a comunidade instalou banheiros químicos no local.

Caiçaras seguem organizados e defendendo seus direitos

Este espírito de organização, de participação do qual nos falava seu Ezequiel em 2006 continua firme e forte na região. Em 2024, quando o governador do Paraná citou seu plano de dragar o Canal do Varadouro os caiçaras protestaram em seguida.

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Segundo a nota, assinada pela Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais da Ilha do Cardoso, e o Movimento dos Pescadores Artesanais do Litoral do Paraná, ‘pela ausência de diálogo e informações sobre a proposta de dragagem e turismo náutico no Canal do Varadouro. Assim,  exigimos que o IBAMA e os governos do estado de São Paulo e do Paraná respeitem os protocolos comunitários e o Direito de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado previsto na Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)’.

Em outras palavras, mesmo com as vitórias já alcançadas o espírito permanece o mesmo com todos unidos em torno de sua luta comum.

A Festa da Tainha em julho de 2025

Estive na comunidade caiçara de Marujá com amigos em julho de 2025 para acompanhar a Festa da Tainha. Nos hospedamos em uma das boas pousadas de Edílio, um dos muitos filhos de seu Ezequiel. Vimos lindas apresentações de fandango e saboreamos a tainha, pescada da mesma forma que os Tupis já praticavam no século XVI — e que Hans Staden descreveu com detalhes ainda em 1557.

Tive o prazer de flagrar uma pescaria da tainha pelos caiçaras do Arraial do Cabo em 2016, praticamente idêntica à descrição de Hans Staden, a única diferença é que a rede agora é de nylon. O resto é igual: caiçaras cercam o peixe em mutirão, alguns dão pauladas n’água, e depois repartem entre si o pescado.

“Além disso têm pequenas redes (referindo-se aos Tupinambás). O fio com que a emalham obtêm-nos  de folhas longas e pontudas que chamam tucum. Quando querem pescar com estas redes, juntam-se alguns deles e colocam-se em círculos na água rasa, de modo que a cada um cabe determinado pedaço da rede.

Vão então uns poucos no centro da roda e batem nágua. Se algum peixe quer fugir para o fundo, fica preso na rede. Aquele que apanha muito peixe reparte com os outros que pescam pouco.”

Cinco séculos depois da descrição de Hans Staden a tradição se mantém.

A triste sina das comunidades caiçaras que parecem ser um assunto ‘menor’

Ao contrário da paz que ainda reina nas comunidades caiçaras do Lagamar, Paraty acaba de sofrer mais um violento ataque da especulação imobiliária. Esse flagelo, iniciado nos anos 1970, continua expulsando caiçaras de suas posses — como já ocorreu no caso do Condomínio Laranjeiras, também em Paraty. Tudo isso com a conivência quase total do poder público, da grande mídia e dos formadores de opinião.

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Que o diga a Flip, encerrada neste domingo, 3 de agosto, sem dar qualquer sinal de que tomou conhecimento do ataque iniciado no fim de junho deste ano. Um evento que se diz progressista, preocupado com diversidade, inclusão e justiça social, mas que parece incapaz de enxergar — ou de enfrentar — a realidade que grita à sua volta.

Infelizmente, para a mídia e para a maioria dos brasileiros, este parece ser um assunto “menor”. Só isso explica o que aconteceu em 2016, quando dois capangas da empresa paratiense Trindade Desenvolvimento Territorial (TDT) fuzilaram o caiçara Jaison Caíque Sampaio dentro de sua casa, no distrito de Trindade. Nada aconteceu. A Justiça não agiu. A imprensa brasileira silenciou. Apenas o jornal espanhol El País noticiou o crime.

Os assassinos continuam soltos, circulando livremente pelas ruas de Paraty — talvez até cruzando com a multidão que curtiu a Flip, sem notar (ou sem querer notar) o que acontece ao seu redor. Ainda assim, esse crime medonho carrega um contraste revelador: ele reforça a situação privilegiada — talvez única — dos caiçaras do Lagamar. Um raro exemplo de resistência, organização comunitária e convivência harmoniosa com a natureza, onde a cultura tradicional ainda respira, apesar de tudo.

A Flip em Paraty e eu, um E.T., flutuando no espaço de bicicleta

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