Caiçaras, nativos, e a ocupação do litoral brasileiro
A população tradicional caiçara é hoje um dos últimos traços visíveis do momento da criação do povo brasileiro. Assim Daniel Toffoli e Gustavo Mansur os definem em artigo na Fundart. Estão distribuídos entre os litorais do Paraná, São Paulo, e Rio de Janeiro, até a altura de Angra dos Reis. O termo ‘caiçara’ tem origem no termo tupi caá-içara, utilizado para denominar as estacas colocadas em torno das tabas ou aldeias, e o curral (armadilha) feito de galhos de árvores fincados na água para cercar o peixe. Parecido com sua sorte e história, é o destino dos ‘nativos da costa’ nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste.
Um futuro sombrio
Sua formação vem dos grupos que ocuparam litoral desde a chegada dos lusos. Estes europeus pioneiros se mesclaram aos indígenas e, mais tarde, aos africanos, dando origem ao que hoje se conhece como caiçaras, ou nativos do litoral. Fixaram-se na região, ali permanecendo esquecidos pelo poder público até hoje.
A característica mais marcante da ocupação dos caiçaras/nativos, descendentes desta primeira leva que chegou ao País, é a ausência de modificação da paisagem, ao mesmo tempo em que mantiveram íntegros os ecossistemas. A baía de Castelhanos, em Ilhabela, com cerca de 500 caiçaras, é apenas mais uma prova desta ocupação sustentável. Por isso mesmo, hoje são as mais visadas pelo flagelo da especulação.
Contudo, a partir dos anos 50 começou a apropriação dos muitos rincões do litoral ainda prístinos. Até então, somente as capitais dos Estados costeiros, e cidades mais importantes, notadamente as que têm portos, tinham núcleos urbanos consideráveis.
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A abertura da BR – 101: o começo do fim
Pouco mais de dez anos depois, começava a abertura da BR – 101, estrada litorânea que se estende de São José do Norte, próxima a Rio Grande, no sul; e chega até Touros, no Rio Grande do Norte.
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A estrada contribuiu com o progresso de inúmeros municípios mas, do mesmo modo, abriu as portas para a especulação, os grileiros, e a ocupação desordenada e predatória. Ainda é tempo dos prefeitos e turistas aprenderem que turismo de massa não combina com o litoral, um local frágil por natureza. Em outras palavras, estamos ‘urbanizando’ o litoral como fizemos nas grandes cidades.
Além da especulação imobiliária a BR – 101 também trouxe a injustiça, o esquecimento, e a decadência do litoral e de um dos últimos traços visíveis do momento da criação do povo brasileiro que, a despeito de lá ficarem por 450 anos, o ‘entregaram’ aos novos ocupantes, os brasileiros com posses suficientes para terem uma casa de segunda residência, praticamente no mesmo estado que encontraram.
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Assim, até 1950 o litoral brasileiro em muito se parecia ao que Cabral testemunhou, enquanto seus ocupantes originais sobreviviam isolados. A esta altura já havia políticas públicas para indígenas, negros e, mais recentemente, quilombolas; para os nativos da costa, nada até hoje.
Por último, não acreditamos no mito ‘do bom selvagem’. Já escrevemos por aqui que pescadores artesanais, sejam caiçaras ou nativos, também prejudicam o ambiente marinho com redes de arrasto, de emalhe, e outros.
Contudo, estas falhas não se compraram à dezenas de erros que persistimos em cometer a despeito da abundância de informações sobre os riscos que corre o meio ambiente mundial.
Em cerca de meio século destruímos a herança que recebemos
De 1970 para cá ou seja, apenas 50 anos um átimo na história do Brasil, nossa ocupação maciça extirpou ecossistemas, travestiu e desfigurou a paisagem com concreto armado, transformou cenários paradisíacos em espécies de cortiços das classes média alta, e alta; expulsou grande parte dos caiçaras e nativos para barracos no interior das mesmas praias que ocuparam secularmente, privando-os de acesso ao mar e ao trabalho.
E até hoje, mesmo com a quantidade de praias detonadas pelos excessos como Camboriú (SC), Guarujá (SP), ou Arraial do Cabo (RJ), e dezenas de outras, estamos longe de alcançar uma ocupação sustentável que promova a vocação do litoral, o turismo, e distribua justamente a sua renda
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A face da ilha voltada ao continente
Ainda em Ilhabela, uma prova desta ocupação insustentável e injusta é a face da ilha voltada ao continente. Basta compará-la à parcela voltada para mar aberto, e reduto de caiçaras. Uma tem bolhas de especulação com casas umas em cima das outras, sem planejamento ou ordenamento, provocando um superadensamento insano que, nas férias ou feriadões, transforma suas pequenas ruas em avenidas paulistas na hora do rush. Trânsito infernal, horas de espera para andar poucos quilômetros, baixa qualidade de vida, degradação ambiental.
E, se na orla da ilha há milhares de casas de pessoas das classes média alta, e alta, do mesmo modo há bolsões de pobreza mais próximos do morro, o bairro do Alto da Barra é apenas mais uma prova, numa cidade que vive do turismo e ainda a que mais recebe royalties de petróleo. Em 2022 foram R$ 700 milhões.
Mas, apesar disto, até hoje Castelhanos, com cerca de 500 moradores, ainda não tem uma escola por birra do prefeito que quer vê-los pelas costas. Não é possível aceitar este modelo que segrega e degrada o meio ambiente.
Ao ocuparmos a costa fizemos com os caiçaras/nativos o mesmo que os portugueses com os indígenas que antes ocupavam o espaço. Os lusos trocaram trabalho pesado por quinquilharias como contas de vidro, espelhos, e algum tecido, enquanto as doenças que traziam davam cabo de milhares. Depois do namoro dos primeiros anos, passaram a caçá-los para os escravizarem.
Dos cerca de 3,5 milhões de indígenas que existiam, sobraram 1.6 milhão que, embora miseráveis, contam hoje com dezenas de políticas públicas que podem lhes devolver a autoestima e a qualidade de vida.
Imitando o comportamento dos portugueses
Imitando o comportamento dos portugueses, ao chegarmos ao litoral usurpamos as posses. Os pioneiros especuladores tapearam caiçaras oferencendo presentes e dinheiro. Depois, induziam os ingênuos a colocarem seus dedos num papel. Mal sabiam que estavam cedendo suas posses por mais uma lábia dos cara-pálidas.
Outros compraram posses por preço vil ou através de escambos, oferecendo rádios a válvula por um terreno em São Sebastião ainda sem luz elétrica, ou uma garrafa de cachaça na ilha do Mel para um alcoólatra em crise de abstinência, como já contamos.
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Parte significava dos caiçaras mudou para a periferia das cidades, muitos que resistiam foram expulsos, ou mesmo mortos, como ainda acontece!
Por exemplo, nos anos 60/70, nas lindíssimas praias Caixa d’aço, Cepilho, e Trindade, distrito de Paraty, o ‘modelo de ocupação’ escolhido foi escancarar as porteiras da força bruta. Casas caiçaras foram destruídas com tratores, enquanto seguranças de empresas imobiliárias armados os obrigavam a sair.
Ao contrário dos nativos ou caiçaras, nossas habitações por vezes são puro concreto na encosta, topo de morro, ou mesmo à beira-mar, sem nenhum pudor em se mostrar, banalizando uma paisagem que levou eras para se formar. Enfim, explorar a beleza cênica sem destruí-la, é o grande desafio de incontáveis prefeitos ignorantes.
Assassinato de caiçara em 2016, em Trindade
Em 2016, um caiçara de Trindade, Jaison Caique Sampaio, de 23 anos, foi cruelmente assassinado em sua própria residência por um policial militar a serviço da T.D.T (Brascan-Adela),Trindade Desenvolvimento Territorial.
A empresa é parte de um holding de 280 multinacionais chamada Adela, que atua em Trindade e Laranjeiras, construindo condomínios de luxo. E apesar da brutalidade do crime, apenas o jornal espanhol El País noticiou o caso. Nenhum veículo da grande mídia nacional abriu espaço.
No litoral de São Paulo, os expulsamos para barracos dependurados nas encostas da Serra do Mar; o mesmo se deu em Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, e assim por diante no resto do litoral.
Os ecossistemas foram substituídos por casas, prédios, hotéis, marinas, condomínios, resorts; uma ode ao concreto, ao superadensamento insustentável, ao esgoto, à poluição, enfim, às mazelas das grandes cidades que aos poucos transferimos para o litoral.
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Especulação imobiliária, mudança na paisagem, e rios na UTI
Com a ocupação maciça que prossegue até hoje com fúria destrutiva, os serviços públicos sempre defasados em saneamento, coleta e tratamento de lixo, tratamento da água, etc, deram cabo de quase todos os rios que deságuam na costa, poluindo os mares e contribuindo para o sumiço dos peixes.
Hoje, em Ilhabela, para citar só um exemplo, a maioria do pescado oferecido em restaurantes vem de São Paulo, como a merluza, entre outros.
Mas tem mais: barragens foram erguidas em quase todos os rios, assim como a mata ciliar de suas margens, devastada. Começava o assoreamento. Com menor capacidade de transporte de sedimentos até o mar, iniciou-se o processo de erosão acirrada das praias, anabolizada agora por eventos extremos.
Os últimos caiçaras e nativos resistem em bolsões de pobreza
Enquanto isso, os últimos caiçaras e nativos resistem em bolsões de pobreza. E continuam sem o reconhecimento de populações tradicionais, muito menos a gratidão pelo bem que fizeram ao manter a integridade dos locais ocupados.
É verdade que eram em menor número do que os milhares de novos ocupantes. Mas o litoral tem suas restrições naturais. Não é possível continuar construindo nas mesmas praias indefinidamente como fazemos, até que a população exploda, a qualidade de vida vá para o brejo, e a degradação tome conta da paisagem e biodiversidade.
Prefeitos são os maiores inimigos, mas não apenas
Grande parte dos prefeitos de municípios do litoral são os maiores inimigos dos antigos ocupantes, caiçaras e nativos. Muitos são financiados pela indústria da construção civil ou do turismo. Quando eleitos, pagam o ‘débito’ mudando as leis e permitindo construções onde não poderiam segundo a legislação ambiental.
Não fosse a atuação firme do Ministério Público e o que nos resta de praias ainda não banalizadas por nossa ocupação estariam caminhando para tornarem-se um novo Guarujá, ou Balneário de Camboriú (SC).
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É exatamente isso que acontece em Ilhabela, mas não só lá. De tempos em tempos os prefeitos tentam mudar as leis de ocupação e uso do solo, já foi sugerida até mesmo a famigerada ‘verticalização’ (numa Ilha!), para transformarem redutos ainda intactos em nova ode ao concreto.
Antonio Colucci (PL) é mestre em ameaças
O atual, Antonio Colucci (PL) é mestre em ameaças. Pela terceira vez ocupa a prefeitura apesar de mais de 230 processos como informa o Jusbrasil. Ele ainda responde a dois processos no STF. Num deles, foi condenado por por improbidade administrativa.
O prefeito anterior, Márcio Tenório (MDB), foi cassado em 2019 por irregularidades na contratação de um evento com pagamento antecipado que não ocorreu. Assumiu a vice, Gracinha Ferreira (PSD) que, apesar do pouco tempo no cargo, ao sair foi acusada pela Justiça por suspeita de improbidade administrativa e enriquecimento ilícito.
Quer dizer, como esperar uma melhora na administração com prefeitos deste calibre? Pois saiba que Ilhabela não é exceção, ao contrário. Ainda em 2023, pelos mesmos motivos, foi cassada Flávia Pascoal (PL) prefeita de Ubatuba, outra de nossas estâncias balneárias tão ou mais maltratada que Ilhabela.
Está mais que na hora de revermos nosso modelo para a zona costeira. Ainda há o que salvar. Afinal, para quem foi boa a ocupação do litoral? A pergunta comporta muitas respostas. Uma delas é que, para seus guardiões por gerações, não foi. Os caiçaras ou nativos nunca foram tão ameaçados em sua cultura como agora.
Uma das poucas culturas relativamente preservadas na região mais ocupada do País, hoje, por insensibilidade do governo e da população, ameaçada de extinção para que os mais ricos tenham ‘vista para o mar’.
A transformação que estamos impondo ao litoral, obliterando seus predicados, não é justa nem para eles, muito menos para as futuras gerações.