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Dragar o Canal do Varadouro: má-fé, insensatez, ou só ignorância?

Dragar o Canal do Varadouro: má-fé, insensatez, ou só ignorância?

A Fundação Florestal, a quem compete cuidar das unidades de conservação Estaduais de São Paulo, esclarece que “Por ser uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, o Parque Estadual Lagamar de Cananéia busca atingir objetivos, como a preservação dos ecossistemas e da diversidade genética e a pesquisa científica, além das atividades de educação ambiental e ecoturismo”. Correto. E nós acrescentamos que o Complexo Estuarino-Lagunar Iguape-Cananéia-Paranaguá é o maior criadouro de espécies marinhas do Atlântico Sul. Por suas excepcionais qualidades, o Lagamar é mais um sítio Ramsar (zona úmida classificada como local de importância ecológica internacional ao abrigo da Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional) e foi reconhecido pela Unesco. Contudo, agora está ameaçado ante a ideia dos governos de São Paulo e Paraná de dragar e alargar o Canal do Varadouro para promover o turismo náutico na região.

mapa do Lagamar
O imenso estuário que começa em Peruíbe, SP, e segue até Paranaguá, PR, também conhecido como Lagamar, é talvez a maior ‘joia da coroa’ do litoral do País.

De quebra, o Lagamar apresenta um rico patrimônio arqueológico, a presença humana na região de Cananéia remonta ao ano 4.000 a.C. Trata-se de um imenso estuário rodeado pelo maior trecho contínuo de Mata Atlântica do Brasil. A característica geográfica também é marcante: em nenhum outro ponto do litoral a Serra do Mar se aproxima tanto do oceano. Entre Paraná e São Paulo, uma rede de rios e canais serpenteia por  belíssimos manguezais, restingas, montanhas, ilhas, praias, dunas e floresta. Esses canais se conectam ao mar por várias “aberturas”, ou barras.

Organizando a resistência

Assim que a notícia foi divulgada pelo Estadão em 8 de outubro, meu irmão Rodrigo Lara Mesquita, um dos maiores defensores do Lagamar e um dos fundadores da SOS Mata Atlântica, desceu imediatamente após para a região onde está até agora, conversando com as comunidades e lideranças caiçaras. Ao tempo em que era editor do Jornal da Tarde, Rodrigo colocou todo o peso do jornal para denunciar as maracutaias de empresas que queriam especular ou transformar o local em pasto para búfalos!

Em seguida, junto com um grupo de amigos, aproximou-se do governo Montoro, sensível ao meio ambiente e o levou, junto com o grupo de fundadores da ONG, para conhecer o Lagamar. Montoro ficou encantado, impressionado, e tornou-se um aliado da causa. Para resguardar ainda mais o tesouro biológico, Franco Montoro tombou a Serra do Mar que ocupa o Estado, e convenceu José Richa, seu colega no Paraná, a fazer o mesmo. E note, foi nos anos 80 que isto aconteceu, mais de 40 anos atrás, uma prova do quanto São Paulo estava adiantada na questão do meio ambiente, só mesmo alguém de fora para não perceber esta vocação.

Além da falta de visão atual, a impressão que tenho é que naquela época os políticos ainda não eram tão medíocres. Montoro deu toda a força que podia para contribuir com a manutenção da biodiversidade da região.

Enquanto isso, eu fiquei por aqui para não só escrever este post, mas para acionar a reação entre o pessoal da academia e os ambientalistas, e juntar as forças paulistas e paranaenses com a ajuda do ambientalista Clóvis Borges, Diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) que promove a reação no Paraná. Posto isto, vamos em frente.

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Patrimônio Mundial  e Reserva da Biosfera, pela Unesco, e um sítio Ramsar

Os canais também são o habitat de mamíferos marinhos como os ameaçados botos-cinza, e tartarugas, especialmente a tartaruga-verde. Já o interior da mata atlântica abriga espécies em risco de extinção como a onça-parda e os bugios, ou animais endêmicos, e criticamente ameaçados, como mico-leão-da-cara-preta ou o papagaio-de-cara-roxa. Além destes, o formidável conjunto contempla 849 espécies de aves, 370 de anfíbios, 200 tipos de répteis, 270 de mamíferos, e 350 espécies de peixes. Os mamíferos médios e grandes estão presentes com 28 espécies (cachorro vinagre, anta, cateto, etc) e 26 espécies de pequenos mamíferos, sem falar na flora, microfauna, etc. Só em Samambaias e Licófitas são 55 espécies. Por estas qualidades, o Lagamar recebeu a chancela de Patrimônio Mundial  e Reserva da Biosfera, pela Unesco, e também é mais um sítio Ramsar.

A introdução de uma área na Lista de Ramsar faculta ao Brasil a obtenção de apoio para o desenvolvimento de pesquisas, o acesso a fundos internacionais para o financiamento de projetos e a criação de um cenário favorável à cooperação internacional, segundo o site do ministério de Meio Ambiente.

Para ter um sítio Ramsar o Brasil assume compromissos internacionais

A mesma fonte diz ainda que, ‘em contrapartida, o Brasil assumiu o compromisso de manter suas características ecológicas – os elementos da biodiversidade, bem como os processos que os mantêm. E deve atribuir prioridade para sua consolidação diante de outras áreas protegidas, conforme previsto no Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), aprovado pelo Decreto no 5.758/06.

No entanto, os governos de São Paulo e Paraná, além de ‘não atribuírem prioridade para a consolidação da área protegida’, ainda deliberadamente expõem essa riqueza ao risco. Propor a dragagem e alargamento do Canal do Varadouro para permitir passeios de uma flotilha com  cerca de 250 mil embarcações de recreio, beira o deboche ou a demência, até um paralelepípedo não teria coragem de se expor.

A orientação ainda bate de frente com a vocação da área, atribuída pela Fundação Florestal, e escoiceia o compromisso internacional pelo sítio Ramsar, que diz: ‘o Brasil assumiu o compromisso de manter suas características ecológicas, os elementos da biodiversidade, bem como os processos que os mantêm. E deve atribuir prioridade para sua consolidação diante de outras áreas protegidas‘.

Só por isso a sugestão é totalmente equivocada, fora de hora e propósito. Mas o pior é que ela está adiantada.

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Pobreza e dificuldade de acesso contribuíram para o Lagamar

A dificuldade de acesso ajudou muito a preservação da imensa área que começa em Peruíbe e termina em Paranaguá. Durante muitos anos havia apenas uma – e péssima – estrada para o sul de São Paulo, a BR 116. E a pobreza do Vale do Ribeira também contribuiu. Assim, o turismo que se desenvolveu a partir da década de 70 foi o ecológico, com baixo impacto ambiental. Em outras palavras, a modalidade adequada para uma área tão rica e sensível.

Proposta de SP e PR é muito pior que o Projeto Turis, da Embratur, que destruiu o litoral norte

Temos insistido que não podemos permitir a contínua  destruição do litoral norte como estamos fazendo. Até a abertura da BR 101 nos anos 70, outra megalômana obra dos militares do ‘Brasil Grande’, o litoral norte era praticamente prístino.  Hoje, 50 anos depois, parece mais um cortiço para as classes média e alta. Não é possível permitir que o que aconteceu no litoral norte seja replicado no sul.

Em 1972, portanto em plena ditadura militar, a Embratur apresentou  o Projeto Turis, plano de turismo associado à construção da BR – 101, um desastre cujas consequências perduram até hoje. O plano contemplava as cidades de Angra dos Reis, Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião, Mangaratiba e, especialmente, Paraty.

Ambos os governos fizeram uma sinistra parceria para dragar e aumentar a largura do Canal do Varadouro, aberto há 70 anos para interligar os litorais dos dois Estados e ‘promover’ o turismo náutico no Lagamar. O plano de Ratinho Júnior, e Tarcísio de Freitas, consegue a façanha de ser muito pior que o Projeto Turis, que destruiu o litoral norte paulista e sul carioca.

Talvez esta aliança entre dois políticos oriundos da corrente Bolsonarista seja mesmo parte de um diabólico plano para ‘passar o resto da boiada’. Assim pensa o deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), membro da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados e coordenador da Frente Parlamentar Ambiental. Ele disse ao Brasil de Fato que “a situação (de descontrole durante os incêndios recentes) resulta de um desmonte das políticas ambientais”, semelhante ao que ocorreu durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.

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Tarcísio de Freitas e o desmonte ambiental em São Paulo

“Aquilo que aconteceu no âmbito federal com o governo Bolsonaro, que desmontou todo o Sistema Nacional de Meio Ambiente, a capacidade do poder público de reagir a esses momentos que a gente está vivendo, no estado de São Paulo vem acontecendo esse desmonte, essa desestruturação”, disse Tatto.

Tarcísio de Freitas lançou um ‘Pacote Climático’ em 5 de agosto que foi muito criticado. Entre outras, o governador fundiu as secretarias de Infraestrutura e Meio Ambiente e Logística e Transporte. O objetivo é acelerar o processo de licenciamento ambiental de São Paulo para obras de infraestrutura, sobretudo de rodovias, estradas vicinais e linhas férreas.

Natália Resende, secretária de meio ambiente sem qualquer prestígio ambiental

Para os ambientalistas a fusão foi um desprestígio. Ou seja, a mesma falta de tato que levou Tarcísio a convidar Natália Resende, que não tem passado ambiental, para a secretaria de Meio Ambiente. Carlos Bocuhy, por exemplo, presidente do Proam – Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental – declarou à Folha de S. Paulo na ocasião, que “a fusão  é um dumping para a área ambiental. Isso vai custar muito caro para a população do estado no futuro”, afirmou. “Essa superpasta demonstra uma lacuna enorme, ela tem um caráter amadorístico. A questão está sendo diluída, ao contrário da necessidade contemporânea.”

Desmonte de Tarcísio é a ‘pá de cal’, diz Carlos Bocuhy

Segundo o jornal, o presidente do Proam classifica como “pá de cal” o modelo que o governador implantou em São Paulo. Malu Ribeiro, Diretora de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica, também foi ouvida pela Folha.

“O Conselho Estadual de Recursos Hídricos, que funcionava no Palácio dos Bandeirantes, o que dava um peso político importante para essa agenda, foi transferido para a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente. Isso veio numa espécie de desprestígio para essa agenda”, diz Ribeiro. “Não representou um desmonte, como ocorreu no governo federal, mas foi uma perda de status.”

Aos poucos, com atitudes como esta, o governador vai se deixando revelar. Para coroar a óbvia má vontade contra nosso maior ativo, a biodiversidade, nesta quarta-feira, 9 de outubro, Tarcísio vetou um projeto de lei do deputado Guilherme Cortez (PSOL), aprovado pela Assembleia Legislativa  que propunha o ensino de educação climática nas escolas paulistas. Com esta decisão, o governador mais uma vez demonstra incompreenção do mundo em que vive.

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No estudo ‘Aprender pelo nosso planeta‘,  a UNESCO analisou os programas e currículos escolares de 50 países de todas as regiões do mundo. Mais da metade não faz qualquer referência às mudanças do clima, e apenas 19% explicam sobre a biodiversidade. Desde então, a entidade sugere que a Educação Ambiental faça parte do currículo escolar até 2025.

Governo Tarcísio consegue a pior avaliação escolar em 8 anos

A justificativa do governador é, “O (…) ‘Programa Escola Mais Segura’, em parceria com a Secretaria da Segurança Pública e a Defesa Civil, trata, entre outros assuntos, de riscos e mudanças climáticas, desastres hidrometeorológicos e adaptação baseada em ecossistemas”.

Não conheço os cursos citados, mas sei que o ensino público é uma das vergonhas mundiais que o Brasil enfrenta ano após ano. Com a ajuda do Portal UOL descobri que, em 2023, ‘o ensino nas escolas públicas estaduais de São Paulo piorou entre os alunos do sexto ao nono ano do ensino fundamental. A queda coincide com o primeiro ano da gestão do governador Tarcísio de Freitas. É o pior resultado em oito anos de avaliação: 2,88 numa escala de 0 a 10’.”

Tarcísio é mais sutil, digamos que tem uma mão a mais de verniz, que o ‘protótipo’ que emula, mas demonstra a mesma ignorância, autoritarismo, e desprezo ambiental, só que faz isso em silêncio; ou tenta confundir o público leigo, como na apresentação da ‘BR do Mar’.

Agora, convenhamos, o  vaticínio de Carlos Bocuhy parece completo depois da divulgação deste plano, ou não?

Alargar e dragar o Varadouro?

Que me perdoem os governadores, mas a proposta demonstra que eles não entendem rigorosamente nada sobre meio ambiente. Como temos ressaltado há tempos, a vasta maioria dos políticos de Pindorama não tem a menor noção do período em que vivemos, o Antropoceno. Assim, não agem para preparar as cidades para serem mais resilientes, ou proteger a biodiversidade; o máximo que conseguem é instalar apitos em áreas de risco depois de seguidos desastres ambientais, ou criar comissões/conselhos, quando não sabem o que fazer.

Canal do Varadouro.

Mas, muito pior que isto, a proposta Tarcísio/Ratinho afronta o bom senso no momento em que o mundo discute ‘as três maiores ameaças ambientais’ que a humanidade enfrentará nos próximos anos, de acordo com o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial: a perda irreversível de biodiversidade, os eventos extremos, e a incapacidade global de combater o aquecimento da Terra.

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Ratinho Junior já deu provas de obscurantismo quando, em 2020, liberou um decreto que permitia o ‘manejo das restingas’ no litoral do Paraná, por quê? ‘Porque a vegetação de restinga estaria favorecendo a proliferação de vetores que causam mal à saúde humana’, facilitando ‘crimes, como assaltos, estupros e uso de drogas’, além de haver ‘proliferação de espécies arbustivas exóticas’. O decreto ainda determina ‘que toda ação fica dispensada da autorização do órgão ambiental’

Imediatamente após, 28 professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) redigiram uma nota criticando o governador. O filho do animador de TV desconhece a importância das restingas que agem como barreiras protetoras da erosão costeira, especialmente em época de eventos extremos fora de controle. Quando o Ministério Público mandou parar o corte, parte significativa das restingas de Matinhos e Guaratuba já tinham ido para o saco.

Governador do Paraná entrou com pedido no Ibama

Segundo matéria de José Maria Tomazela, no Estadão, ‘o  governo do Paraná, que detém a maior parte do canal, entrou com pedido no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para aprofundar e alargar a passagem marítima que sofreu estreitamento ao longo dos anos. O objetivo é criar uma nova rota turística navegável entre os dois Estados’.

Diz ainda que, ‘para o governo de São Paulo, o projeto pode alavancar o turismo no extremo sul do seu litoral, uma região que tem grande potencial, mas que ainda atrai poucos visitantes’.

Congresso Internacional de Náutica

Segundo Tomazela, ‘Em agosto, o projeto foi apresentado no 9.º Congresso Internacional de Náutica, em São Paulo. “A pesca esportiva é o segundo esporte mais praticado no Brasil, movimentando as regiões costeiras e as cadeias do setor, com a construção de marinas e a indústria de embarcações. É por isso que esperamos concretizar esse projeto do Canal do Varadouro, uma espécie de ‘BR do mar’”, disse, na ocasião, o governador Ratinho Júnior (PSD)’.

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Finalmente, revela Tomazela, ‘Em março do ano passado, os secretários de turismo do Paraná, Márcio Nunes, e de São Paulo, Roberto de Lucena, assinaram protocolo de intenções de ações conjuntas para ‘revitalizar’ o Canal do Varadouro. A Secretaria de Turismo de São Paulo (Setur), também iniciou estudos para a dragagem da parte paulista do canal. “Estamos em tratativas com o Departamento Hidroviário (órgão do Executivo paulista) e discutindo a melhor forma de fazer a dragagem”.

Como se vê, a ideia não é de agora, ela vem germinando há tempos e tem ‘cheiro’ de uma ‘nova Cancun‘, só que no mais rico ambiente costeiro do Brasil. Resta esperar que o Ibama mostre ao que veio e não aprove a obra sem antes exigir que o projeto passe por todas as fases do mais rigoroso licenciamento ambiental. A outra opção seria negar o licenciamento logo de cara, tal o desatino.

Propor a construção de trapiches, banheiros, conveniências, ambulatórios, áreas de espera e 160 pontos de apoio náutico com boias nas margens do Lagamar, entre as paupérrimas comunidades caiçaras de Tibitanga, Vila Fátima, Marujá, Ararapira, Guaraqueçaba, ou Ariri, para atender a uma flotilha de 276 mil lanchas (181 mil em SP, e 95 mil no PR), é simplesmente inconcebível e beira o surreal do ponto de vista ambiental. Fica a dúvida: seria a ignorância a única justificativa?

Fechem a barragem do Canal do Valo Grande e não atentem contra nosso maior patrimônio!

A sugestão revela, da mesma forma, que a secretária Natália Resende entende de meio ambiente tanto quanto seu mentor. Se este governo realmente deseja auxiliar a região do ponto de vista social e ambiental, a primeira medida a ser tomada seria o fechamento da barragem do Canal do Valo Grande. Esta inacreditável discussão já dura 300 anos como diz o prefeito de Iguape Wilson Lima (PSDB), enquanto ameaça a integridade do Lagamar. Para o prefeito, “O fechamento da Barragem do Valo Grande poderia potencializar extremamente o turismo de Iguape. Nós poderíamos recuperar uma área extraordinária que, por ser um importante criatório de vida marinha, neste momento, comprometeu a vida.”

E, além disso, providenciar ensino de qualidade aos caiçaras perdidos nos rincões do Lagamar, dar-lhes postos de saúde decentes, prepará-los e ajudá-los em novas atividades na maricultura, entre outros.

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Silêncio ensurdecedor no governo paulista

Mas, sobre o Canal do Valo Grande, persiste um silêncio ensurdecedor no governo paulista. Ninguém toca no assunto, apesar dos sistemáticos apelos de Wilson Lima e de ambientalistas. Nem a secretária de Meio Ambiente, muito menos a decadente Fundação Florestal, prostituída desde o governo João Dória, quando ele ameaçou fechá-la, e que se mantém desmoralizada até hoje.

A repercussão

Para Carlos Bocuhy, presidente do Proam, ‘A proposta peca na origem, anunciada sem nenhum suporte científico sobre a proteção necessária de uma das mais importantes áreas úmidas do Brasil, plena de biodiversidade em seu rico ecossistema marinho. Alterar drasticamente esse ecossistema destruiria os atributos ambientais da região, atingindo ainda comunidades vulneráveis que dependem desses recursos naturais para sua sobrevivência’.

José Pedro de Oliveira Costa é outro notável ambientalista. Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, e representante no Brasil dos Observadores do Patrimônio Mundial.

Ele considera a região colocada em xeque pelos governadores como ‘uma preciosidade biológica, nacional e internacional. Aí estão os últimos remanescentes de natureza costeiras de todo o Sudeste e Nordeste do Brasil, em um mosaico de áreas protegidas como não existe similar no planeta’.

Para Zé Pedro de Oliveira Costa, ‘é uma ideia delirante’

Depois de enumerar várias outras qualidades como o endemismo, e as espécies  criticamente ameaçadas, Zé Pedro comenta que ‘é uma área de extrema vulnerabilidade geológica e biológica que já mostra muitas variações de terreno em função das mudanças climáticas…’

Por isso, diz, ‘não há a mínima possiblidade de se intervir nessa área que não seja com extremo cuidado e controle. É delirante a ideia de implantar nesse conjunto magnífico uma ‘rodovia marinha’ de grande circulação’.

‘Conclamamos todos os interessados para implantar um sistema de turismo sustentável compatível com a pujança natural do Lagamar Paranaguá – Peruíbe’.

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Dra. Yara Schaeffer-Novelli

A Dra. Yara Schaeffer-Novelli  foi outra personalidade emblemática da academia a falar sobre o plano. A professora nos dá uma magnífica aula, demonstra sua profunda indignação de forma elegante, e ainda  puxa a orelha de seus proponentes, logo abaixo. Antes, saiba que a Dra. Yara é formada em História Natural pela Universidade do Brasil (1965), Mestre em Oceanografia Biológica (1970), Doutora em Ciências (Zoologia) (1976) e Livre-Docente em Oceanografia Biológica, pela USP (1991). É Professora Sênior da USP desde 1998, onde continua respondendo pelo BIOMA-Centro de Ensino e Informação sobre Zonas Úmidas Costeiras Tropicais, com Ênfase no Ecossistema Manguezal.

Ela diz que ‘a dragagem de apenas 6 km do Canal do Varadouro, que está assoreado há 50 anos não dando passagem ou navegabilidade de embarcações de maior calado, é uma pretensão lançada agora pelos governos do Paraná e São Paulo que traz sérias preocupações’.

‘A área costeira deste trecho do litoral Sudeste e Sul brasileiro está sobre um substrato arenoso, uma planície costeira arenosa que preenche todo este espaço entre o contraforte da Serra do Mar e o oceano Atlântico’.

‘Este substrato arenoso, muito friável, é fruto de assoreamento que vem ocorrendo há 120 mil anos. Todos estes traçados da dinâmica, tanto fluvial como marinha, que sustentam e dão suporte a uma rica flora, ou cobertura vegetal, caracterizada principalmente por manguezais, e porque não dizer, por nossos representantes da Mata Atlântica, como restingas e manguezais que dão abrigos ricos em alimento para uma biodiversidade incrível. Não podemos ter um ambiente mais rico, sensível e vulnerável’.

‘Nós já temos o Valo Grande’

‘Mais alterações infringidas pelo homem? Nós já temos o Valo Grande que tornou Iguape uma ilha. Ao fazerem este canal para agilizar a exportação de arroz, veremos que nos primeiros metros de abertura do Valo Grande, já se queria fechá-lo porque estava saindo do controle’.

‘Era para ser um canal para a passagem de canoas carregadas de arroz que, de repente, foi se abrindo, abrindo…porque a areia não tem uma forma de ser segura, de ser barrada. Então, veio a erosão. Uma barragem que era para ter 2 metros de largura passou a ter 200. Portanto, já houve a confirmação de que a alteração proposta pelo homem num sistema frágil, sensível, numa planície costeira arenosa, não deu os resultados pretendidos’.

‘Canal do Varadouro aberto na década de 1950’

‘Já na década de 1950 do século passado, agora também vemos que foi aberto o Canal do Varadouro para facilitar o transporte e a comunicação  entre as comunidades costeiras do norte do Paraná com o sul de São Paulo. Comunidades costeiras nunca visaram motonáutica, turismo de alto impacto. Eu vi, em dezembro de 2023, verdadeiras hordas de Jetskis que vêm sempre no  fim de semana, de Paranaguá para Cananéia’.

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‘São hordas de jetskis passando por todos estes canais’

‘São hordas de jetskis passando por todos estes canais. Isto é motonáutica agressiva num espaço costeiro protegido pela restinga do Marujá e pela Ilha do Cardoso. São locais ricos em fauna marinha,  mamíferos marinhos como os botos que ensinam suas crias a caçar e se alimentar dentro do canal de Ararapira, com uma avifauna impressionante, belíssima, e os papagaios chauás (Amazona rhodocorytha, espécie brasileira ameaçada de extinção)’.

‘Gente, pensar em uma dragagem que proporcione 30 metros de largura, com uma profundidade planejada de 2.4 metros, pra quê? Para passar o quê? Pra ter mais jetskis, mais lanchas? Aquilo não é lugar para velejar, não é um lugar de turismo contemplativo apesar da riqueza cênica. Não! É pra botar lanchas correndo! E tudo isto num canal de 30 metros de largura, escavado e dragado numa planície arenosa?!’

‘Já temos exemplos de uma nova barra sendo aberta pela natureza, na restinga do Marujá, em 2017/2018. Temos a barra de Ararapira, e agora a  barra nova, uma erosão costeira promovida pelos novos sistemas, o novo normal como dizem por aí. Diante de todas estas alterações do ser humano, a erosão costeira é algo normal’.

‘Cuidado, governador do Paraná, cuidado governador de São Paulo!’

‘Erosão costeira ocorre, as barras se abrem e se fecham. A barra nova foi algo que assistimos por filmagens, uma coisa absurda. Visitei a área, vejam como é sensível; as coisas de areia se esvaem com a força da hidrodinâmica  costeira. A água constrói, remodela a zona costeira, assim como as águas interiores’.

‘Vamos com calma. Um pedido ao Ibama para uma simples dragagem? Ou vamos pensar no todo, aonde está inserida esta ‘simples dragagem’? Estamos lidando com a APA costeira Peruíbe-Iguape-Cananéia, um sítio Ramsar, ou seja, uma área úmida de importância internacional’.

‘Não vamos deixar vulnerável nossa linha de conservação neste santuário. Cuidado, governador do Paraná, cuidado governador de São Paulo! O valor desta área está na beleza cênica, na biodiversidade, na riqueza cultural de nossos caiçaras. Eles não vão usar jetski, os caiçaras não têm lanchas com motores potentes, eles usam canoas! Vamos manter a nossa cultura, a tradição e o valor em serviços sistêmicos prestados graciosamente pela floresta atlântica, os manguezais, e a riqueza das restingas que abrigam muitos sambaquis. Temos uma história rica neste segmento costeiro. Mas é uma história que envolve cultura, que envolve o homem local; não envolve forasteiros’.

Fábio Feldmann, ambientalista, advogado, ex-secretário de Meio Ambiente de SP

Fábio também foi fundador e primeiro presidente da SOS Mata Atlântica, e ex-deputado federal por três mandatos, um dos responsáveis pelo capítulo do Meio Ambiente da Constituição de 1988. Dos Estados Unidos, onde está a trabalho, Fábio mandou o seguinte depoimento:

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‘Praticamente há 40 anos houve uma discussão muito semelhante no Lagamar. A ideia era fazer uma intervenção no Canal do Varadouro, mas o movimento ambientalista à época, liderado pelo Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, conseguiu chamar a atenção da opinião pública e impedir a obra que teria grandes impactos’.

‘Logo depois foi assinado um convênio entre São Paulo e Paraná em defesa do estuário lagunar Cananéia-Iguape-Paranaguá. O que acontece é que nestes últimos 40 anos ficou claro que esta área é muito importante, e com o advento da Convenção da Biodiversidade, com toda a discussão ambiental e ecológica no mundo, estes temas foram muito valorizados. Hoje temos a Convenção da Biodiversidade, temos a Constituição de 88, a Constituição do Estado de São Paulo, de modo que o que se pretende fazer vai contra exatamente todo este movimento, esta tendência que ocorreu nos últimos 40 anos’.

‘Acredito que os dois governos vão pensar bem e voltar atrás até mesmo para não chamar a atenção contra si em relação à necessidade de rever esta obra, na época em que a biodiversidade, a Mata Atlântica, os oceanos, e estuários estão sendo valorizados e apontados como muito importantes para as medidas de adaptação às mudanças do clima’.

Professor Eduardo Vedor, da Universidade Federal do Paraná

Eduardo Vedor é do LAGEAMB Laboratório de Geoprocessamento e Estudos Ambientais, da UFPR. Ele lidera um grande projeto de pesquisa fundiária desde 2014. Por isso está baseado em Guaraqueçaba com sua equipe de 40 pessoas. O diagnóstico (que será entregue em novembro) envolve 18 comunidades tradicionais, 700 famílias foram entrevistadas, localizadas no entorno do Parque Nacional do Superagui, ‘justo na baía dos Pinheiros, diz Vedor, onde será feita a dragagem’.

‘Nós entrevistamos 700 famílias, em conversas de uma hora e meia, duas horas, o que gerou um imenso banco de dados que certamente vai propiciar uma ampla regularização fundiária na região. Por isso, por estarmos sempre ‘em campo’, percebemos todo o movimento atrelado à especulação imobiliária decorrente do projeto que o governo do Paraná vem anunciando’.

Canal do Varadouro está com menos de 30, 40 centímetros de profundidade

Eduardo Vedor considera que o Canal do Varadouro tem que ser dragado porque está com menos 30 a 40 centímetros de profundidade, então a dragagem é necessária, no entanto estamos falando numa dragagem para chegar em um metro de profundidade, que é o que precisam as embarcações das pessoas por aqui’.

‘Eu já vi anunciado pelo governo (do Paraná) 2,5 metros, em alguns lugares até 3 metros de profundidade. Do ponto de vista ambiental isto não existe…estão falando de embarcações com portes que nunca circularam nesta região, estão falando em iates, isso assusta’.

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‘Assusta pescadores, e a gestão do parque nacional tendo em vista que estas intervenções estão previstas para acontecer dentro do parque. A gente ficou ainda mais preocupado quando o governo informou que estava se autolicenciando. Mas, como o parque é federal, o rito desde o início tinha que começar pelo Ibama. O ICMBio (a quem compete cuidar das UCs federais) precisou se manifestar oficialmente pedindo que o autolicenciamento com dados dentro do parque fosse paralisado. Assim, o processo já começou de forma equivocada no âmbito legal’.

Eduardo Vedor diz que ‘a UFPR não se manifestou porque que não tivemos acesso ao projeto, e recebemos com bastante infelicidade o chamado para esta reunião dentro de nossas instalações em Paranaguá. A gente espera finalmente conhecer o projeto para emitirmos uma Norma Técnica contrapondo algumas questões (a reunião foi adiada)’.

Em seguida, ele confirma que o Ministério Público já os convocou para a reunião do dia 30/10.

A ameaça da especulação imobiliária

Eduardo diz que deixou propositalmente para o final o maior problema na visão dele que é a especulação imobiliária. (Provoca) Uma alteração completa desta região que é a mais preservada de mata atlântica do País. Depois disse que a baía dos Pinheiros,  tem vocação para o turismo, só que pelo nosso diagnóstico só pode ser o turismo de base comunitária, vamos capacitar os caiçaras para que eles sejam os protagonistas. E jamais para pessoas externas a este território com uma visão rasa de lucratividade. Não vamos permitir aqui a descaracterização completa dos caiçaras que aconteceu na ilha do Mel.

A palavra da secretária de Meio Ambiente, Natália Resende

Nesta quinta-feira enviamos o post para o e-mail da secretária de Meio Ambiente, Natalia Resende, para que ela fizesse os comentários que julgasse oportunos. Na tarde de sexta-feira, 11 de outubro, recebemos a seguinte resposta:

NOTA DA SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE, INFRAESTRUTURA E LOGÍSTICA

“O Governo de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, informa que nenhum pedido de licença para alargamento do Canal do Varadouro foi protocolado e não há projeto em curso neste sentido. O protocolo de intenções assinado pela Secretaria de Estado de Turismo e Viagens com o Governo do Paraná visa estimular a cooperação técnica e troca de informações, para avaliação de parcerias.”

“A Fundação Florestal tem cumprido um papel fundamental na preservação de nosso patrimônio ambiental. Além de investir na preservação do Parque Estadual Lagamar de Cananeia (SIC) e nas demais áreas de proteção que integram o Complexo Iguape-Cananeia-Paranaguá (SIC), a Fundação Florestal conduz na região importantes projetos de proteção da biodiversidade, como o monitoramento do mico-leão-da-cara-preta, espécie altamente ameaçada de extinção, e a pesquisa e acompanhamento das espécies nativas do parque, com o apoio do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA).”

Fusão de pastas que deu origem à Secretaria de Estado de Meio Ambiente

“Quanto à fusão de pastas que deu origem à Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, é importante ressaltar que ela tem se mostrado acertada por diversos fatores, entre eles a maior integração, sinergia e presença de preocupações e medidas ambientais nas políticas públicas de mudanças climáticas, infraestrutura e logística. Já o Conselho Estadual de Recursos Hídricos está passando por um processo importante de valorização, com a aprovação do Plano Estadual de Recursos Hídricos 2024-2027 e pautas que buscam fortalecer o colegiado enquanto órgão de nível central e estratégico do sistema integrado de gerenciamento de recursos hídricos, além de conferir dinamismo à sua atuação.”

“Por fim, sobre o fechamento do canal do Valo Grande, é preciso responsabilidade na análise e condução desta solução, tão importante para a preservação daquele território. A atual gestão, por meio da SP Águas, tem buscado compreender e avaliar tanto os impactos das diferentes soluções defendidas pelos atores envolvidos nesse processo histórico quanto a questão da titularidade, sendo o Ribeira de Iguape um rio federal.”

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Agência Estadual de Notícias do governo do Paraná

Poucos minutos depois de publicar este post recebi um link de um amigo paranaense. Ele me dirigiu para uma matéria oficial com o título, Estado finaliza projeto de modernização e dragagem do Canal do Varadouro, no Litoral, publicado em 5 de setembro pelo governo do Paraná.

O filho do apresentador de TV, afinal foi pelo programa sensacionalista e vexatório do pai que ele se elegeu governador, comemora o bom andamento do projeto para esculhambar o Lagamar. Trata-se de foto oficial assim legendada: Estado finaliza projeto de modernização e dragagem do Canal do Varadouro, no Litoral Foto: Jonathan Campos/AEN.

“O governador Carlos Massa Ratinho Junior recebeu nesta semana da Secretaria do Planejamento o Anteprojeto de Dragagem, de Sinalização Náutica e de Instalações de Apoio ao Turismo no Canal do Varadouro, elaborado pela Universidade Livre do Meio Ambiente (Unilivre) a partir de um contrato celebrado com o Paraná Projetos.”

Paraná é a locomotiva desta ‘presunção’?

Lendo com atenção, comparando com a resposta do governo paulista, fica nas entrelinhas a impressão que o Paraná é a ‘locomotiva’ desta ‘presunção’, como disse Dra. Yara Schaeffer-Novelli. Ao contrário do texto paulista, que tenta negar o óbvio, o documento paranaense mostra que ‘o governador tem uma visão ativa e forte em relação ao turismo náutico’.

A dica é de procedência do secretário de Estado do Desenvolvimento Sustentável, Everton Souza, em 5 de setembro,

o governador tem uma visão ativa e forte em relação ao turismo náutico. Vamos começar as tratativas com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para o licenciamento desse projeto, que vai trazer grandes benefícios às populações tradicionais

O secretário de Estado do Planejamento, Guto Silva, é outro que está embevecido…

Esse canal tem algo extraordinário: ele está no coração da Mata Atlântica. E ele tem um potencial turístico maravilhoso, também de geração de emprego para ribeirinhos, pelo turismo náutico, trazendo gente de São Paulo para navegar no Paraná, deixando receita e muita coisa positiva. Não temos dúvida de que é mais um projeto que pode mudar a cara do Litoral

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Enquanto a alta cúpula do governo do Paraná comemorava em setembro o andamento da ‘presunção’, confirmando a ideia de transformar o Lagamar ‘pelo turismo náutico’ como afirmou Guto Silva, o  ‘Governo de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, informa que nenhum pedido de licença para alargamento do Canal do Varadouro foi protocolado e não há projeto em curso neste sentido’.

E foi tudo. A resposta paulista é tão surreal quanto o plano que negam ter. Escreveram  quatro linhas para negar o que o governo do Paraná confirmou ainda em setembro. Todo o resto da nota é puro blá-blá,blá, e nada tem a ver com ‘as hordas de jetskis’ que tanto encantam os brucutus de plantão.

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