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Jangada, uma das glórias do litoral, terá chegado ao fim?

Jangada, uma das glórias do litoral, terá chegado ao fim?

A jangada é tão onipresente no litoral do Brasil que seus antepassados foram notados logo na primeira vez que um europeu pôs os pés oficialmente no país.

Aconteceu no dia 26 de abril de 1500. A frota cabralina  desembarcara em Coroa Vermelha, Bahia, para acompanhar a primeira missa. O que rolou naqueles dias tumultuados foi testemunhado  por um especialista da pena: o escrivão Pero Vaz de Caminha:

…E alguns deles se metiam em almadias…duas ou três que aí tinham…as quais são feitas como as que eu já vi – somente três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé…

Ao empregar o termo árabe ‘almadia’, Caminha descreveu o que conhecemos como uma espécie de balsa que, ao se encontrar com os europeus, viria a dar na jangada.

Paquetinho, ou pequenas jangadas ainda em uso nos mares cearenses

Nome original: Peri-peri

Apesar de extremamente tosca na época  da ‘descoberta’ ela, aos poucos, foi aperfeiçoada pelos portugueses deixados aqui, a maior potência marítima da época; não nos esqueçamos que o mar sem fim é português. E por seus descendentes,  os brasileiros nativos da costa do Nordeste.

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Ao longo do tempo, a peri-peri (segundo o IPHAN,a origem da jangada vem de uma embarcação utilizada pelos índios, denominada peri-peri) recebeu a influência de todos os povos que para cá vieram como africanos e europeus.

E, ao longo destes séculos, transformou-se no que conhecemos como jangada, um dos barcos mais bem adaptados da costa nordestina. Simples, sofisticado, veloz e eficiente. E barato, pelo menos até o tempo em que existiam as árvores, hoje quase extintas, com as quais eram construídas.

Jangadas, um fenômeno do mar

Um fenômeno de design simples, mas extremamente eficaz. Enfrenta o mar alto com galhardia. É manejada com grande facilidade mesmo sob fortes ventos. E, na volta pra casa, passa por cima dos recifes com facilidade até ser encalhada nas praias.

Nome atual

Com a palavra Luís da Câmara Cascudo: “os portugueses encontraram na Índia uma pequena balsa denominada Janga. Três a quatro paus armados com fibras vegetais ou seguros por madeira em forma de grade. O nome era dravidiano, do tâmil, popularizado pelos malaios.”

“Os portugueses escreveram Janga, Jangá, ou Changgah e Xanga. Jangada, (chamgadam) é a Janga de maior porte, com cinco ou seis paus roliços. Os portugueses encontraram  a jangada nas lutas pelos domínios nas Índias Orientais e divulgaram o vocábulo.”

A jangada no século 16 no Brasil

“Registros da utilização da jangada são encontrados no início do século XVI, onde  eram utilizadas por escravos africanos para pesca na capitania de Pernambuco. O jangadeiro é filho de jangadeiro. Um por mil, não tendo a profissão fixada, escolhe a jangada para viver” (do clássico Jangada: uma pesquisa etnográfica, de Luís da Câmara Cascudo, 1964).
Outros autores quinhentistas também citaram e descreveram a jangada, como Jean de Lery, em seu clássico “Viagem à Terra do Brasil.”
E, mais recentemente, o saboroso Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste – E as grandes viagens para o Rio de Janeiro, Ilhabela e Buenos Aires, de autoria de Raimundo C. Caruso, editado pela Panam Edições Culturais, em 2004.

A introdução da vela no século 17

Alguns estudiosos atribuem o feito aos holandeses. Cascudo discorda. Em seu clássico já citado, ele desenvolve longa pesquisa em documentos históricos para, ao final, afirmar “…verdade é que descobri jangadas de vela no domínio holandês e somente em 1643. A aplicação da vela é para mim impositivo de mão europeia. E ter-se-ia dado entre a Bahia e Pernambuco. Quando? Fim do século 16 e antes de 1635. O autor da façanha seria o colonizador português. Ele adotou a vela triangular dos muitos barcos ribeirinhos à jangada pescadora, indispensável para o suprimento (de pescado) de sua casa, engenho ou propriedade.”

A jangada no mundo: “nenhuma outra embarcação é tão antiga”

Luís da Câmara Cascudo: “toda a gente se esquece de informar à Jangada do direito de ter algum orgulho. Nenhuma outra embarcação é tão antiga.”

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Em seu livro (1964) Cascudo revela a origem histórica da jangada. Ela teria vindo da Índia, ‘mas fixada, com as características atuais e típicas, apenas em praias do Nordeste brasileiro.’

E o autor vai além:  ‘a jangada nordestina, com sua vela triangular, remo de governo e bolina (elementos essenciais na evolução posterior à vinda dos europeus), é uma solução única no mundo igual ao seu tipo não consta em qualquer outro lugar’.

A jangada vista por europeus

Esta foi a visão do inglês Henry Koster. “Filho do comerciante inglês de Liverpool, John Theodore Koster, Henry Koster nasceu em Lisboa, Portugal. Não se sabe ao certo a data do seu nascimento. Mas, ao chegar no Recife, no dia 7 de setembro de 1809, consta que tivesse 25 anos de idade. Considerado um dos mais importantes cronistas sobre o Nordeste brasileiro, Koster viajou para o Brasil em busca de um clima tropical para curar uma tuberculose.”

De volta à Europa, publicou o seu livro Travels in Brazil, em 1816, onde consta esse desenho.

Ameaças à Jangada

Infelizmente o Brasil não toma jeito. “Esse país cujo nascimento teve o mar como placenta e a navegação como cordão umbilical da nacionalidade” (Dennis Radünz Museu Nacional do Mar – Embarcações Brasileiras), permitiu que as várias árvores com que se faziam as jangadas de pau, especialmente a ‘piúba’, ou pau-de jangada, minguassem a ponto de hoje estarem na lista das espécies em extinção.

Este óbvio sinal de alerta não foi capaz de gerar novos plantios. São raros os refloretamentos para salvar a árvore. Ao contrário. No Nordeste estão destruindo o que resta delas. E a extinção em alguns Estados vem de longa data.

Em 1941 a piúba, ou pau-de-jangada, já estava extinta no Ceará

Em 1941, quando o pescador Jacaré decidiu navegar do Ceará ao Rio de Janeiro numa jangada para reivindicar melhorias para a categoria, e teve que construir uma delas para a viagem, reclamou que teve que importar a madeira do Pará porque no Ceará ela já estava extinta.

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A façanha do humilde pescador foi acompanhada por todo o País através  da cadeia dos Diários Associados. Jacaré se tornou um herói, cuja vida Orson Welles tentou contar em película. E sua navegada até a Capital Federal entrou para a história como a saga da jangada São Pedro.

“Mata de pau-de-jangada destruída em Pernambuco”

Foi o que denunciou o site http://oxerecife.com.br em julho de 2017: “moradores de Paulista, PE, denunciaram a devastação de vegetação nativa, integrada por resquícios de Mata Atlântica…”estive na Mata do Janga, naquele município, e fiquei triste demais com o que vi. O que era antes uma área totalmente verde virou um areal da cor do barro. E o mais grave: a mata devastada tinha muitos pés de pau-de-jangada, uma árvore ameaçada de extinção.”

Quais as madeiras da jangada?

São muitas as espécies semelhantes também usadas no litoral do Brasil mas, de acordo com Cascudo (1964), “das 13 espécies citadas, apenas o cajueiro (A. occidentale), o pau-de-jangada (A. tibourbou) e o conduru (B. rubescens) foram semelhantes às espécies utilizadas na construção de jangadas em Fortaleza”.

A decadência da jangada acontece faz tempo…

“A partir da década de 1950 houve um decréscimo no número de jangadas tradicionais existentes no nordeste brasileiro. Uma das hipóteses para a diminuição do seu uso para a atividade pesqueira é a dificuldade de encontrar a matéria-prima (pau-de-balsa, piúba ou pau-de-jangada).”
“Atualmente, pode-se constatar que apenas em alguns lugares, como no sul da Bahia, onde ainda se encontram áreas de mata nativa, encontra-se o pau-de-jangada (Simões & Lino 2003; Santana & Fiamenge 2013).”

Quanto tempo dura uma jangada de paus?

Ah, chegamos  na grande questão. Uma jangada de piúba, ou suas congêneres, não dura mais que dois anos. A madeira, especialmente mole, absorve água constantemente tornando seu ‘prazo de validade’ muito curto.

A rusticidade é total e, no entanto, ela é perfeita navegando

Há quanto tempo se constroem jangadas com esses tipos de árvores? Cinco séculos! Cinco séculos que transformaram a Mata Atlântica de onde elas vêm.

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Ao tempo da ‘descoberta’ “a Mata Atlântica abrangia uma área equivalente a 1.315.460 km2 e estendia-se originalmente ao longo de 17 Estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí).

Hoje, restam 8,5 % de remanescentes florestais acima de 100 hectares do que existia originalmente. Somados todos os fragmentos de floresta nativa acima de 3 hectares, temos atualmente 12,5% (SOS Mata Atlântica).” Não por outro motivo, o Brasil se tornou escala e estaleiro na época da Carreira das Índias.

As primeiras jangadas de tábuas

“Na obra de Cascudo (1964) é relatado o aparecimento, em 1940, no Rio Grande do Norte, da jangada de tábuas. Esta informação também é relatada por Diegues & Arruda (2001), que afirmam que nas décadas de 1970 e 1980 ocorreu o surgimento das jangadas de tábua, passando a substituir de forma gradativa as jangadas de pau, ou jangada tradicional.”

Jangadas com motor? Sim, algumas já têm…

Além da maioria ser de tábuas, a partir do início deste século 21 um estudo feito no sul da Bahia (2013) relata que “a partir dos dados obtidos podemos observar que as adaptações  têm grande parcela na sobrevivência da jangada. O motor introduzido de 4 a 7 anos atrás, por exemplo, demonstra claramente a modernização da embarcação no decorrer do tempo.”

Outros materiais usados para construir as jangadas

Hoje, além das de tábua, existem as que são feitas de tubos de PVC (Arghhh…), fibra de vidro, outros tipos de plástico, etc.

A cota de responsabilidade dos jangadeiros

Eles também contribuíram para o fim da piúba. Ok, são pessoas simples, sem instrução, os nativos da costa mas, ao mesmo tempo, são pessoas acostumadas a lidar com o meio ambiente. Eles vivem do que o meio ambiente lhes dá e, obviamente, geração após geração acompanharam o  fim da piúba.

Sabendo que uma jangada dura não mais que dois anos, poderiam ter replantado a árvore, estava dentro de suas possibilidades. Mas este site, que já fez mais de seis viagens pela costa brasileira, de veleiro, carro, e avião, não viu nenhuma ação neste sentido. É… o mito do ‘bom selvagem’ e pretenso respeito à natureza não passa… de mito!

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E por que o fim da Jangada entristece?

Porque, assim como os outros barcos tradicionais do Brasil em uso até hoje, são considerados pelo IPHAN um bem cultural. Algumas canoas centenárias foram tombadas pelo órgão.

São fruto dessa fantástica miscigenação que aconteceu no Brasil, misturando as primitivas culturas indígenas às africanas e europeias. Estas embarcações são quase um ‘museu flutuante a céu aberto’.

E, seja por falta de madeira, seja por falta de peixes, estão fadadas ao desaparecimento completo se não agirmos desde já para proteger nosso patrimônio histórico náutico, um dos mais ricos do mundo.

A jangada é um fenômeno brasileiro de simplicidade e navegabilidade. Só por isso jamais devia ser extinta, mas valorizada como o fez em tempos recentes Dorival Caymmi. Pelo menos em suas lindas canções praieiras elas estão eternizadas.

Fonte principal: Jangada- Uma Pesquisa Etnográfica, de Luís da Câmara Cascudo, editora Global.

Fontes secundárias: https://www.ibflorestas.org.br/lista-de-especies-nativas.html; http://oxerecife.com.br/2017/06/08/mata-de-pau-de-jangada-destruida/; https://rodriguesia-seer.jbrj.gov.br/index.php/rodriguesia/article/viewFile/933/pdf_227; http://www.petropolis.rj.gov.br/sma/index.php/mata-atlantica/historia-da-mata-atlantica.html; https://books.google.com.br/books?id=-VQzU5X7Ta0C&pg=PA151&lpg=PA151&dq=%C3%A1rvore+da+pi%C3%BAba&source=bl&ots=biWUGUYlVx&sig=_tl4D7EaavMOOyTOYmfwH6Ss5kw&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjH9YnQsozYAhUGDJAKHXdrDK0Q6AEINjAF#v=onepage&q&f=false; http://cacamentiras.blogspot.com.br/2013/12/henry-koster-cronista-do-nordeste.html.

Ele teve uma vida fascinante. Foi amigo de de Goethe, colega de Símon Bolivar, guru de Darwin, admirado por Thomas Jeferson; Humboldt influenciou até John Muir, o ‘pai dos parques nacionais’ norte- americanos. E foi o primeiro ambientalista da história.

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