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Mangue de Iguape agoniza, quase 70% da floresta morta

Mangue de Iguape agoniza, quase 70% da floresta nativa – monitorada – está morta. Uma morte anunciada

“É terrível, a gente vem medindo a morte do mangue de Iguape todos os anos. E, com ele, a redução de todos os serviços ambientais que os manguezais prestam gratuitamente.” O alerta é da professora Marília Cunha Lignon, do curso de Engenharia de Pesca da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Registro, São Paulo. Desde 2010, ela pesquisa o manguezal de Iguape, no litoral Sul paulista. Mede o diâmetro das árvores e a salinidade da lama em 16 áreas – parcelas permanentes de estudo, como ela denomina. A cada medição, a mesma constatação: o manguezal de Iguape agoniza. Em média, já perdeu quase 70% das árvores nessas áreas monitoradas. Enquanto cerca de 26 espécies invasoras (saiba mais sobre espécies invasoras) dominam cada vez mais dentro e entorno das parcelas nos mangues.

imagem de mangue de Iguape morto
O mangue de Iguape morto. Embaixo, o capim toma conta.

Mangue de Iguape, morte anunciada desde 2007

Mar Sem Fim vem denunciando a extinção desse que é um dos ecossistemas mais importantes do mundo desde 2007. No entanto, “ano a ano, o resultado só piora”, como afirma a professora. E nada é feito para solucionar o problema. “Em alguns pontos estudados, observamos perdas acima de 79% e de 74% das árvores. Mas em outras regiões, onde é muito difícil entrar, podemos ver que a perda já alcançou 100%.”

O que restou do mangue de Iguape.

A salinidade beira o zero, atinge no máximo 4%. Deveria estar em torno de 26%, percentual médio da água salobra típica de estuários saudáveis, que recebem águas de rios e mares.

O mangue de Iguape morto libera carbono e contribui para a crise climática

“Com esses dois dados simples, podemos dizer que essa região perdeu a característica de estuário. E conseguimos calcular ainda a biomassa perdida. É sempre bom lembrar que mangue vivo sequestra carbono. Morto, ele libera carbono na atmosfera”, diz.

O que, em outras palavras, significa dizer que essa mortandade contribui, e muito, para o aquecimento global e a crise climática. O problema é que esse manguezal vem recebendo mais água doce que do mar, além de esgotos – um problema que afeta toda a área costeira do Brasil.

A causa do excesso de água doce é um erro humano cometido há 167 anos: a abertura do Canal do Valo Grande, em 1852.

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Canal do Valo Grande: passou de 4 metros para 400 metros de largura

Naquele período, o porto de Iguape era importante em movimentação de carga. Grande parte era escoada do interior até o porto por meio do rio Ribeira de Iguape, o maior de São Paulo que deságua no oceano.

Para encurtar o caminho entre o rio e o estuário de Iguape, abriram o canal. Ele tinha entre dois e quatros metros de largura. O tamanho certo para dar passagem às embarcações da época carregadas, principalmente, de arroz.

Com a pressão das águas, especialmente nas cheias, o canal foi ganhando corpo ao longo dos anos. Hoje, tem média de 300 metros de largura. Em alguns pontos alcança 400 metros. Inundou várias áreas da cidade de Iguape.

O canal do Valo Grande, aberto em 1852. Primeiro você vê o oceano Atlântico, em seguida a ilha Comprida, seguida pelo Mar Pequeno. Então surge o Canal do Valo Grande que conecta o Mar Pequeno ao Ribeira de Iguape.

Manguezal não comporta mais o excesso de água doce

A abertura desse canal já afundou a economia local uma vez, pois o maior volume de água levou ao assoreamento de várias áreas. Incluindo a do porto, que deixou de receber embarcações de maior porte, definhando os negócios locais.

Também destruiu boa parte da antiga Iguape, hoje sob suas águas. Agora, continua destruindo incansavelmente o mangue de Iguape, que não comporta mais tanta água doce. E com ele, a vida marinha, a fauna e flora típicas. Além da subsistência de muitas famílias, que dependem da pesca e do potencial turístico da cidade.

Manguezal é o terceiro maior criadouro do mundo

Os dados são desesperadores para qualquer manguezal. Mas este integra o estuário considerado o terceiro maior criadouro de animais aquáticos do mundo. Ele está inserido na Área de Proteção Ambiental Federal (APA) Cananeia-Iguape-Peruíbe.

Por suas características únicas, é reconhecido como parte integrante da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA) e do Sítio do Patrimônio Mundial Natural, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Manguezais são extremamente produtivos

“Os manguezais são considerados uma das zonas úmidas costeiras mais importantes do planeta, encontrados em regiões tropicais e subtropicais. Em condições ambientais ideais, os mangues formam florestas extremamente produtivas, utilizadas há milhares de anos por populações costeiras como um importante recurso econômico em diversas partes do mundo”, explica a professora.

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“Conservar os manguezais significa garantir os serviços ambientais prestados gratuitamente por esse ecossistema”, prossegue Marília Lignon.

Mangues são berçários de várias espécies

Entre os serviços, estão a retenção de sedimentos, proteção da linha de costa e regulação do clima. Os manguezais são, principalmente, berçários de espécies marinhas e dulcícolas.

São ricos na oferta de variados tipos de peixes, moluscos e crustáceos. É onde as espécies se alimentam e se reproduzem, diz a pesquisadora. Ela acompanha sistematicamente 36 áreas no estuário de Iguape e Cananeia.

Além das 16 em Iguape, sua pesquisa envolve mais vinte áreas em Cananeia. Estas últimas desde 2001. “Cananeia é referência de área conservada. Iguape, de área impactada”, diz.

Risco para todo o estuário Iguape-Cananeia

Como as cidades estão interligadas pelo estuário, há sério risco de que os problemas encontrados hoje em Iguape avancem, atingindo uma área cada vez maior.

“Na região de Subaúma, um bairro de Iguape, mais de 25 quilômetros ao Sul do Valo Grande, já tem macrófita aquática (espécie invasora). A atividade pesqueira também caiu sensivelmente. A pesca ali era um atrativo para o turista, que investe em média R$ 2 mil por final de semana. Hoje, boa parte já busca outras regiões mais distantes para a pesca amadora.”

Mangue de Iguape morto é ameaça à cultura caiçara 

A perda de árvores e a inexistência de salinidade tornaram o mangue mais pobre nessas ofertas. Hoje, apenas poucas espécies de peixes habitam a região de Iguape. Em Cananeia, mais de sete respondem por 80% do total da pesca.

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E os pescadores utilizam todos os apetrechos da atividade, mantendo a cultura caiçara do pescado bem ativa. Já em Iguape, essa diversidade é mais pobre. Cerca de 70% do volume pescado em Iguape é manjuba, típica de água doce. O que também reduziu o meio de sobrevivência de quem vive da pesca e do turismo.

Mangue de Iguape: capim avança sobre as espécies nativas 

Ostras, que costumam se fixar nos troncos das árvores dos mangues, também já não existem mais na região. E não há mais lama e raízes expostas de árvores para abrigo e reprodução de caranguejos.

Quase tudo está coberto por braquiárias, explica Marília Lignon, que também coordena o projeto de pesquisa “Cílios do Lagamar: monitoramento da vegetação ciliar nativa e invasora”, financiado pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro). Espécie de capim aquático e umas das que invadiram a região, as braquiárias ainda impedem que as sementes das árvores nativas cheguem à lama; e se desenvolvam formando novas florestas de mangues.

O mangue de Iguape tem impacto em toda a cadeia alimentar

A maioria das aves migratórias também não para mais em Iguape. Agora, elas buscam outros lugares para se alimentar durante suas longas jornadas. Assim como os botos, que sumiram desse trecho do estuário.

“Essa é a parte visível da destruição. Tem todo impacto na cadeia de alimentação. Impacto em organismos que a gente não vê, mas que servem de alimentação para peixes, entre outras espécies que já não existem mais no lugar.” Ou seja, toda a cadeia alimentar está extremamente prejudicada.”

Solução para o problema é conhecida há décadas

O bom dessa tragédia ambiental é que o problema tem solução. “E já está definida, apenas não foi executada”, ressalta Marília Lignon. A solução, já conhecida há décadas, é fechar o canal do Valo Grande.

E ele já foi fechado uma vez, como Mar Sem Fim abordou: “Aconteceu no anos 70 quando Paulo Egydio Martins era governador de São Paulo. Nesta época o Jornal da Tarde fez uma grande campanha pelo fechamento do Valo. Paulo Egydio comprou a briga. Uma barragem de pedras foi construída, mas não durou muito. Em 1983 uma grande cheia do Ribeira destruiu a contenção e a água doce voltou a invadir o Lagamar, situação que permanece até hoje”. A barragem foi reconstruída, mas nunca fechada.

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A nova barragem do Canal do Valo Grande à espera de ser finalmente fechada. Quando, ninguém sabe.

Ação civil pública contra o governo de São Paulo

Em 2017, após um inquérito que se arrastava desde 2001, o Ministério Público do Estado de São Paulo, em ação civil pública, venceu a primeira batalha contra o governo paulista para fechar o canal.

A Justiça condenou o Estado de São Paulo. E exigiu que “o réu”, realizasse “o fechamento definitivo e em tempo integral da barragem do Valo Grande”. Ordenou ainda que retirasse “a vegetação macrófita e exótica acumulada no Complexo Estuarino-lagunar de Iguape-Cananeia, principalmente nos manguezais e no Mar Pequeno, em 30 dias”.

Governo de São Paulo apela na Justiça

A Justiça também impôs “pagamento de indenização por danos morais difusos pelos impactos ambientais ocorridos na região”. E pediu, entre outras providências, “análise da atual situação da poluição no local, inclusive das águas e sedimentos na região do rio Ribeira de Iguape e do complexo Estuarino-lagunar e de suas áreas de influência, com respectivas medidas de reparação e cronograma de implementação, bem como a adotar providências necessárias para a despoluição e descontaminação ambiental”.

A multa diária para o não cumprimento das ordens judiciais é de R$ 15 mil, mas até hoje o governo do Estado de São Paulo apela nas demais instâncias.

Com canal fechado, manguezal poderá se recuperar

Procurado para responder o que tem feito para evitar a morte do mangue de Iguape, o governo respondeu por meio da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Diz apenas que “interpôs recurso e aguarda nova manifestação do Poder Judiciário”. Segundo a pesquisadora Marília Lignon, basta o fechamento do canal para que o estuário de Iguape se recupere plenamente.

“Naturalmente, ele vai se recompor. É preciso, claro, retirar toda a biomassa morta de espécies invasoras. A vegetação nativa já está lá e, com o tempo, ela se recupera, e voltamos a ter o ecossistema equilibrado novamente. Ganha a natureza, ganha a atividade pesqueira e quem vive dela.”

APA de Cananeia-Iguape-Peruíbe, ameaçada pela abertura do Valo Grande

Com 202.309,58 hectares, a APA de Cananeia-Iguape-Peruíbe foi criada entre 1984 e 1985 por meio de decretos dos governos João Figueiredo e José Sarney, respectivamente.

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Ou seja, o governo federal é responsável pela gestão, conservação e fiscalização dessa área que é parte do bioma marinho costeiro. Tarefa que cabe ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Marcos Garcia Lima, coordenador da APA de Cananeia-Iguape-Peruíbe, diz que o corpo técnico da unidade de conservação também endossa a necessidade do fechamento do canal. “Os técnicos são favoráveis ao fechamento das comportas da barragem do Valo Grande. Assim, é possível criar as condições necessárias para que o estuário de Iguape possa se recuperar. Parando de receber tanta água doce, ele se recria”.

Barragem construída no Valo Grande não tem comportas

Lima lembra, no entanto, que essa decisão não cabe ao ICMBio. “É uma decisão no âmbito do Executivo e, como já tem processo, também do Judiciário.” Mas reforça que a preservação do estuário de Iguape, bem como de todo o meio ambiente, é de responsabilidade de todos os poderes, em âmbito municipal, estadual e federal.

“E também da sociedade civil.” Construída em 1992 para substituir a de pedras do Paulo Egydio Martins, a barragem, entretanto, não foi concluída. O sistema eletromecânico de comportas nunca foi instalado. Em 2018, em plena campanha ao governo do Estado, o então governador Márcio França chegou a anunciar investimento de R$ 66 milhões para finalizar a obra. Mas o Estado atualmente apela de decisão judicial que já o mandou fechar o canal do Valo Grande.

Assista ao vídeo e saiba mais

Fontes: https://marsemfim.com.br/riscos-ao-lagamar-iguape-cananeia-paranagua/;  https://marsemfim.com.br/apa-cananeia-iguape-peruibe/;  https://marsemfim.com.br/costa-brasileira-programa-74-iguape-sao-paulo/#.U_euyEiDrXU.

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