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Destruir praias é a missão dos prefeitos de Santa Catarina?

Destruir praias é a missão dos prefeitos de Santa Catarina?

A ânsia pelos aterramentos no litoral catarinense sugere que destruir praias é missão dos prefeitos dos municípios costeiros. Desde a primeira intervenção, em 2002, em Balneário Camboriú, ficou claro que esse tipo de obra não resolve a erosão — piora. As engordas agravam o problema. Sufocam a vida marinha existente nas praias arenosas, desfiguram a paisagem, aumentam o risco para os banhistas e custam fortunas. Primeiro, é costume da maioria mudar o Plano Diretor do município alterando a regras de uso e ocupação do solo. Permitem tudo que não se deve fazer inclusive a construção em áreas de dunas, como em Florianópolis, ou sobre restingas, como é o caso da Praia Grande, em Governador Celso Ramos. Depois do inevitável colapso da praia, jogam areia de qualquer jeito como se fosse panacéia.  Cada vez que leio sobre um novo projeto lembro do filme Deu a Louca no Mundo.

engorda na Prais Central
Praia Central, BC. Imagem, Marcos Brito/Prefeitura de Balneário Camboriú.

Primeira engorda na Praia Central em 2002

Ou os prefeitos do litoral catarinense enlouqueceram, ou há algo  podre nesse festim praieiro. O fato é que ele continua, apesar dos alertas de especialistas e dos resultados sofríveis nas praias que já participaram do banquete de areia.

O aterramento pioneiro aconteceu em 2002, no setor sul da praia Central, com sedimentos dragados da foz do rio Camboriú. Foi uma decisão do então prefeito Rubens Spernau. A Cidasc – Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina – emprestou uma draga que desassoreou a foz do rio Camboriú e enviou a areia por tubos até a praia, conforme atesta o Página 3.

Um sucesso mais ou menos…

O jornal afirmou que a obra ‘foi um sucesso’. A Barra Sul ganhou a melhor faixa de areia da Praia Central. Com o tempo, porém, parte do sedimento desapareceu — o mesmo pode acontecer com o novo alargamento, ainda que lentamente, alertava o texto.

Surpreende a escolha do termo “sucesso” porque em seguida o redator admite que parte do sedimento ‘desapareceu com o tempo’ — e que ‘o mesmo pode acontecer de novo, ainda que lentamente’.

O episódio confirma o que afirmam os especialistas: não basta despejar areia em praias erodidas de qualquer jeito. Sem planejamento e respeito às dinâmicas naturais, o mar cobra de volta.

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A avaliação dos especialistas sobre a engorda de 2002

Em 2006 quatro especialistas da Universidade do Vale do Itajaí, Paulo Ricardo Pezzuto, Charrid Resgalla, José G.N.Abreu e João Thadeu Menezes, publicaram o estudo Environmental Impacts of the Nourishment of Balneário Camboriú Beach, SC, Brazil no Journal of Coastal Research.

Os professores apontaram falhas do processo pioneiro na Praia Central: ‘Os sedimentos no local da mina eram 30% de silte/argila e 7,2% de cascalho, enquanto os sedimentos nativos na praia alimentada eram 99,8% de areia (principalmente areia fina) e 0,2% de cascalho’.

‘Depois da engorda, a praia passou a ter 90,2% de areia média e 9,6% de cascalho. O lodo e a argila migraram para as áreas costeiras e offshore da baía de Balneário Camboriú, alterando a composição superficial dos sedimentos’.

Mortalidades expressivas e contínuas do bivalve suspensívoro que habita a praia ocorreram ao longo de 2003. Os encalhes ocorreram do sul ao norte e foram observados mesmo durante períodos de baixa energia das ondas. Nenhuma mortalidade semelhante foi registrada nas praias vizinhas’.

‘Suspeita-se que esses eventos sejam uma resposta à sufocação pela deriva de sedimentos finos…

Agora, preste atenção na recomendação seguinte:

‘O município está considerando a alimentação de toda a extensão da praia como uma alternativa para combater sua tendência erosiva, bem como para ampliar a área de praia disponível para a população crescente. Esperamos que protocolos específicos de proteção ambiental sejam considerados antes do início de um novo programa, a fim de minimizar seus impactos negativos no ecossistema local’.

O apelo ficou no vazio. Balneário Piçarras caminha para a quarta engorda em 27 anos, enquanto a Praia Central enfrenta a terceira.

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2021: por R$ 66,8 milhões Praia Central recebe a segunda engorda

As suspeitas dos professores da Universidade do Vale do Itajaí mostraram-se corretas. Assim, em 2009 lançaram um edital para a segunda engorda da praia Central. Em 2020 o consórcio DTA/Jan de Nul venceu a licitação. No mesmo ano, a LAI (Licença Ambiental de Instalação) foi concedida, o que possibilitou o início das obras. O contrato foi assinado por R$ 66,8 milhões, informou o ND+.

Neste segundo aterramento, o poder público resolveu ampliar a faixa de areia de 25 para 70 metros — quase o triplo da largura original. É com essa mistura de arrogância e presunção que políticos de Santa Catarina ignoram a ciência e se sentem no direito de modificar o que a natureza levou eras para formar, em outras palavras, destroem praias.

Segundo o g1, ‘na época do aterro o Instituto do Meio Ambiente (IMA) chegou a questionar o tamanho da área aterrada, mas Spernau (engenheiro e prefeito à época da primeira engorda) explicou que houve sobra de material, assim, decidiram reforçar o trecho‘.

“Como a draga já estava ali, não custou nada e a gente aproveitou para espraiar um pouco mais a areia. Agora, a gente já chegou no perfil de equilíbrio, ou seja, a gente está hoje com a praia do tamanho que era o projeto original, mas agora está no processo erosivo contínuo.”

Essa resposta escancara o amadorismo e o “achismo” que marcaram a obra. Sobrou areia, então decidiram reforçar o trecho — simples assim. Nenhum estudo técnico parece ter orientado a obesidade mórbida em que transformaram a Praia Central.

UFSC explica porque a ocupação desordenada acirra a erosão

Preocupados com os rumos do litoral catarinense em um momento em que o aquecimento global foge ao controle, professores da Universidade Federal de Santa Catarina publicaram Nota Técnica nº 06/PES/2023. O documento explica a formação, o funcionamento do sistema praial, e mostra de maneira didática como a ocupação humana mal feita, desordenada, é a responsável pelo fenômeno.

O supralitoral ou pós-praia, berma, duna, restinga é a faixa onde a maré não alcança, ou alcança quando da ocorrência de eventos climáticos extremos. O entremarés, como o próprio nome diz, é a porção da praia onde ocorre a variação diária do nível da água promovido pelas marés. O sublitoral é a porção que fica constantemente inundada. Imagem e explicação da Nota Técnica de 2023.

‘Construção de casas, edifícios, restaurantes e estradas sobre o supralitoral’

Resumindo bastante, eis o que dizem: Construções no supralitoral — casas, prédios, restaurantes, estradas — destroem e fragmentam habitats, poluem e alteram o sistema praial. A ocupação intensa bloqueia a circulação de sedimentos, causa déficit no entremarés e sublitoral e acelera a erosão, inclusive no próprio supralitoral’.

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‘A soma de impactos locais, da redução de sedimentos, da elevação do mar e de eventos extremos reduz os benefícios que as praias oferecem. A prova está nos desabamentos de muros, estradas, casas, restaurantes e hotéis — e na faixa de areia cada vez mais estreita para o lazer’.

Praia Central recebe a terceira engorda em 2023

Dois anos depois de gastarem R$ 66,8 milhões, a erosão tragou 70 metros da Praia Central que colapsou conforme previsto.

Em 2023 a erosão tragou mais 70 metros de areia provocando um degrau na praia Central. Imagem, : Rodrigo Gonçalves/NSC TV.

Como o déficit de areia persiste, toda vez que uma ressaca mais forte atingir Balneário Camboriú, a Praia Central voltará a desmoronar — como ocorreu novamente no fim de julho de 2025.

Obsessão em destruir praias: colocar estrutura dura num local maleável por natureza

Agora, para contornar os problemas gerados pela ressaca, a prefeitura procura dar outro nome à intervenção e a chama de “reurbanização”. O projeto, que custará mais R$ 31 milhões, prevê enterrar sob a areia uma muralha de concreto com dois metros de profundidade na faixa da praia. Nesta fase, a estrutura terá 1,5 quilômetro de extensão, mas a meta é levá-la adiante até cobrir os sete quilômetros da Praia Central.

Não há adjetivo que defina essa nova intromissão. Enterrar uma estrutura rígida em um ambiente naturalmente móvel é uma ideia que flerta com o surreal. O único precedente quase se concretizou na Praia da Barra da Tijuca, em 2023, quando o prefeito Eduardo Paes (PSD) decidiu que a orla deveria ter “faixas de concreto armado sob a areia” para, segundo ele, “reduzir os danos das ressacas”.

Partes da muralha enterrada. Imagem, Marcos Brito/Prefeitura de Balneário Camboriú.

Quando as enormes máquinas começaram a trabalhar, 26 especialistas da UFRJ, UERJ, UFF e PUC-Rio reagiram e divulgaram uma carta denunciando a “alquimia”. Eles alertaram que a ação provocaria efeitos erosivos graves. O Ministério Público interveio e mandou suspender a obra — uma decisão que, no fim, salvou a Praia da Barra da Tijuca.

Praia Central não teve a mesma sorte. A muralha segue sendo enterrada.

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Segunda Nota Técnica publicada em 2025 pela UFSC

Os conselhos baseados em ciência não ecoaram em Santa Catarina. Pelo contrário, as engordas continuam. Diante disso, os especialistas da Universidade Federal voltaram a se manifestar numa segunda Nota Técnica PES n°05/2025 cujo título é Os Aterros de Praia e a Saúde da População e do Ambiente.

O primeiro parágrafo desta advertência diz tudo: ‘A presente nota técnica trata de novas evidências indicando que os empreendimentos de aterro de praia realizados não cumprem com os seus objetivos e não cumprem os próprios projetos licenciados. Trazemos evidências inéditas de que após o aterro as praias apresentam piora na balneabilidade e aumento do risco de afogamentos’.

A missão dos prefeitos: destruir as praias do Estado

Apesar dos problemas já evidentes nas praias aterradas e dos repetidos alertas da comunidade científica, entre 2020 e 2024 quatro praias passaram por novas engordas: Canasvieiras, Balneário Camboriú, Ingleses do Rio Vermelho e Jurerê Internacional. A Praia dos Ingleses foi destruída depois da engorda, conforme mostramos. Mas nem assim os gestores políticos aprenderam. Uma prova é a nova Beira-mar nos Ingleses um projeto previsto para ser feito colado ao mar, que tem a assinatura do prefeito.

Contudo, para os pesquisadores, ‘o foco no alargamento da praia é uma medida simplista que tenta resolver um problema socioambiental complexo com uma única ação, ou seja, a adição de sedimentos. Em todas as praias alimentadas artificialmente tem ocorrido processos erosivos mais intensos do que antes do aterro’.

Imagem da Nota Técnica da UFSC.

Para que o aterro funcione é preciso ‘promover a gestão da ocupação do supralitoral das praias, inclusive considerando a sua desocupação. Implantar a restauração, reabilitação e a biorremediação da porção supralitoral de praias ocupadas’.

Isso significa recuperar as restingas e os cordões de dunas que, antes da ocupação humana, garantiam o equilíbrio natural ao repor a areia levada pelas ressacas e marés. Mas os gestores públicos de Santa Catarina parecem desconhecer as soluções baseadas na natureza — uma abordagem que ganhou força no mundo inteiro, já que a erosão costeira é um problema global. Além de mais sustentáveis, essas soluções costumam ser baratas e, quase sempre, com melhor eficácia.

‘As praias aterradas se tornaram uma armadilha para os turistas’

Esta é outra constatação dos especialistas. E por que se transformaram em armadilhas? Porque  ‘as mudanças podem estar aumentando a probabilidade de formação de correntes de retorno e podem ter contribuído para o aumento das taxas de acidentes relatadas pelos guarda-vidas’.

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‘O resultado da avaliação mostra que todas as praias aterradas apresentaram um significativo aumento no número de ocorrências de salvamento pelos guarda-vidas, tanto quando comparado com o período anterior ao aterro na área aterrada’.

Segundo as Notas Técnicas, ‘as perspectivas mais evidentes e definidoras da implementação dos aterros parecem ser decisões individualizadas por municípios, de estímulo econômico e aquecimento do mercado imobiliário, não uma solução que trate da mitigação e adaptação às mudanças em curso. Esse comportamento faz com que as ponderações sobre as consequências da realização desse tipo de empreendimento sejam pouco discutidas ou simplesmente não levantadas’.

Vamos repetir e lembrar que dissemos sobre a especulação com aval do Estado: decisões individualizadas por municípios, de estímulo econômico e aquecimento do mercado imobiliário.

Dragagem da Babitonga e engorda da praia de Itapoá

A febre das engordas continua. A prefeitura de São Francisco do Sul iniciou a dragagem do porto na Baía da Babitonga, uma das áreas mais ricas em biodiversidade de Santa Catarina. Como de costume, a imprensa local, sempre ufanista, comemorou: “Pela primeira vez no Brasil, os sedimentos de uma dragagem portuária serão usados para alargar uma faixa de areia. Em Itapoá, cerca de 6,5 milhões de metros cúbicos de areia retirados da Babitonga ampliarão em até 200 metros a largura da orla, ao longo de 8 quilômetros. É a maior obra de engorda de praia da história do país em extensão.”

Note: ‘pela primeira vez no Brasil‘, ‘6,5 milhões de metros cúbicos de areia‘, ‘ampliar em 200 metros… ‘maior obra de engordamento da história do país’.

A dragagem que pode acabar com a biodiversidade da Babitonga. Procuramos e não encontramos no site do IMA nenhum estudo de impacto ambiental sobre o engodamento de Itapoá.

A biodiversidade da baía da Babitonga está ameaçada

Nenhuma linha do texto lembra que a Babitonga é a única baía do mundo onde vive um grupo de Toninhas, pequenos golfinhos ameaçados de extinção que só existem entre o Espírito Santo e o Golfo San Matías, na Argentina. O mesmo estuário abriga outras espécies em risco, como os meros e o boto-cinza.

As praias da Figueira do Pontal, Princesa do Mar, também serão alargadas. Finalmente, empresários da região de Porto Belo divulgaram um projeto para a construção de dois molhes nos rios Perequê e Perequezinho e também para a engorda da praia.

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Segundo os especialistas da UFSC, ‘não se deve realizar a fixação das desembocaduras de rios no mar, porque alteram o balanço dos sedimentos e promovem a necessidade de obras adicionais de manutenção’. Mas quem se importa?

O investimento de R$ 13 milhões de reais será financiado pela ACIPAssociação das Construtoras e Incorporadoras do Município de Porto Belo. Não pense que se trata de altruísmo. Depois do ‘barulho’ feito em torno destas obras o custo do metro quadrado aumenta, assim, os nobres empresários da construção civil enchem as burras. Depois, quando a praia colapsar, bem, depois a gente vê…

Pandemia de ufanismo em Santa Catarina

Ignorando os riscos que uma dragagem em larga escala impõe à vida marinha, a imprensa prefere exaltar o custo da obra: “avaliada em R$ 333 milhões, é a maior intervenção de dragagem em execução no país.”

Como era de se esperar, a mesma matéria  destaca que “a ampliação da faixa de areia tende a valorizar imóveis, atrair mais visitantes e proteger a costa contra a erosão.”

Em outras palavras, até a especulação imobiliária virou motivo de celebração na decadente imprensa nacional. É um retrato triste do nosso tempo. As pessoas perdem o senso crítico numa velocidade ainda maior que a própria perda de biodiversidade que ameaça a humanidade. Ao ler este texto mais uma vez lembrei do filme Deu a louca no mundo.

Vale lembrar: esses maus tratos ao litoral ocorrem a poucos dias da COP30. E justo quando a imprensa mundial repercute a marcha da insensatez humana que já ultrapassou sete dos nove limites planetários. É mole?

Em Santa Catarina a especulação tem aval do Estado

O Mar Sem Fim já denunciou que, em Santa Catarina, a especulação imobiliária conta com o aval do governo. Ao longo dos últimos 25 anos, temos mostrado os problemas que assolam a costa brasileira. Duas constatações se tornaram evidentes: a maior chaga do litoral é a especulação, que destrói mangues, restingas e aplaina dunas — exatamente os ecossistemas que ajudam a manter a linha da costa e a repor a areia perdida durante eventos extremos.

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A segunda descoberta é que grande parte dos prefeitos comandam a especulação. Não é difícil entender. Políticos que querem se eleger precisam de muito capital durante as campanhas. Normalmente eles recebem apoio da indústria da construção civil, e do turismo. Uma vez eleitos, pagam a conta alterando os Planos Diretores das cidades permitindo tudo que antes era proibido em termos de uso e ocupação do solo. Foi assim em Florianópolis, em Itajaí, em São Francisco do Sul, e em vários outros municípios.

Algumas praias do Estado viraram caso de polícia pela promíscua relação entre prefeitos e empresários da construção civil. Jurerê, que ganhou o enigmático acréscimo de “Internacional”, é um exemplo notório. E não são só os prefeitos os responsáveis: muitas vezes, as Câmaras de Vereadores agem da mesma forma, como fizeram os de Florianópolis ao propor, em setembro deste ano, a extinção das 11 unidades de conservação da Ilha.

Ficamos por aqui mas deixamos a pergunta no ar: e você o que acha, deu a louca no mundo?

Assista ao vídeo para saber mais

COP da Floresta: encontro histórico entre clima e oceano

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