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Jangadas de piúba, uma joia naval quase extinta do litoral

‘Jangadas de piúba, uma joia naval quase extinta do litoral

Em recente palestra Amyr Klink projetou uma foto do Paraty II na Antártica, virou-se para a plateia e disse:  O que inspirou a gente a fazer um barco de 120 toneladas sem lastro, foram as jangadas de piúba do Ceará. Infelizmente, ela não existe mais (a jangada de paus de piúba) se existir deve ser meia dúzia’.

Gravura de jangada de piúba
Quase todos os estrangeiros que vieram ao Brasil desde o século 16 ficaram impressionados, desenham, ou descrevem as jangadas. Aqui uma delas na visão do francês Jules Arnot em 1837.

‘É a única embarcação do mundo com conceito de estabilidade do lado de fora, e que não tem leme. Se você pegar o Torben Grael, o maior velejador do mundo, ele não sabe conduzir uma, não tem leme. Como você dirige uma jangada de piúba? Com o balanço do mastro pra frente e pra trás, exatamente igual a uma prancha de windsurf’.

Só os brasileiros não admiram as jangadas

Já repeti aqui muitas vezes: o brasileiro deu as costas para o mar. É um chavão, sim. Mas ainda traduz a realidade.

As pessoas enxergam o mar, mas não o veem de verdade. Parece estranho? Nem tanto.

Lembro de uma conversa com o oceanógrafo Lauro Barcelos, da FURG, no Rio Grande do Sul. Perguntei até que ponto o brasileiro se interessa pelo oceano. Ele foi direto:
“O brasileiro adora o mar, mas não enxerga além da arrebentação.

A jangada na visão do inglês Henry Koster. que chegou ao Recife em 1809.

Em outras palavras, o poder público despreza o litoral e o mar brasileiros. Nas escolas, a história do Brasil ainda começa como um “desvio acidental de Cabral”. Pouco se fala da epopeia marítima portuguesa — da qual fazemos parte.

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A mídia sempre priorizou o Brasil continental. E, na propaganda, as praias viraram sinônimo de lazer, mulher bonita e verão.

Não surpreende, então, que muitos vejam as jangadas ao passear pelo Nordeste, mas não percebam sua perfeição, beleza e tradição. Ignoram também a simplicidade do desenho e a imensa perícia exigida dos jangadeiros.

No Ceará, por exemplo, eles enfrentam mar batido e vento forte. Precisam dominar uma embarcação rústica, sem motor ou proteção, apenas com habilidade e coragem.

Embarcações típicas da costa brasileira

Junto da extraordinária beleza do nosso litoral — que destruímos aos poucos ao permitir que a especulação imobiliária transforme tudo numa imensa “Cancún” — as embarcações típicas são dos maiores tesouros que ainda resistem.

Elas estão espalhadas por toda a costa, do Rio Grande do Sul ao Amapá. Em alguns municípios, começam a surgir regatas, organizadas como atrativos turísticos.

Mesmo assim, quase ninguém no Brasil sabe disso.

Infelizmente, pouca gente sabe que temos um acervo riquíssimo de embarcações típicas ainda em uso. Mesmo sendo reconhecidas pelo IPHAN como um bem cultural do povo brasileiro, seguem invisíveis para a maioria.

Essas embarcações revelam a incrível habilidade dos nativos da costa no manejo das velas. E, ao mesmo tempo, funcionam como dicionários vivos da nossa construção naval.

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Carregam influências árabes, lusitanas, inglesas, holandesas e francesas. Cada modelo traz uma história. Cada vela içada guarda séculos de saber.

O pau-de-jangada (Apeiba tibourbou)

As jangadas feitas com piúba estão quase extintas. A árvore que deu origem ao nome — o pau-de-jangada, ou Apeiba tibourbou — praticamente desapareceu do Ceará e de grande parte do litoral nordestino.

Essa espécie é típica da Mata Atlântica, do Cerrado e da floresta amazônica. Segundo a Embrapa, trata-se de uma planta que pode crescer como arbusto ou árvore, e tem comportamento decíduo (perde as folhas em parte do ano).

As maiores atingem até 20 metros de altura e 60 cm de diâmetro à altura do peito (DAP), medido a 1,30 metro do solo.

Jangadas em Canoa Quebrada. Acervo. MSF.

O jangadeiro Jacaré

Em 1941, pleno Estado Novo, o jangadeiro Jacaré queria construir uma jangada para ir até o Rio de Janeiro — então capital do país — e cobrar direitos trabalhistas diretamente de Getúlio Vargas. Mas já não existia mais piúba no Ceará.

Jacaré precisou importar as toras do Pará. O caso mostra que, nem sempre, os nativos agem com sensibilidade ambiental.

As jangadas de piúba duravam pouco. Um ano e meio, dois no máximo. A madeira encharcava, e a embarcação precisava ser refeita. Mesmo assim, geração após geração de jangadeiros nunca pensou em replantar a árvore. Não garantiram sua própria matéria-prima.

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Por isso, hoje, quase não se vê jangadas de piúba. Há muito tempo, passaram a ser feitas com tábuas de outras madeiras.

Também é preciso dizer: os pescadores artesanais do tempo de Jacaré não eram apenas pobres. Eram miseráveis.

Viviam em barracos. A maioria nem tinha jangada. Alugavam as embarcações dos mais ricos e pagavam com metade da pescaria.

A outra metade era dividida entre os quatro tripulantes. Restava pouco para cada um. Muito suor, quase nenhum retorno.

‘Pescaria de dormida’ em jangadas do Ceará

No passado, nenhuma missão científica visitava o Brasil sem registrar as jangadas. Talvez porque, na era da vela, elas chamassem ainda mais atenção.

Mas não foram só os estrangeiros que as admiraram. O brasileiro Luís da Câmara Cascudo — historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor — também reconheceu seu valor.

Deixou como legado o livro Jangada – Uma pesquisa etnográfica. Uma obra indispensável para entender a cultura marítima do Nordeste.

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Cadê a jangada? Acervo MSF.

Câmara Cascudo escreveu que a jangada é “a embarcação mais antiga do mundo, com 30 mil anos de vida”. Para ele, foi “a primeira fórmula consciente do navio dirigido por mão humana”.

Segundo Cascudo, a jangada navegou por todos os mares da Antiguidade. Povos marítimos a conheceram e usaram como veículo de pesca — e de heroísmos.

Dois livros de Luis da Câmara Cascudo em 1957: Jangadeiros e Jangada – Uma pesquisa etnográfica

Em 1957, Luís da Câmara Cascudo publicou dois livros dedicados ao universo das jangadas. O mais conhecido é Jangada – Uma pesquisa etnográfica, que teve várias reedições e se tornou referência.

No mesmo ano, ele também lançou Jangadeiros. Esta obra, no entanto, teve circulação mais limitada e virou raridade.

Ainda assim, é possível encontrar sua descrição: Jangadeiros, de Luís da Câmara Cascudo, 1957. Trata-se de um documentário sobre a vida rural, com capa e ilustrações de Percy Lau, além de raras fotografias. A obra traz uma breve história da jangada no Brasil, explica com quantos paus se faz uma jangada e detalha a rotina da pesca. A primeira edição tem 60 páginas.

Entretanto, é bom lembrar: apesar da fama, do reconhecimento e da vasta produção literária, Câmara Cascudo também recebeu críticas.

Entre os que o acusaram de “chutar muito” está ninguém menos que Antônio Houaiss — filólogo, lexicógrafo, tradutor, crítico literário, professor e diplomata. Seu sobrenome batiza o respeitado Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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As discrepâncias de Câmara Cascudo

Apesar do prestígio, a obra de Câmara Cascudo dá, às vezes, razão a Houaiss. Em seus textos sobre as jangadas, ele se contradiz em alguns trechos.

No livro Jangada, por exemplo, Cascudo reconstrói a história da embarcação. Parte dos modelos mais rudimentares — como o descrito por Pero Vaz de Caminha no primeiro documento oficial do Brasil — e segue com as modificações que, ao longo do tempo, moldaram a jangada típica do Nordeste, especialmente no Ceará.

Pero Vaz de Caminha descreve a jangada indígena

Pero Vaz de Caminha registrou uma das primeiras descrições de embarcações indígenas no Brasil. Eis o trecho:

“Enquanto assistíamos à missa e ao sermão, havia na praia outro tanto de gente, pouco mais ou menos como ontem, com seus arcos e setas, folgando e nos observando. Sentaram-se e ficaram olhando.

Depois da missa, quando estávamos sentados ouvindo a pregação, muitos deles se levantaram, tocaram cornos ou buzinas e começaram a dançar e saltar.

Alguns entraram em almadias — duas ou três que lá tinham. Mas não eram como as que eu conheci. Eram apenas três traves atadas juntas. Entravam quatro ou cinco, ou quantos quisessem. Não se afastavam muito da praia, apenas até onde ainda podiam tomar pé.”

Essa descrição rudimentar é considerada um dos primeiros registros escritos de uma forma primitiva de jangada usada por indígenas na costa brasileira.

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A vela na jangada

Em Jangadeiros, Câmara Cascudo comenta a origem da vela nas jangadas. Cita dois estudiosos do Brasil Holandês — José Honório Rodrigues e Joaquim Ribeiro — que atribuem essa inovação aos holandeses. Mas ele próprio qualifica essa ideia como “conjectura”.

Depois, apresenta o que seria o primeiro registro visual de uma jangada com vela no Brasil. A imagem data de 1643, em pleno domínio holandês. Foi feita por Jorge Marggraf, que chegou ao Brasil em 1638 a serviço da Companhia das Índias Ocidentais.

A gravura mostra uma jangada em Alagoas. Cascudo afirma:
“É a mais antiga gravura de jangada com vela no Brasil. É uma vela latina, quadrangular, armada numa carangueja.”

Ele explica que, hoje, as velas das jangadas são latinas e triangulares. A carangueja, peça essencial para a vela quadrangular, desapareceu com o tempo.

Mais adiante, completa:
“Já em 1643, a jangada estava integrada à paisagem econômica do Nordeste, com uma velinha quadrangular e entregue à prática de um indígena.”

‘A aplicação da vela, impositivo europeu

Depois de comparar os dois tipos de vela — a quadrangular e a latina — Câmara Cascudo defende a superioridade da segunda. Conclui:

“A aplicação da vela é, para mim, impositivo de mão europeia. Deve ter ocorrido entre a Bahia e Pernambuco, região mais povoada e com uso frequente da jangada. Quando? No fim do século XVI, antes de 1635. O autor da façanha seria o colonizador português.

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Mas no Dicionário do Folclore Brasileiro, no verbete “Jangada”, ele segue por outro caminho. Descreve a embarcação feita com piúba e afirma que “não havia vela, que deve ser influência direta dos Caraíbas ou indireta, por meio dos Aruaques” — povos indígenas da região da Colômbia.

Segundo Cascudo, os tupis adotaram depois a vela triangular, que chamavam de “língua branca” (cutinga).

Ensaio sobre as construções navais indígenas do Brasil

Esse é o título do primeiro livro publicado no Brasil sobre o tema. A obra é do Almirante Alves Câmara (1852–1919) e saiu em 1888.

No livro, o almirante relata que, no passado, havia jangadas com dois mastros. Nas maiores, segundo ele, existia um girau na ré, coberto com palha, usado para abrigar passageiros.

Sobre as velas, Alves Câmara descreve o uso de uma grande vela quadrangular à frente. Na parte de trás, a vela de mezena era triangular. O livro traz um desenho com essa configuração.

Trata-se de mais uma etapa da evolução das embarcações indígenas. Depois da chegada dos europeus, as jangadas passaram por várias modificações até dar origem, por volta da década de 1930, às jangadas de pau como as conhecemos hoje.

Minha jangada vai sair pro mar

As jangadas e os barcos típicos também encantaram dois grandes baianos: Jorge Amado e Dorival Caymmi. Ambos exaltaram os pescadores e seu duro ofício diário, seja nos romances, seja nas canções praieiras.

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Quem não se lembra de “A jangada voltou só”, ou “É doce morrer no mar”?

Nos anos 1950, as jangadas ainda estavam vivas na memória popular. A saga de Jacaré e sua tripulação — formada por Jerônimo, Tatá e Manoel Preto — ainda ecoava pelo país.

Durante a épica viagem de 1941, com apoio da imprensa, Jacaré se tornou figura nacional. Ao chegar ao Rio de Janeiro, então capital, o grupo foi recebido com festa.

Houve desfile pelas ruas da cidade. A jangada seguiu em cima de um caminhão, ao lado dos jangadeiros. O rádio e os jornais só falavam disso.

Aos poucos a história de jacaré caiu no esquecimento

Com o tempo, a história de Jacaré caiu no esquecimento — assim como a fantástica embarcação que ele conduziu. Depois de Caymmi e Jorge Amado, é difícil lembrar de outro artista, ou mesmo de um baiano famoso, que tenha exaltado as embarcações típicas da região.

Os saveiros, por exemplo, fizeram parte da história da Bahia. Hoje, estão desaparecendo. Entre os saveiros de vela de içar e as lanchas tipo rabo de peixe, restam apenas cerca de 13 embarcações.

Um patrimônio cultural inteiro definha diante dos nossos olhos — e quase ninguém fala nisso.

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Acervo MSF.

“O jangadeiro é, antes de tudo, um forte”

A situação descrita abaixo mostra um cotidiano tão duro que me vi obrigado a parafrasear Euclides da Cunha: “o jangadeiro é, antes de tudo, um forte.”

Eles tanto podem sair e voltar no mesmo dia como passar dias no mar. Chamam isso de pescaria de dormida. Normalmente, quatro amigos seguem juntos. Cada um com uma função específica. O entrosamento é absoluto. Lembra o de uma tripulação olímpica. Não precisam sequer falar. Cada um sabe o que fazer, e quando fazer.

Tudo acontece em um espaço mínimo: cerca de 8 metros de comprimento por 1,80 de largura. No centro, uma vela triangular enorme. E ao redor, o Atlântico — com ventos de 25 a 30 nós e ondas de dois a três metros.

Durante toda a jornada, ficam molhados. No trajeto, na pescaria, nas poucas horas de sono. E seguem firmes. Porque, sim, o jangadeiro é mesmo um forte.

Chegam exatamente no ponto certo

Eles chegam ao ponto exato, no meio do mar, e fundeiam ali mesmo. É onde pescam e passam a noite.

Como se não bastasse navegar num espaço exíguo, milímetros acima da linha d’água, sempre varridos por ondas, os jangadeiros cearenses ainda se orientam com o que têm à mão.

Usam apenas o contorno da costa, o céu, os astros — e um prumo. Nada mais.

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Felizmente, hoje temos outra fonte indispensável para quem se interessa pelo tema: o excelente livro Aventura dos jangadeiros do Nordest, de Raimundo Caruso, publicado pela Panam Edições Culturais.

A obra reúne dezenas de entrevistas com jangadeiros e oferece informações valiosas sobre as embarcações, a divisão do trabalho, as funções a bordo e as viagens épicas já realizadas.

Entre elas, ganha destaque a saga de Jacaré e a jangada São Pedro — a travessia do Ceará até o Rio de Janeiro que virou roteiro do filme inacabado de Orson Welles, It’s All True (há trechos disponíveis no YouTube).

Imagine 4 pessoas em cima deste espaço mínimo, a 30 nós de vento, com ondas de 2 metros a 3 metros. O Jangadeiro é, antes de tudo, um forte!

Mais tarde, em 1958, aconteceu outro raid — ainda mais radical.

Mestre Jerônimo partiu do Ceará rumo a Buenos Aires, a bordo de uma jangada de piúba chamada Maria Tereza Goulart.

Assim como Jacaré, ele também queria chamar a atenção do governo para os direitos trabalhistas dos pescadores. E conseguiu, navegando milhares de quilômetros em mar aberto, com coragem e resistência.

A pescaria da dormida

A expressão pescaria de dormida ainda é usada hoje. Refere-se às viagens em que as jangadas deixam a praia e seguem até o alto-mar — até o talude continental, que os pescadores chamam de beiço do perau. Ou seja, o fim da plataforma continental.

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Já as saídas de apenas um dia são chamadas de pescarias de ir e vir.

Neste caso, a jangada partiu de Canoa Quebrada. Navegaram por 10 horas até alcançar um banco de pedras que conhecem bem: o banco de Aracati, a 150 metros de profundidade.

Usando apenas um prumo e a referência da costa nas primeiras horas, encontraram o ponto exato da pescaria.

Fundeiam ali mesmo, com a fateixa — uma âncora rústica feita de madeira e pedra. Depois retiram o mastro e passam a noite pescando.

Se quiser ver tudo isso acontecendo ao vivo — os jangadeiros em plena faina, pescando no alto-mar, fundeando com fateixa, retirando o mastro — siga o perfil @reginaldo.rayan.9 no Instagram.

Ele só posta vídeos navegando em jangadas. É simplesmente sensacional.

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