Legado de Ricardo Salles prossegue: a devastação da Amazônia continua
Ele saiu do governo em junho de 2021 sob o peso de dois inquéritos abertos no STF que apuram, entre outras, corrupção, advocacia administrativa, prevaricação, além de facilitação de contrabando. Porém, seu legado continua devastando a maior floresta úmida do planeta. Neste sentido, pode-se dizer que sua gestão foi eficiente ao praticamente aniquilar os órgãos encarregados da manutenção e fiscalização de áreas públicas protegidas na Amazônia, assim como das florestas públicas. Apesar disso, ou por causa disso, em sua saída foi saudado pelo presidente em nova prova de boçalidade explícita: “Prezado Ricardo Salles, você faz parte da história. O casamento da Agricultura com o Meio Ambiente foi um casamento quase que perfeito. Parabéns, Ricardo Salles. Não é fácil ocupar seu ministério. Por vezes, a herança fica apenas uma penca de processos.” Post de opinião, Legado de Ricardo Salles e a devastação da Amazônia.
O casamento da Agricultura com o Meio Ambiente
Antecipadamente, desde o início da atual gestão a incompreensão a respeito da Amazônia tem nos custado caro. Não foi apenas parte importante da floresta que perdemos mas, especialmente, a credibilidade externa chamuscada tanto quanto a floresta. Mas, em primeiro lugar, perdeu o setor mais importante da economia o agronegócio.
Ciência e tecnologia é o que precisa o agronegócio
Se a intenção era de fato proteger o agronegócio a única coisa a fazer seria investir em ciência e tecnologia, dois pilares que levaram o setor à pujança de que hoje desfruta.
Ao agronegócio sério, interessa a Amazônia íntegra para que o ciclo de chuvas permaneça como sempre foi. Mas a pequenez mental do presidente não o permite compreender o que de fato interessa ao País. À ele, interessa apenas sua família e apaniguados.
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O ex-embaixador Rubens Barbosa, uma ilha de lucidez em meio ao oceano de mediocridade, foi certeiro no artigo já comentado, Amazônia, o El Dorado da ilegalidade (10/5/2022), em O Estado de S. Paulo. Nele, diz o ex-diplomata:
A ausência de uma efetiva política governamental de combate aos ilícitos na Amazônia nas áreas de desmatamento, queimadas e garimpo, inclusive nas terras indígenas, é o principal fator para a percepção negativa do Brasil no exterior e para a baixa credibilidade do País
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Os conflitos internos gerados pela ‘missão’ de Salles
Antes de mais nada, provocou rachas no seio do agronegócio que julgava proteger com o ‘casamento quase perfeito’. Ainda em 2020, um dos expoentes do setor, Pedro de Camargo Neto pediu demissão do cargo de vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, depois da passada da boiada, em razão do apoio da SRB numa guerra de anúncios entre prós e contrários à atuação de Salles.
Do mesmo modo, estava apenas no começo a desregulamentação dos órgãos encarregados de nossa biodiversidade, especialmente o Ibama e o ICMBio. A repercussão, entretanto, não se restringiu ao País.
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Isolados na ONU em 2021
Nossa credibilidade externa começava a fritar. Não por outro motivo, quando foram aos Estados Unidos no ano seguinte participar da 76ª Assembleia-Geral da ONU, Bolsonaro e seus mais aguerridos apoiadores, entre eles o aparentemente depravado Pedro Guimarães, ex-presidente da Caixa Econômica Federal, comeram pizza na esquina sozinhos pelo isolamento em que já se encontravam.
E, ainda em 2021, houve o episódio dos garimpeiros que infestam a Amazônia em razão da leniência e apoio federal, desta vez no rio Madeira, que provocou acima de tudo novo desconforto e mais críticas do agronegócio sério. Na ocasião, Marcello Brito, presidente da ABAG (Associação Brasileira do Agronegócio), declarou:
Um desastre para o Brasil, a imagem das balsas no rio Madeira; é um desastre para o País
E, adiante,
Precisamos reconhecer que a imagem do Brasil lá fora é muito ruim, porque foi um desastre a política ambiental nestes últimos três anos
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Por falar nisso, não há mês que a Polícia Federal não descubra casos escabrosos de ‘empresários’ acusados pelo garimpo ilegal. Nesta quinta-feira, 7 de julho, por exemplo, a PF fez três operações ‘mirando grupo empresarial suspeito de garimpo ilegal que movimentou mais de R$ 16 bilhões de reais entre 2019 e 2021’, período de quem na presidência?
E, pior, nesta sexta-feira, 8 de julho, o Estadão mostra que quadrilhas criam até criptomoeda para lavar dinheiro do garimpo de ouro! E, em apenas um dos garimpos induzidos pelo presidente, a área devastada equivale a 212 campos de futebol!!
Portanto, fica a pergunta: quem lucra com a descabida política ambiental de Bolsonaro?
Conflitos externos da política ambiental
No cenário externo não é diferente, ao contrário. O ‘Usina de Crises’ investiu contra a Noruega e Alemanha, principais financiadores do Fundo Amazônia até hoje parado.
E seguiu na intriga com toda a Comunidade Europeia. Consequentemente, até hoje o acordo UE-Mercosul não foi assinado e provavelmente não será tão cedo uma vez que, da conciliadora Angela Merkel, os alemães elegeram Olaf Scholz numa forte coalização que inclui o Partido Verde, o terceiro mais votado no país. A quem interessa esta postura?
Mas teve mais. Ricardo Salles ganhou a antipatia mundial ao quase melar a COP25, no final de 2019, que devia acontecer no Brasil mas foi recusada por Bolsonaro.
A esta altura o Brasil já estava de tal forma isolado depois da saída desonrosa de Trump, a mesma que sua cópia ensaia no Brasil, que Bolsonaro quebrou uma regra e preferiu ‘comer nhoque com parentes distantes no norte da Itália’, em vez de participar da conferência climática da ONU em Glasgow, a COP 26.
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Não fosse a guerra na Europa o Brasil já estaria amargando a retaliação internacional, sobretudo nas vendas externas do agronegócio que Bolsonaro pretende proteger. Enquanto o mundo começava a agir com vigor para responder à catástrofe do clima, a Amazônia, Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica pagavam o custo da ignorância dos tempos odientos…
Os números da devastação da Amazônia falam por si
Em 2020 foram perdidos 8.096 km² de floresta, a maior área desde 2012. E note que Salles saiu no meio de 2021. Por isso falamos do ‘legado de devastação’ que não cessou.
2021 o pior ano da Amazônia em uma década
Em 2021 foi pior. De acordo com o site do Imazon, ‘A floresta amazônica viveu em 2021 o seu pior ano em uma década. De janeiro a dezembro foram destruídos 10.362 km² de mata nativa, o que equivale à metade de Sergipe’. O site reforça que quase metade da destruição ocorreu em florestas públicas, o que nada tem a ver com o agronegócio, mas com a mais pura grilagem de terras públicas.
Casamento do meio ambiente com grileiros de terras públicas
Então, de qual casamento falou Bolsonaro? Do meio ambiente com a agricultura ou com a grilarem de terras públicas? Afinal, quem ganha com a atual política ambiental?
Como dissemos, Ricardo Salles destruiu o pouco que restava do nem sempre bem tratado Ministério do Meio Ambiente que já caminhava com dificuldade antes deste governo. E ainda está longe no horizonte o momento em que será possivelmente rearranjado.
Por este motivo, e pela teimosia presidencial, pouco importa quem seja hoje o ocupante da pasta. A grande diferença de Salles para Joaquim Alvaro Pereira Leite reside no fato do segundo evitar a polêmica pública. Desse modo, o noticiário sobre os maus feitos ficou em segundo plano. Mas, definitivamente, foi tudo o que conseguiu. Quanto aos números da devastação, estes continuam quebrando recorde após recorde.
A miséria do aparato do Ibama e ICMBio prosseguem
Além disso, a miséria do aparato do Ibama e ICMBio prosseguem céleres, assim como nossa imagem externa caindo perigosamente, especialmente depois das mortes do indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Mortes anunciadas e que serão devidamente cobradas pela comunidade internacional.
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Assim, em 2022, já um ano depois da saída de Salles, seu ‘legado’ continua preocupando quem pensa sem paixão política infelizmente disseminada País afora.
Perda florestal em 2022
Entre janeiro e maio de 2022 a Amazônia tem registrado um desmatamento equivalente a 2 mil campos de futebol por dia! Em cinco meses foram perdidos 3.360 km² de acordo com dados do SAD (Sistema de Alerta de Desmatamento) do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Enquanto isso, como mostrou a Folha de S. Paulo, ‘segundo dados do Siop (Sistema Integrado de Planejamento do Orçamento) até junho só houve liquidação de 15,88% dos recursos destinados ao controle de incêndios de áreas prioritárias’.
Devastação da Amazônia e Cerrado está 20% maior que em 2021
Consequentemente prossegue a devastação da Amazônia. A quantidade de incêndios principalmente na floresta e no Cerrado está 20% maior que no mesmo período do ano passado, de acordo com dados do Inpe, mesmo que não estejamos no ápice das secas na região. Além disso, outros biomas também foram degradados.
A Mata Atlântica, por exemplo, segundo a SOS Mata Atlântica, perdeu até agora 66% mais que em período idêntico do ano passado, demonstrando que o silêncio do atual ministro do MMA é apenas tática para evitar a atenção do público.
Contudo, a conta, internacional, vai chegar. É só a Europa voltar à normalidade que a cobrança virá, seja quem for o presidente a partir de 2023. E quem pagará a conta pela leviandade federal seremos todos nós, cidadãos, não importa se de ‘direita’, ‘esquerda’, ou do ‘centro’.
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Por último, é ainda mais desalentador saber que o perfil socioeconômico dos apoiadores do atual governo concentra-se nas classes mais altas, as que tiveram o privilégio de estudar, algo que será muito difícil para a atual geração depois do desmonte semelhante ao ambiental por que passou a Educação.
Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, da Rede Penssan de junho de 2022, demostram, sobretudo, que o País regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990, com 33 milhões de pessoas passando fome’.
Definitivamente, esta é mais uma prova do egoísmo vigente no País.
Imagem de abertura: Gabriela Biló/Estadão.