Guerra da Lagosta: um conflito quase real
A Guerra da lagosta faz parte do folclore brasileiro — e da nossa história marítima. Apesar do nome, nunca houve guerra de fato. Mas chegou perto. Muito perto. No fim, o episódio entrou para os livros com um título mais chamativo do que sangrento.
Tudo começou nos anos 60, quando os mares do Nordeste ainda abrigavam fartas populações de lagosta. A presença de barcos franceses pescando o crustáceo sem autorização foi o estopim da chamada Guerra da Lagosta.
A lagosta na costa do Nordeste
Este post é um resumo autorizado de artigo de Alexandre Galante, ex-tripulante da fragata Niterói e editor do site www.naval.com.br.
Nos anos 60, as lagostas abundantes na costa nordestina chamaram a atenção de armadores franceses, especialmente do porto de Camaret, na Bretanha. Foi o início de uma tensão que logo ganharia escala internacional.
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Em 1961, uma delegação francesa foi ao Recife para negociar a entrada de barcos pesqueiros, sob o pretexto de realizar “pesquisas” sobre a lagosta.
O governo brasileiro autorizou a operação por 180 dias, permitindo a presença de três barcos — com a condição de que fiscais da Marinha embarcassem.
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Não demorou para surgirem os relatórios: havia quatro barcos, e nenhum fazia pesquisa. Estavam apenas arrastando redes e levando as lagostas.
Em abril daquele ano, o presidente Jânio Quadros ordenou a retirada dos franceses da costa brasileira.
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Em novembro de 1961, os franceses tentaram novamente. Jânio já havia renunciado, e João Goulart estava no poder.
Os armadores alegaram que pescariam fora das 12 milhas da costa — limite das águas territoriais na época —, apenas sobre a plataforma continental. O governo aceitou. Pouco depois, dois barcos estavam de volta ao Nordeste.
Mas, mais uma vez, o discurso não se confirmou. Em 2 de janeiro de 1962, a corveta Ipiranga apreendeu o pesqueiro Cassiopée a apenas dez milhas da costa, pescando ilegalmente lagostas em águas brasileiras.
A partir daí, os ânimos começaram a se acirrar de vez.
Batalha diplomática
Em 1962, o conflito virou disputa diplomática. O Brasil defendia a lagosta como recurso da plataforma continental. A França apelava à Convenção de Genebra de 1958, que tratava da pesca em alto-mar.
Mas havia um detalhe curioso: nenhum dos dois países havia assinado a convenção.
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Frases de efeito no lugar de bombas
Nos fóruns internacionais, a França tentou um argumento inusitado: como a lagosta “saltava”, deveria ser considerada um peixe — e, portanto, sujeita às regras da pesca em alto-mar.
A resposta brasileira veio com ironia. O almirante Paulo de Castro Moreira da Silva rebateu: “Se lagosta é peixe porque salta, então o canguru é uma ave.”
Enquanto isso, no mar, a tensão crescia. A Marinha brasileira apreendeu vários barcos franceses ao longo da costa — do Rio Grande do Norte ao Ceará. Em junho e agosto de 1962, quatro pesqueiros foram detidos.
Diante da escalada, uma nova rodada de negociações foi convocada.
Início de 1963, nova missão francesa vem ao Brasil
A França tinha intenção de criar um acordo binacional com o Brasil. Mas, na reunião, informou que novos barcos de pesca já estavam a caminho. O Brasil negou a permissão. Logo depois a França insistiu e disse que outros viriam apesar da ameaça de serem apresados.
Em retaliação a Marinha do Brasil colocou em alerta seus navios que patrulhavam a área e, no dia de 30 de janeiro, a corveta Forte de Coimbra detectou a presença de três barcos de pesca franceses ordenando que rumassem para Natal.
No dia 5 de fevereiro, barcos e carga foram liberados. Entretanto, por intervenção de João Goulart uma autorização para a pesca foi emitida em 8 de fevereiro. A repercussão, especialmente no Nordeste mas não apenas, foi enorme. E obrigou João Goulart a voltar atrás suspendendo a permissão.
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A mudança despertou a ira de Charles de Gaulle. Muitos analistas atribuem ao imbróglio a famosa frase ‘Le Brésil n’est pas un pays serieux.’
Mas, como nos informa o autor da matéria Alexandre Galante, a frase atribuída ao francês não passa de folclore. De acordo com o autor, o embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, afirmou em livro de memórias que a frase teria sido dita por ele numa entrevista a um repórter brasileiro.
França endurece: porta-aviões rumo ao Brasil
A recusa brasileira irritou Paris. Charles de Gaulle decidiu reagir. Um navio de guerra passou a escoltar os pesqueiros franceses, e o impasse saiu da diplomacia para voltar ao mar.
Em 11 de fevereiro de 1963, a França enviou uma Força-Tarefa chefiada pelo porta-aviões Clemenceau, que deixou o porto de Toulon. A frota incluía o cruzador De Grasse, três contratorpedeiros e várias corvetas. Oficialmente, fariam “exercícios de rotina” na costa da África — mas o recado estava dado.
Brasil entra em alerta máximo
A aproximação da frota francesa e o deslocamento do contratorpedeiro Tartu causaram alarde em Brasília. Na noite de 21 de fevereiro de 1963, João Goulart se reuniu com os ministros da Marinha e da Aeronáutica. A ordem foi clara: se fosse preciso, o Brasil reagiria.
O governo mobilizou forças militares, reforçando unidades no Nordeste e enviando tropas e equipamentos a partir do Rio de Janeiro. Esquadrões da FAB e navios da Marinha receberam ordens para se deslocar com urgência.
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Às vésperas do carnaval, a Marinha preparou um Grupo-Tarefa com cruzador e contratorpedeiros rumo ao Recife. Outro grupo, com mais navios e até submarinos, seguiria assim que estivesse pronto. Para Salvador foram enviados o navio-oficina Belmonte e o dique flutuante Ceará.
Carnaval militar: Brasil se prepara como pode
Enquanto o país se vestia para o carnaval, o governo corria para montar uma resposta militar. A maioria dos marinheiros estava de folga, e foi preciso convocar oficiais e praças às pressas.
O problema? As Forças Armadas não estavam preparadas para um confronto — muito menos contra uma potência nuclear. A Marinha sequer possuía um navio-tanque para reabastecer a frota e precisou arrendar um da Petrobras. A munição também era escassa: não daria para mais de meia hora de combate.
Os melhores navios eram os quatro da classe Pará, antigos Fletcher da Segunda Guerra Mundial, recém-adquiridos dos EUA.
Frota brasileira: sucateada e improvisada
Grande parte da frota brasileira estava longe de pronta para o combate. Alguns navios estavam em docas para reforma; dois tinham problemas nos eixos e outro sofria restrições de velocidade.
A situação dos submarinos era ainda pior. O Humaitá foi descartado, sem condições mínimas de operação. O Riachueloprecisava trocar toda a rede de pressão, mas técnicos acreditavam que poderiam colocá-lo em ação em dez dias.
Veja como são as coisas no Brasil: nos anos 60 nossa frota estava sucateada. No século 21 a situação persiste tanto é assim que, em 2023 o Ministro da Marinha almirante Marcos Sampaio Olsen, admitiu ‘restrições orçamentárias extremamente severas’. Ele alertou que ‘dentro de cinco anos a Marinha vai ter que se desfazer de pelo menos 40% dos seus meios operativos’
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Nem os dois cruzadores da Marinha escapavam da precariedade. O Tamandaré precisava de 15 dias de reparos para sair do porto do Rio. O Barroso até podia navegar — mas só com metade das caldeiras, mal conseguindo se mover.
A munição também era escassa. Segundo Galante, o Centro de Munição da Marinha não tinha estoques para suprir todos os navios. E mesmo que tivesse, os batelões de transporte estavam sucateados e em número insuficiente para uma distribuição emergencial.
Faltava até equipamento de salvatagem. O governo liberou verbas às pressas para comprar 800 coletes, 49 balsas e 1.200 rações de abandono.
FAB entra em ação — e surge um novo ator
Com a tensão aumentando, a FAB assumiu a patrulha aérea do mar territorial. Um esquadrão baseado em Salvador passou a voar missões sobre o litoral e próximo ao arquipélago de Fernando de Noronha.
Batizada de “Operação Lagosta”, a mobilização previa ainda o envio de um novo Grupo-Tarefa da Marinha, partindo do Rio para reforçar a defesa em Recife.
Enquanto as forças armadas brasileiras improvisavam como podiam, um novo personagem entrou em cena na disputa pela lagosta.
Batizada de “Operação Lagosta”, a mobilização previa ainda o envio de um novo Grupo-Tarefa da Marinha, partindo do Rio para reforçar a defesa em Recife.
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Enquanto as forças armadas brasileiras improvisavam como podiam, um novo personagem entrou em cena na disputa pela lagosta.
EUA tentam intervir — sem sucesso
Em pleno carnaval, o adido naval dos EUA procurou o alto comando da Marinha brasileira. Pediu que os navios enviados do Rio voltassem imediatamente. Segundo ele, a legislação americana proibia o uso dessas embarcações contra aliados dos EUA — como a França.
O Brasil ignorou o pedido. Em 25 de fevereiro, dois pesqueiros franceses foram avistados perto de Macau (RN), e um navio frigorífico foi localizado a 250 milhas de Natal, recolhendo as lagostas capturadas.
Tartu avistado — tensão no ar e no mar
Em 26 de fevereiro, a FAB localizou o contratorpedeiro Tartu ao largo de Fernando de Noronha. A partir daí, passou a ser monitorado de perto.
Pouco depois, interceptou-se uma mensagem marcando encontro do Tartu com os pesqueiros franceses para o dia 28, a 100 milhas de Recife.
Enquanto a população acompanhava, apreensiva, pelas rádios e jornais, no mar a situação ficava crítica. Ninguém sabia como o poderoso Tartu reagiria ao encontrar os navios da Marinha do Brasil. No encalço dele, seguia o contratorpedeiro brasileiro Paraná.
O encontro no mar: tensão máxima
Na manhã de 28 de fevereiro, sob forte neblina, o contratorpedeiro Paraná detectou um alvo a 3,2 km. Manobrou na direção e, a 1,2 milhas, identificou o Tartu escoltando seis pesqueiros. O navio Pará vinha logo atrás.
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O clima era tenso. As embarcações brasileiras acompanharam o grupo francês por algum tempo, monitorando o rádio, mas evitaram confronto e se afastaram. No céu, um P-15 da FAB observava tudo.
Vigiando o Tartu e enfrentando avarias
Após o encontro no mar, a Marinha montou um esquema para manter o Tartu sob vigilância constante.
Enquanto isso, navios brasileiros enviados do Rio sofriam com avarias. O cruzador Barroso seguiu com apenas três caldeiras e sérios vazamentos, chegando ao Recife só em 6 de março.
Outras embarcações também enfrentaram problemas. O contratorpedeiro Marcílio Dias, que levava torpedos, perdeu a propulsão por cinco horas e precisou parar em Ilhéus para aguardar reboque.
Refreforços continuam a caminho
Mesmo com sérios problemas nas máquinas, o cruzador Tamandaré partiu do Rio em 2 de março rumo ao Nordeste. Por causa do congestionamento no porto do Recife, os navios foram baseados em Salvador.
A Marinha continuou mobilizando forças: enviou os navios Javari, Juruá, Juruena e Jutaí para reforçar a operação. E requisitou ainda os contratorpedeiros Bertioga e Baependi, que estavam em missão de pesquisa no Maranhão.
Troca de navio e recuo francês
Enquanto a Marinha brasileira concentrava tudo que podia no Nordeste, a França surpreendeu ao substituir o Tartu pelo Paul Goffeny — um navio bem menos capaz.
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Mais uma vez, o Brasil interceptou mensagens francesas e enviou o contratorpedeiro Pará ao ponto de encontro. Às 10h34 de 2 de março, o Pará avistou os dois navios franceses com seis pesqueiros e os acompanhou à distância.
Pouco antes das 13h, o Tartu deixou o grupo e seguiu rumo à África. Era o começo do recuo francês.
Recuo confirmado — e alívio a bordo
Mesmo após a saída do Tartu, o Pará continuou monitorando a flotilha, até ser substituído pelo Pernambuco no dia seguinte. Uma nova mensagem indicava que os navios franceses seguiriam para reabastecer em Dacar.
A troca de um contratorpedeiro poderoso por outro mais fraco deixava claro: a França havia recuado. A bordo dos navios brasileiros, o alívio era geral. A tensão começava a se dissipar.
Retirada em marcha lenta
A tensão foi diminuindo aos poucos. Em 7 de março, um dos pesqueiros deixou a flotilha e rumou para a Europa. No dia seguinte, outro fez o mesmo.
Por fim, já na altura do Atol das Rocas, o Paul Goffeny e os quatro pesqueiros restantes mudaram o rumo para Dacar. Um avião da FAB acompanhou o grupo e confirmou o recuo definitivo.
Um episódio pitoresco da história recente
A Guerra da Lagosta pode parecer, à primeira vista, um episódio pitoresco da história recente. Mas, por trás do nome curioso, está um embate que expôs tensões diplomáticas, disputas por soberania e os limites do direito internacional no mar. O confronto entre Brasil e França nos anos 1960, motivado por lagostas que migravam ao largo da costa nordestina, revelou a importância estratégica dos recursos marinhos e antecipou debates que hoje dominam o cenário global: quem tem direito ao que está no fundo do mar? Em tempos de crescente pressão sobre os oceanos, lembrar a Guerra da Lagosta é também refletir sobre como nações se movem — ou colidem — quando interesses econômicos e geopolíticos se misturam às águas internacionais.
Imagem de abertura: www.naval.com.br.
Fonte: https://www.naval.com.br/blog/2016/01/28/a-guerra-da-lagosta-e-suas-licoes/.