Semelhanças entre a Amazônia e a zona costeira
A proximidade da COP30, em novembro, em Belém, e o noticiário sobre a Amazônia dominada pelo crime organizado me fizeram pensar. Há semelhanças na forma como o Estado tratou os dois territórios estratégicos, com absoluto desdém: a Amazônia e a zona costeira. Embora nosso foco seja o litoral e o bioma marinho, o Mar Sem Fim já publicou alguns artigos sobre a maior floresta úmida do planeta. Um deles saiu em 2020, quando a Amazônia sofria agressões oficiais dia sim, dia não. O título dizia muito: Amazônia, problema é omissão histórica; queimadas, as consequências. Logo na abertura, destacamos a omissão generalizada da população e autoridades. E lembramos que a omissão se arrastava há mais de cinco séculos.

As políticas públicas para a Amazônia
Até o governo Bolsonaro, a Amazônia quase não aparecia na imprensa. Seguia esquecida, sendo comida pelas bordas. Polêmicas surgiam de vez em quando, quase sempre por pressão europeia. Mas o foco era mais o protecionismo agrícola do que o meio ambiente.
Isso mudou com as demissões no MMA, o sufocamento do Ibama e o avanço do desmatamento. A floresta entrou de vez na pauta nacional e internacional.
Publicamos então um artigo para lembrar que o abandono vem de longe. Desde 1500, poucos se importaram com a Amazônia — nem o Estado, nem a maioria dos brasileiros. Só quem vive lá resistiu. Em mais de cinco séculos, o Brasil criou apenas duas políticas públicas voltadas de fato à região.
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A primeira ação oficial veio no século 16, quando Portugal teve que reagir às investidas de ingleses, franceses, espanhóis e holandeses na Amazônia. Para garantir a posse, a Coroa organizou expedições, ergueu fortes, criou vilas e defendeu pontos estratégicos. O objetivo era afastar os invasores e controlar o comércio das valiosas “drogas do sertão”. Cidades como Belém, fundada em 1616, e Manaus, que cresceu ao redor do Forte de São José do Rio Negro, nasceram dessas iniciativas.
O povoamento da Amazônia
Depois de garantir a posse, a Coroa abandonou a Amazônia. Por dois séculos, nada foi feito. Só voltou a agir quando a Revolução Industrial aumentou a demanda por borracha. O ciclo começou por volta de 1840 e seguiu até o início do século 20.
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Os barões enriqueceram. Belém e Manaus prosperaram. Mas os extratores de látex viveram na miséria, em regime parecido com a escravidão. O lucro de poucos custou caro. E o ciclo aprofundou uma das maiores vergonhas do Brasil: a desigualdade brutal na distribuição de renda.
Década de 1940, 43 milhões de brasileiros no litoral
No início dos anos 1940, o Brasil tinha 43 milhões de habitantes, quase todos no litoral. A Amazônia seguia como uma imensa mancha verde no mapa. Faltava só escrever terra incógnita. Com a Segunda Guerra Mundial, a demanda por borracha voltou a crescer.
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Garopaba destrói vegetação de restinga na cara duraCores do Lagamar, um espectro de esperançaBaleias raríssimas reaparecem após cinco anos de procuraO governo usou isso como pretexto para agir na região. Getúlio Vargas cedeu terras no Nordeste aos EUA e, em troca, prometeu borracha para os blindados. Também negociou a criação da Companhia Siderúrgica Nacional e iniciou a industrialização. Assim começou a segunda migração em massa para a floresta. Nascia o segundo ciclo da borracha.
Década de 70, duas estradas, uma no interior, outra no litoral
Até 1970, o Brasil só tinha feito uma política pública real para garantir a posse da Amazônia. E isso no século 17. Depois vieram apenas duas ações tímidas, ligadas ao ciclo da borracha e provocadas por fatores externos. Nada foi pensado para a região.
“Integrar para não entregar”
Nos anos 70, com os militares no poder, surgiu uma nova ameaça: o medo de perder a Amazônia para potências estrangeiras. Nasceu então o lema “integrar para não entregar”. A resposta foi a construção da BR-230, a Transamazônica. A estrada sai de Cabedelo, na Paraíba, e deveria chegar a Lábrea, no Amazonas. Nunca foi concluída. Mesmo assim virou símbolo da grandeza forçada daquele tempo.
“A estrada do turismo”
Na mesma época, o governo passou a olhar para o litoral. A construção da BR-101 foi, ao que tudo indica, a primeira política pública voltada à zona costeira. Não lembramos de outra anterior. Segundo Marina de Mello Fantanelli, desde o início a Rio-Santos foi pensada como “a estrada do turismo”. A Embratur contratou a empresa francesa Scet Internacional para desenvolver o Projeto Turis, entre 1972 e 1973.
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Inspiração na Côte d’Azur, Languedoc-Rousillon e Côte d’Aquitaine
O Projeto Turis usou como referência três regiões turísticas da França: Côte d’Azur, Languedoc-Rousillon e Côte d’Aquitaine. A comparação mostra o quanto o projeto ignorou a realidade local. Não houve estudos sobre as especificidades da região nem diálogo com as comunidades afetadas.
O estudo mapeou 250 praias e 60 ilhas entre Mangaratiba e Bertioga. Classificou os locais em A, B e C, conforme a capacidade de receber banhistas. A indicava turismo de “alta qualidade”, com menos gente por metro quadrado. C, turismo mais popular, com mais gente por área. B era o meio termo. O projeto só dedicou ‘uma página à ocupação da região’. Considerou-a ‘pouco expressiva’. As vilas de pescadores foram descritas como ‘pitorescas’.
Parece risível um ‘planejamento’ tão simplório para obra tão complexa mas foi assim que aconteceu.
Campos de golfe, centros hípicos e portos de recreio
O Plano de Programa 3 do Projeto Turis detalhou as intenções para praias de Ubatuba próximas à divisa com Paraty: Promirim, Puruba, Ubatumirim, Fazenda, Picinguaba e Camburi. Os pictogramas indicavam a instalação de campos de golfe, centro hípico, porto de recreio, complexo esportivo, entre outros equipamentos turísticos.
As centenas de famílias caiçaras da região foram ignoradas. A autora compara esse descaso com o que ocorreu na Amazônia. A ideia de que essas áreas estavam “desocupadas” serviu aos interesses do Estado e de empresários. Esse mesmo pensamento guiou outras obras da ditadura. Na Amazônia, a construção da Transamazônica gerou conflitos com indígenas e deixou um rastro de vítimas e perdas.
‘Apesar dos diversos conflitos, o discurso dos órgãos oficiais era de que os projetos iriam favorecer regiões praticamente desabitadas. A publicação Os transportes no Brasil: planejamento e execução, elaborada com base na conferência de Mário Andreazza em 1973,
caracteriza a Rio-Santos como “rodovia com aspectos pioneiros de colonização:
Deu-se início à construção do trecho da BR-101 entre o Rio e Santos, no litoral paulista, que terá a extensão total de 536,4 km, rodovia com aspectos pioneiros de colonização e que desbravará regiões de rara beleza natural, contribuindo seguramente para mais amplo desenvolvimento do turismo no país (MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES
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A crise do petróleo põe fim ao Plano Turis
Marina de Mello Fantanelli explica que ‘com a crise do petróleo em 1973, o Projeto Turis não logrou ser colocado em prática como previsto, assim como outros planos do governo, mas muitas de suas orientações e intenções seguiram adiante’.
É que se vê até hoje na região. Em Ubatuba os caiçaras acabaram nos sertões das praias que antes ocuparam, e parte significativa de sua cultura desapareceu engolida pelo turismo de massa que se pratica no município. Enquanto isso, a notória falta de infra-estrutura persiste causando frequentes danos ambientais.
A luta pela posse da terra prossegue no distrito de Trindade, em Paraty. Ali a disputa entre caiçaras e a especulação segue até hoje. Ainda em 2016 o caiçara Jaison Caíque Sampaio, de 23 anos, foi fuzilado dentro de sua casa por dois capangas da empresa paratiense Trindade Desenvolvimento Territorial (TDT) que seguem livres leves e soltos.
O Condomínio Laranjeiras, ao lado, é um paradigma da expulsão de nativos e posterior ocupação por milionários do Rio e Santo Paulo. Os caiçaras de Angra dos Reis foram quase todos expulsos, e hoje a cidade é a segunda na qual a polícia mais mata no País. E os caiçaras de Paraty continuam tendo que lutar para não perder suas terras até hoje.
Unidades de Conservação e Reforma Agrária
Depois de revelar os bastidores da BR 101 a autora Marina de Mello Fantanelli comenta os esforços do governo para manter o controle de terras por parte do Estado. ‘O governo de Emílio Médici (1969-1974) estava ciente de que os conflitos de terras iriam se intensificar com a construção da estrada e o quão prejudicial poderia ser a descaracterização da região para o turismo’.
‘É o que se pode presumir, já que no dia 16 de agosto de 1972, com base no Estatuto da Terra (1964), o presidente Médici publicou o decreto nº 70.986, declarando todos os municípios cortados pela rodovia como áreas prioritárias para reforma agrária, numa tentativa de mostrar o controle do Estado sobre essas terras (BRASIL, 1972)’.
Plano Regional de Reforma Agrária
O decreto previa um prazo de 180 dias para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) o Plano Regional de Reforma Agrária contendo o número de unidades familiares e cooperativas a serem criadas e a regularização de títulos de domínio de imóveis rurais que satisfizessem as exigências da lei.
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O plano jamais foi entregue e a regularização fundiária nunca foi feita nesta parte do litoral o que promove a grilagem, e favorece a especulação até os dias atuais.
Também é desse período a criação do Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB), instituído pelo Decreto Federal nº 68.172 em fevereiro de 1971.Parte do PNSB é composto por áreas de municípios
atravessados pela Rio-Santos.
Áreas protegidas são outro entrave para os nativos
A autora conclui: Além da Rio-Santos e de todos esses empreendimentos econômicos e turísticos na região, as famílias caiçaras passaram a ter outra fonte de conflito direto: os parques e áreas ambientalmente protegidas. Esse embate se deve, sobretudo, à maneira pela qual esses parques foram instituídos no Brasil, desconsiderando, mais uma vez, a presença das comunidades locais
nessas áreas.
Apesar de sua importância para a biodiversidade, as 12 categorias de unidades de conservação previstas na Lei do SNUC se dividem em dois grupos. Cinco são de proteção integral, como os Parques Nacionais, e não permitem moradores em seu interior. As outras sete são de uso sustentável e autorizam a presença de comunidades dentro de seus limites.
Em outras palavras, os caiçaras e/ou nativos da costa estão hoje espremidos entre complexos turísticos, o turismo de massa, e unidades de conservação.
As coincidências do Estado no trato da Amazônia e zona costeira
Amazônia e litoral compartilham velhas coincidências no trato do Estado. Ambas foram abandonadas por séculos. Na floresta, o Estado quase não existia. No litoral, sua presença sempre foi superficial.
Mais tarde, as duas regiões receberam grandes obras da era do “Brasil Grande”. Duas estradas — Transamazônica e BR-101 — até hoje inconclusas.
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A Transamazônica abriu caminho para a grilagem e o desmatamento em larga escala. Foi a primeira vez que máquinas pesadas substituíram o trabalho humano na floresta.
O resultado está aí. Meio século depois, a Amazônia corre o risco de ultrapassar o ponto de não retorno — como alertam os cientistas.
O litoral ganhou a BR-101. A estrada passou por cima de restingas, dunas e manguezais. Agravou a erosão. E abriu caminho para a especulação imobiliária.
Como o Estado nunca enfrentou o problema com firmeza, a especulação tornou-se a maior chaga do litoral. Até hoje provoca crises ambientais e sociais.
Litoral e Amazônia nas mãos do crime organizado
E há mais uma coincidência: a omissão do Estado permitiu que tanto a Amazônia quanto boa parte do litoral caíssem nas mãos do crime organizado. Hoje a Amazônia tornou-se rota do tráfico internacional, e toda a região enfrenta altos índices de criminalidade.
Segundo informe especial, Segurança pública e Crime Organizado na Amazônia Legal, desde 2012 a região da Amazônia Legal tem índices de violência letal mais elevados do que a média nacional. Em 2022, mais de 8 mil pessoas foram vítimas de crimes violentos letais intencionais – categoria que inclui homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte – na região. Naquele ano, a taxa de mortes por 100 mil habitantes foi de 26,7 nos estados da Amazônia Legal, enquanto nos demais estados o índice foi de 17,7. Isto é, a taxa de violência letal na Amazônia Legal é 50,8% superior à taxa das demais UF.
Finalmente, a última coincidência. Apesar de ‘protegidos’ pela Constituição e sempre citados pelo poder público, a situação dos nativos da costa e dos caboclos da Amazônia, os povos originários, segue caótica.