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Jangadas de piúba, uma joia naval quase extinta do litoral

Jangadas de piúba, uma joia naval quase extinta do litoral

Em recente palestra Amyr Klink projetou uma foto do Paraty II na Antártica, virou-se para a plateia e disse: ‘eu tenho muito orgulho desta foto. Demorei 10 anos para fazer… Mas eu queria fazer um barco em que pudesse viajar por todas as longitudes do planeta, sem nenhuma forma de apoio externo… Assim nasceu o Paraty II, o primeiro veleiro construído nas Américas com estruturas deformadas a frio. Aqui no Brasil ninguém da bola pra isso, mas o barco é admirado na França, na Nova Zelândia, nos Estados Unidos, porque era uma ideia extremamente ousada. Foi o primeiro monocasco no mundo sem um único quilo de chumbo…  O que inspirou a gente a fazer um barco de 120 toneladas sem lastro, foram as jangadas de piúba do Ceará. Infelizmente, ela não existe mais (a jangada de paus de piúba) se existir deve ser meia dúzia’.

Gravura de jangada de piúba
Quase todos os estrangeiros que vieram ao Brasil desde o século 16 ficaram impressionados, desenham, ou descrevem as jangadas. Aqui uma delas na visão do francês Jules Arnot em 1837.

‘É a única embarcação do mundo com conceito de estabilidade do lado de fora, e que não tem leme. Se vc pegar o Torben Grael, um dos maiores velejadores do mundo, ele não sabe conduzir uma, não tem leme, como que você dirige uma jangada de piúba? Com o balanço do mastro pra frente e pra trás, exatamente igual a uma prancha de windsurf’.

Só os brasileiros não admiram as jangadas

Eu já falei aqui muitas vezes que ‘o brasileiro deu as costas para o mar’, sim, repito um chavão, mas ele reflete a realidade até hoje. As pessoas enxergam, mas não veem, curioso? Nem tanto. Lembro-me que conversando com o oceanógrafo Lauro Barcelos, da FURG, RS, sobre até que ponto os brasileiros se interessavam por assuntos do mar ele foi rápido e certeiro: ‘o brasileiro adora o mar, mas não enxerga além da arrebentação’.

A jangada na visão do inglês Henry Koster. que chegou ao Recife em 1809.

Em outras palavras, há um certo desprezo pelo litoral e mar brasileiros por parte do poder público; nas escolas, as aulas de história ainda tratam a descoberta do Brasil como um ‘desvio acidental de Cabral’, quase não se fala na epopeia lusitana da qual somos parte, etc.  A mídia sempre deu mais espaço para o Brasil continental, por fim as praias, na propaganda brasileira, são sinônimos de espaços de lazer, de mulheres bonitas, etc.

Assim, não é estranho que as pessoas vejam as jangadas quando passeiam pelo Nordeste, mas não se deem conta da perfeição, beleza, antiguidade, simplicidade e, ao mesmo tempo, valorizem a imensa perícia que os jangadeiros precisam necessariamente ter, para domar aquela rústica embarcação sempre debaixo de vento forte no Ceará, por exemplo.

Embarcações típicas da costa brasileira

Junto com a extraordinária beleza do litoral, beleza que estamos matando ao permitirmos que a especulação imobiliária transforme tudo numa enorme ‘Cancún’, as embarcações típicas são alguns dos maiores tesouros de nosso litoral. Elas estão presentes desde o Rio Grande do Sul, até o Amapá. Alguns locais da costa brasileira já estão organizando regatas destes barcos, como mais um atrativo para o turismo, mesmo assim, são pouquíssimos os que as conhecem e valorizam.

Infelizmente, apesar de serem consideradas pelo IPHAN como um bem cultural dos brasileiros, pouca gente sabe que temos este riquíssimo acervo de embarcações típicas ainda em uso que mostram, a um só tempo, a fantástica habilidade natural dos nativos da costa no velejo destas embarcações, e elas, por sua vez, são dicionários vivos da construção naval, com barcos que têm influência desde os árabes, aos lusitanos, passando por ingleses, holandeses, e franceses.

O pau-de-jangada (Apeiba tibourbou)

Finalmente, sobre as jangadas de piúba, elas estão praticamente extintas. O pau de piúba, ou melhor, a árvore conhecida como pau-de-jangada (Apeiba tibourbou), típica da Mata Atlântica, Cerrado e floresta amazônica, está praticamente extinta no Ceará, e em boa parte do litoral nordestino. Segundo definição da Embrapa, A Apeiba tibourbou é uma espécie arbustiva a arbórea, de comportamento decíduo. As árvores maiores atingem dimensões próximas a 20 m de altura e 60 cm de DAP (diâmetro à altura do peito, medido a 1,30 m do solo), na idade adulta.

Jangadas em Canoa Quebrada. Acervo. MSF.

Em 1941, quando o famoso jangadeiro Jacaré quis construir uma jangada para ir até a capital, então no Rio de Janeiro, reclamar direitos trabalhistas para os pescadores com Getúlio Vargas, já não havia mais esta árvore no Ceará. Jacaré teve que importá-la da Amazônia. Isso demonstra também, que nem sempre os nativos da costa são tão sensíveis assim ao meio ambiente. As jangadas de piúba duravam pouco tempo, logo os paus ficavam encharcados e a embarcação tinha que ser refeita. Sucessivas gerações de jangadeiros não tiveram a ideia de replantar a árvore, garantindo assim o seu sustento. Por isso hoje é raríssimo ver jangadas de piúba, há muito tempo elas são feitas com tábuas de outras madeiras.

‘Pescaria de dormida’ em jangadas do Ceará

No passado, não havia missão científica que viesse ao País sem registrar as jangadas, talvez porque ao tempo da vela elas chamassem ainda mais a atenção. Mas não foram apenas estrangeiros a admirá-la. O historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor, Luis da Câmara Cascudo nos deixou Jangada – Uma pesquisa etnográfica, um livro indispensável.

Cadê a jangada? Acervo MSF.

Cascudo comenta sobre ‘a embarcação mais antiga do mundo, com 30 mil anos de vida, “primeira fórmula consciente do navio dirigido por mão humana”, a jangada navegou por todos os mares da antiguidade. Os povos marítimos a conheceram e a utilizaram como veículo de pesca e de heroísmos’.

Dois livros de Luis da Câmara Cascudo em 1957: Jangadeiros e Jangada – Uma pesquisa etnográfica

No mesmo ano de lançamento, 1957, ela ainda nos legou, Jangadeiros. Porém, este livro não teve tantas reedições como o outro, por isso tornou-se uma raridade. Encontramos ao menos a descrição: Livro Jangadeiros, Luís da Câmara Cascudo, 1957, documentário da vida rural, capa e magníficas ilustrações de Percy Lau, com raras fotos. Breve história da jangada no Brasil; jangadeiro, com quantos paus se faz uma jangada, a rotina de pesca, `Sub specie ludi`, antropologia do jangadeiro e seu precioso vocabulário. 1ª edição , 60 páginas.

Minha jangada vai sair pro mar

As jangadas e os barcos típicos  também foram cultivadas por dois notáveis baianos, Jorge Amado, e Dorival Caymmi. Ambos exaltaram os pescadores baianos e seu difícil trabalho diário em suas obras, sejam os romances, sejam as canções praieiras. Quem não se lembra de A jangada voltou só, ou É doce morrer no mar?

Entretanto, parece que foram os últimos. Depois destes dois notáveis, não lembro um artista, ou um baiano famoso, que exalte as embarcações típicas, como os saveiros, que fizeram parte da história do Estado mas hoje estão definhando, restaram menos de 13 saveiros.

Acervo MSF.
A situação como a descrita abaixo é a de um cotidiano tão duro que já parafraseei Euclides da Cunha, ‘o jangadeiro é antes de tudo, um forte’.

Eles tanto podem sair e voltar no mesmo dia, como às vezes passam dias fora no que chamam de ‘pescaria de dormida’, quando normalmente 4 amigos navegam juntos, cada um numa função específica, e num entrosamento que se equipara a tripulações olímpicas de hoje, já que não precisam sequer se falar para que cada um faça sua parte no momento exato. E tudo isso num espaço mínimo, de mais ou menos 8 metros de comprimento por 1,80 de largura, com uma imensa vela triangular ao centro, enfrentando 25, 30 nós de vento, com ondas de dois a três metros. Não é preciso reforçar que eles ficam molhados o tempo todo, durante a viagem, a pescaria, no pouco tempo que dormem, etc.

Eles chegam exatamente no ponto certo, no meio do mar, e fundeiam para pescar e passar a noite

Como se não bastasse navegarem num espaço exíguo que desliza milímetros acima da linha d’água, sendo constantemente varridos por ondas, eles ainda sabem se orientar usando apenas o conhecimento do céu e dos astros, e com a ajuda de um prumo, nada mais.

Felizmente, hoje há outra fonte que considero indispensável para os interessados, o excepcional livro Aventura dos jangadeiros do Nordeste, de Raimundo Caruso, da Panam Edições Culturais. Através de dezenas de entrevistas com jangadeiros, o volume traz informações preciosas sobre as embarcações, a divisão do trabalho, as funções a bordo, as viagens épicas que já aconteceram, como a saga de Jacaré e a jangada São Pedro, uma navegação do Ceará ao Rio de Janeiro em 1941 que virou roteiro de filme de Orson Welles.

Imagine 4 pessoas em cima deste espaço mínimo, a 30 nós de ventos, com ondas de 2 metros a 3 metros. Por isso, o Jangadeiro é, antes de tudo, um forte!

Mais tarde houve outro raid, e ainda mais radical. Em 1958 quando Mestre Jerônimo foi com uma jangada  de piúba, de nome Maria Tereza Goulart, do Ceará até Buenos Aires. Como na vez de seu antecessor, a viagem de Mestre Jerônimo tinha o objetivo de chamar a atenção do governo para os direitos trabalhistas para os pescadores (que ainda não os recebiam).

A pescaria da dormida

Foi do livro de Caruso que tirei a expressão ‘pescaria de dormida’, quando as jangadas saem da praia e navegam em direção ao alto mar, até o talude continental que eles chamam de  beiço do perau, ou seja, até o fim da plataforma continental.

Neste caso, a jangada partiu de Canoa Quebrada, navegaram 10 horas até um banco de pedras que conhecem, o banco de Aracati, a 150 metros de profundidade. Pois usando apenas um prumo, e a referência visual da costa nas primeiras horas de navegação, eles encontram o exato lugar da pescaria. Então, fundeiam a jangada ainda usando a fateixa (âncora rústica feita de madeira e pedra), e passam a noite pescando.

Se você quiser assistir aos jangadeiros em plena faina de pesca, fazendo tudo que está descrito acima, você tem que seguir o perfil de reginaldo.rayan.9 no Instagram. Ele só faz vídeos de jangadas e seus exímios navegadores, é sensacional.

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