Balneário Camboriú (SC): elegia ao concreto no litoral brasileiro
Uma das coisas que mais chocaram quando fiz a primeira viagem pela costa brasileira foi a cara-de-pau de muitos caras pálidas. Parece que eles têm a inexorável ‘obrigação’ de destruir a paisagem milenar para ocupar as praias. No litoral brasileiro, um dos mais belos do mundo, isso aconteceu no passado e no presente. Guarujá, ex-pérola do Atlântico, foi uma das belezas que destruímos com a ocupação insustentável iniciada ali pelos anos 50 do século passado. Mais recentemente, a vítima foi Balneário Cambroiú (SC).

Um parêntesis antes de prosseguir
Desde já peço perdão a todos que se sentirem ofendidos. Especialmente à população (estimada pelo IBGE em 2025 em 169 mil pessoas) e proprietários de imóveis em Balneário Camboriú. A intenção não é ofender, ao contrário. Queremos chamar a atenção para uma forma de ocupação absolutamente insustentável do litoral que está se tornando rotina.
Antes de prosseguir é oportuno recordar que praias são espaços públicos, pertencem à União quer dizer, a todos nós. Ninguém tem o direito de destruí-las. Para além disso, a Constituição em seu artigo 225 estabelece que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
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A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
A pergunta é preservar o quê, no caso de BC, para as futuras gerações? Outra questão que poucos conhecem é que, assim como a Constituição impõe a defesa e preservação da zona costeira, a mesma Lei protege e ‘defende’ a paisagem, considerada um bem de todos.
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Quem explica é a especialista Ivette Senise Ferreira em seu trabalho A Tutela Ambiental da Paisagem no Direito Brasileiro’.
A atual Constituição, de 1988, refere-se à proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (art. 24, VII) para estabelecer a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal. A enumeração decorre da definição de patrimônio cultural estabelecida no seu art. 216, V. que inclui “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontologia, ecológico e científico
Ao mesmo tempo, a Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade): garante a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural e paisagístico, reconhecendo o direito de paisagem como uma de suas diretrizes gerais.
Paisagem esta que os empreendedores de Balneário Camboriú deceparam e enfiaram no lixo.
A ocupação da praia Central de Balneário Camboriú
Pela série de fotos da prefeitura de Balneário Camboriú, cuja ocupação já comentamos, publicadas originalmente pelo g1, pode-se ver que o torneio de prédios altíssimos teve início nos anos 80 e 90, quando já havia fartura de informação sobre os maus tratos aos oceanos do mundo.
Para nós este é o ponto mais impressionante. Como foi possível erguer esta monstruosidade no litoral, numa ex-linda enseada, nos anos 80 e 90 quando já havia fartura de informação sobre a necessidade de buscarmos a sustentabilidade?
Balneário Camboriú (SC) e a especulação imobiliária
O caso de Balneário Camboriú mostra que nosso litoral segue entregue ao deus-dará. Faltam políticas públicas para quase tudo nessa faixa sensível por natureza, onde o mar encontra a terra firme. E o pior: BC não é exceção, mas regra no litoral catarinense.
Em Itajaí, o sexto município mais populoso do Estado, a construção civil — leia-se Sinduscon/Itajaí — age em conluio com o prefeito Volnei Morastoni (MDB). Juntos promovem uma farra da corrupção para desfigurar a cidade e lucrar sem limites, mesmo que isso custe a sombra em várias praias.
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Ocupar mal o litoral traz danos graves também à biodiversidade. Cerca de 90% da vida marinha começa exatamente nessa faixa. Ignorar que ela funciona como berçário significa ampliar as ameaças à vida marinha, que já está em risco.
Cortiços para ricos inconsequentes
Mas, infelizmente, por omissão de grande parte do público que egoisticamente ‘quer vista para o mar’, ou ‘casa pé na areia‘, quem dá as cartas no litoral é a especulação imobiliária que está se especializando em construir cortiços para ricos.
Foi o que ocorreu em Balneário Camboriú (SC). Na Praia Central, o superadensamento cresceu de forma tão violenta que hoje a cidade se gaba de ter os prédios mais altos da América Latina, alguns com mais de 80 andares. Daí surgiu o apelido de “Dubai brasileira”.
As pessoas se encantaram tanto com a bobagem de ser a “Dubai brasileira” que ergueram cada vez mais prédios. Só depois perceberam que, passado o meio-dia, quando o sol fica a pino, a sombra dos arranha-céus cobre a praia inteira.
Os prédios foram construídos tão perto da linha do mar, e tão altos, que dificultam a insolação e a circulação do vento, tornando por vezes o interior do balneário uma fornalha igualzinha a Dubai do Oriente Médio.
Dos arranha-céus para a engorda da praia
Depois de banalizar a paisagem que os atraiu, a ponto de cobrir a praia de sombra, eles decidiram alargar a faixa de areia. Os 25 metros originais se transformaram em 70 metros.
Segundo a imprensa, esta seria uma demanda da população desde a década de 1990. A maioria se manifestou favorável (71%) em plebiscito.
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Um grupo de empresários locais se cotizou para pagar a obra, estimada em R$ 66 milhões de reais, que ainda contou com empréstimo do Banco do Brasil.
Praia Central com 75 m e muitos problemas
Assim, em 2021 Praia Central foi engordada ‘a olho’, numa decisão não se sabe exatamente de quem, e sem ouvir quem quer que seja que conheça e estude o litoral. Dois anos depois o mar já havia engolido parte da faixa de areia exigindo mais um processo de aterramento.
Hoje, a cada nova ressaca formam-se crateras na Praia Central que, segundo professores da UFSC, apresentou piora na balneabilidade e aumento do risco de afogamentos. Para estes especialistas, os empreendimentos de aterro de praia realizados em Santa Catarina não cumprem com os seus objetivos e não cumprem os próprios projetos licenciados.
Pontos positivos de Balneário Camboriu
Há, no entanto, pontos positivos que não podem deixar de ser mencionados. No País da falta quase total de saneamento e falhas na coleta de lixo, BC é uma exceção: de acordo com o IBGE ‘o esgotamento sanitário é adequado’ (2010), atingindo 88,6% da população. E a coleta de lixo, 100% dos domicílios. Nada mau.
Os problemas do alargamento da praia
Nós sabemos que o alargamento de praias é uma das obras mais complexas de serem feitas. Imagine a dificuldade de mexer num espaço que é móvel por natureza, sofrendo ação contínua de forças naturais como ventos, correntes, ondas, marés, e ressacas, e cujo entorno foi brutalmente alterado pelo ser humano.
Em 2002 a primeira tentativa de engorda da praia, severamente criticada
Em 2002 houve uma primeira tentativa de engorda que gerou severas críticas a ponto de um estudo ser publicado na revista científica em 2006.
Environmental Impacts of the Nourishment of Balneário Camboriú Beach, SC, Brazil (Impactos Ambientais da Alimentação da Praia de Balneário Camboriú, SC, Brasil), foi assinado por quatro especialistas, Paulo Ricardo Pezzulo, Charrida Resgalla, José G. N. Abreu, e João Thadeu Menezes, todos da Universidade do Vale do Itajaí.
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Selecionamos alguns trechos deste
“De junho a agosto de 2002, o município de Balneário Camboriú desenvolveu um programa de alimentação no setor sul da praia a partir de sedimentos dragados da foz do rio Camboriú.”
“Foram realizadas amostragens ecotoxicológicas, sedimentológicas e biológicas para detectar os impactos ambientais relacionados ao projeto.”
Baixa qualidade química do sedimento usado
“A água intersticial no local da mina, bem como na abertura do oleoduto, apresentou toxicidade crônica, sugerindo uma baixa qualidade química do sedimento usado no programa.”
Sedimentos diferentes não devem ser colocados juntos
“Os sedimentos no local da mina eram 30% de silte / argila e 7,2% de cascalho, enquanto os sedimentos nativos na praia nutrida eram 99,8% de areia (principalmente areia fina) e 0,2% de cascalho.”
“A corrente levou a maior parte do silte e da argila para as zonas costeiras-offshore da baía de Balneário Camboriú, alterando sua sedimentação superficial.”
Mortandade expressiva de bivalves
“Mortalidade expressiva e contínua de bivalves suspensos que vivem na praia ocorreram ao longo de 2003.”
“Nenhuma mortalidade semelhante foi registrada nas praias vizinhas.”
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Morte por asfixia
“Suspeita-se que esses eventos devam ser uma resposta à asfixia pelo deslocamento de sedimentos finos e matéria orgânica da zona nutrida para o norte.”
Depois disso, a sanha do engodamento ficou de lado por algum tempo, até 2021 quando a obra começou.
O que Balneário Camboriú está fazendo ‘não merece comemoração’
O Mar Sem Fim conversou com o professor Paulo Horta, coordenador do Laboratório de Ficologia, ciência que estuda algas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vejamos o que ele disse:
Os impactos da obra
Para o professor Paulo Horta “o processo de alargamento tem impactos potenciais, locais, regionais e também globais.”
Mortandade da fauna
“Localmente, seja a mortalidade de fauna por soterramento, no caso dos animais, e das plantas marinhas, por falta de luz, estão as consequências da primeira onda de impactos.”
Contaminação por metais pesados e hidrocarbonetos
“Em escala regional, o processo de dragagem redisponibiliza substâncias químicas diversas, entre elas contaminantes, como metais pesados e hidrocarbonetos que são tóxicas e podem bioacumular na teia trófica.”
“A presença de nutrientes no sedimento revolvido, estes serão redisponibilizados potencializando a ocorrência de florações.”
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“Observamos esses impactos no curto e médio prazo, somados aos de uma região costeira já cronicamente comprometida pelo escoamento superficial contaminado. A frota de transporte, o saneamento precário e a agricultura intensiva de arroz, um dos principais focos da região, agravam ainda mais o quadro.”
Sobre a perda da área de praia
Segundo o professor Paulo Horta, ‘a perda da linha de praia precisa ser avaliada no contexto regional. Contribuem para esse processo além da circulação marinha a dinâmica do sedimento. A ocupação da linha da costa, impermeabilização e a perda da vegetação limitam a alimentação da praia com sedimento, areia, que compensa ou retarda o processo erosivo.”
“Quando colocamos no cenário regional, além da intensa urbanização, verificamos que seja por PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas na definição da Aneel) ou por uso de areia para a construção civil, estamos limitando o aporte de areia natural na região costeira. Isto gera um potencial balanço negativo de sedimento.”
“Devemos reforçar também que a construção de molhes, entre outras intervenções na linha de costa, pode alterar a circulação e promover erosão adicional.”
“Este cenário local se soma ao cenário global de mudanças climáticas, com a elevação gradual do nível do mar e maior frequência e intensidade de ressacas. Tudo isso levou à perda, ou recuo da linha de praia.
Não há motivos para comemorar
O professor Paulo Horta conclui: “A dragagem ameaça atividades que vão da pesca à maricultura e pode até prejudicar o surfe, essencial para a região. Somando esses riscos aos impactos sobre a biodiversidade local e regional, não encontro razão alguma para comemorar esse empreendimento.”
Que este alargamento sirva como exemplo
“Ao contrário, que ele seja uma oportunidade de debate profundo sobre as consequências do uso não planejado do nosso território, que pode custar vidas e eventuais mitigações, e muito recurso dos cofres públicos.”
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O site Mar Sem Fim assina embaixo.
Imagem de abertura: Prefeitura de Balneário Camboriú/Divulgação
Fontes: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,balnerario-camboriu-realiza-obra-para-aumentar-faixa-de-areia-da-praia,70003824487; https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/08/30/fotos-mostram-antes-e-depois-da-praia-central-de-balneario-camboriu-que-tera-alargamento-da-faixa-de-areia.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/balneario-camboriu-triplica-faixa-de-areia-engolida-por-construcoes-a-beira-mar.shtml.
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