Balneário Camboriú, elegia ao concreto no litoral brasileiro
Uma das coisas que mais chocaram quando fiz a primeira viagem pela costa brasileira foi a cara-de-pau de muitos caras pálidas. Parece que eles têm a inexorável ‘obrigação’ de destruir a paisagem milenar para ocupar certas praias. No litoral brasileiro, um dos mais belos do mundo, isso aconteceu no passado e no presente. Guarujá, ex-pérola do Atlântico, foi uma das belezas que destruímos com a ocupação insustentável iniciada ali pelos anos 50 do século passado. Ou Balneário Camboriú, elegia ao concreto no litoral brasileiro.
Ainda falta informação?
Se naquela época havia pouca informação, além da população mundial não ultrapassar os 2,5 bilhões de pessoas, hoje é muito diferente. Formamos uma superpopulação com quase 8 bilhões de pessoas. E há fartura de informação. O novo Santo Graal, o da sustentabilidade, é a bola da vez finalmente. Por isso é mais difícil aceitar o que ocorre em certas praias especialmente, mas não apenas, no litoral de Santa Catarina. Embarque neste post de opinião, cujo objetivo é provocar reflexão.
Um parêntesis antes de prosseguir
Desde já peço perdão a todos que se sentirem ofendidos. Especialmente à população (estimada pelo IBGE em 2021 em 149 mil pessoas) e proprietários de imóveis em Balneário Camboriú. A intenção não é ofender. Mas chamar a atenção, ao qualificar uma forma de ocupação absolutamente insustentável do litoral que está se tornando rotina no Sul, Sudeste, Nordeste e Norte.
O turismo de massa e o litoral quase nunca se dão bem, ao contrário. A vida marinha já é suficientemente ameaçada pela acidificação, pandemia de plástico, sobrepesca, desaparecimento de habitats, introdução de espécies invasivas, etc. A lista é imensa. Mas se você adicionar mais um grave problema, pense no turismo de massa.
Mais lidos
Declínio do berçário da baleia-franca e alerta aos atuais locais de avistagemCOP29, no Azerbaijão, ‘cheira à gasolina’Município de Ubatuba acusado pelo MP-SP por omissãoVerticalização em Ilha Comprida sofre revés do MP-SPAntes de prosseguir é oportuno recordar que praias são espaços públicos, pertencem à União quer dizer, a todos nós. Ninguém tem o direito de destruí-las. Para além disso, a Constituição em seu artigo 225 estabelece que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
PUBLICIDADE
§ 4º
A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
A despeito do que reza a Constituição, desde que iniciei minha carreira como jornalista ambiental especializado no bioma marinho, aprendi o suficiente (e continuo a fazê-lo todo santo dia) para poder criticar e demonstrar o porquê a quem nos dá o prazer de sua confiança.
Leia também
Baía da Traição, PB, nova vítima da erosão costeiraElmano de Freitas (PT) e a especulação no litoral do CearáLado oculto, a realidade no Bairro Rio Escuro em UbatubaDesde o primeiro programa, no rio Oiapoque, critiquei severamente o poder público da época pela baderna urbana em que foi transformado o município de nossa fronteira norte, além de ter, descaradamente, todo o esgoto produzido jogado diretamente no rio, sem qualquer tipo de tratamento. E o rio deságua no mar.
E não parei mais sempre que me deparo com os muitos desatinos que existem na costa brasileira. Quem acompanha este site sabe que sou um ‘expectador engajado’, jamais deixei de dar minha opinião.
Que a gente aprenda com os erros do passado, é como penso, para não repeti-los no futuro. That’s all, folks.
Aos fatos agora.
O processo de ocupação da praia Central de Balneário Camboriú
Pela série de fotos da prefeitura de Balneário Camboriú, cuja ocupação já comentamos, publicadas originalmente pelo g1, pode-se ver que o torneio de prédios altíssimos teve início nos anos 80 e 90, quando já havia fartura de informação sobre os maus tratos aos oceanos do mundo.
Para nós este é o ponto mais impressionante. Como foi possível erguê-los nos últimos 20 ou 30 anos?
PUBLICIDADE
A falta de planejamento é evidente, assim como a devastação ambiental e paisagística. E o superadensamento, a principal característica. O surpreendente para nós, é que aconteceu em um município com alto índice de desenvolvimento humano.
Balneário Camboriú tem o sétimo maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 0,867, entre os municípios do País!
Balneário Camboriú, Santa Catarina, e a especulação imobiliária
O que aconteceu em BC reforça que nosso litoral continua ao deus-dará. Não há políticas públicas para quase nada nesta faixa sensível por natureza, onde o mar se encontra com a terra firme. E o balneário não é exceção no litoral de Santa Catarina.
Itajaí, sexto município mais populoso do Estado de Santa Catarina, o setor da construção civil leia-se Sinduscon/Itajaí’ , mancomunado com o prefeito Volnei Morastoni (MDB) promovem uma forra-do-boi na corrupção local a fim de desfigurarem, e lucrarem à beça, mesmo se para tanto for preciso acabar com o sombra em várias de suas praias.
Isso é extremamente danoso também para a biodiversidade, especialmente porque 90% da cadeia de vida marinha começa exatamente no litoral. Ocupá-lo sem considerar que se trata de um berçário redunda em mais ameaças à já ameaçada vida marinha.
Cortiços para ricos e muito ricos inconsequentes
Mas, infelizmente, por omissão de grande parte do público que egoisticamente ‘quer vista para o mar’, ou ‘casa pé na areia‘, quem dá as cartas na zona costeira é a especulação imobiliária que está se especializando em construir cortiços para ricos e muito ricos inconsequentes.
Foi o que aconteceu entre outros, ao Balneário Camboriú, no litoral de Santa Catarina. Ali, na Praia Central, o superadensamento foi de tal forma violento que hoje a cidade se gaba de ter os prédios mais altos da América Latina, alguns com mais de 80 andares. Por isso recebeu o apelido de ‘Dubai brasileira’.
PUBLICIDADE
As pessoas ficaram tão encantadas com a bobagem de ser a ‘Dubai brasileira’ que mais e mais prédios foram erguidos, até perceberem que depois do meio-dia, hora do sol a pino, quem fosse à praia encontrava sombra.
Os prédios foram construídos tão perto da linha do mar, e tão altos, que dificultam a insolação e a circulação do vento, tornando por vezes o interior do balneário uma fornalha igualzinha a Dubai do Oriente Médio.
Destruição da paisagem
Sem contar a destruição de uma paisagem que levou eras para se formar. Santa Catarina demonstra nada ter aprendido com o exemplo da Paraíba, único Estado costeiro que pode-se dizer ‘sustentável’, pelo simples fato de que a Constituição do Estado baniu os espigões da orla.
A população paraibana aproveita o litoral tanto quanto a de outros Estados, mas não destruiu a linda paisagem além de, ao fazê-lo, proteger a integridade da vida marinha.
É com tristeza que vejo a ocupação do litoral de Santa Catarina. BC não é uma exceção. O que fizeram com Garopaba, Bombinhas, até no cabo de Santa Marta, ou Jurerê, que ganhou um inexplicável Internacional como sobrenome, já que na língua dos primeiros habitantes carijós, significa ‘boca de água pequena’, é espantoso. Nestas praias a ostentação deu as mãos à especulação e corrupção.
As consequências da grandiosidade, em Camboriú, não se fizeram esperar.
Falta de insolação e briozoários
Por falta de insolação, de tempos em tempos a praia fica coberta de briozoários, pequenos organismos marinhos que aparecem principalmente no verão e causam tremendo mau cheiro quando expostos ao sol.
PUBLICIDADE
No verão de 2015 o fedor era tão nauseabundo que a companhia de limpeza teve que retirar cerca de 20 caminhões de briozoários todos os dias (ponha na lista o custo de 20 caminhões todos os dias, o custo de pessoal, e mais o tanto de gases de efeito estufa que as viagens provocaram para se ter ideia da sustentabilidade de BC).
Na ocasião, o professor da Univali, Márcio da Silva Tamanaha, sugeriu um motivo para o surgimento dos briozoários:
Isso é uma resposta ambiental ao problema crônico do saneamento básico
Balneário Camboriú, elegia ao concreto no litoral brasileiro
Agora, depois de banalizar a paisagem que os atraiu erguendo uma altíssima muralha de concreto que vai duma ponta a outra da Praia Central, decidiram-se pelo alargamento da faixa de areia que tem apenas 25 metros.
Segundo a imprensa, esta é uma demanda da população desde a década de 1990. A maioria se manifestou favorável (71%) em plebiscito.
Um grupo de empresários locais se cotizou para pagar a obra, estimada em R$ 66 milhões de reais, que ainda contou com empréstimo do Banco do Brasil.
Praia passará para 75 metros
A praia passará para 75 metros. Para comemorar, aconteceu novo festival enaltecendo a grandiosidade da obra e do Balneário.
PUBLICIDADE
A cidade se gaba de ter os ‘prédios mais altos da América Latina’. Eita, complexo de vira-latas!
‘Este aterramento será o maior do Brasil’. Como tudo que acontece em Camboriú, tem que ser o maior…’e deve estar pronto até outubro’.
O feliz prefeito, Fabrício de Oliveira (Podemos), alardeia que ‘trouxemos para Balneário Camboriú a draga mais poderosa do mundo…’
O ufanismo dá as mãos a tudo o que se refere a Camboriú.
‘…a mesma que fez as palmeiras de Dubai e o Canal de Suez…’ (bis).
A obra pode ser acompanhada 24 horas por dia.
E dá-lhe especulação!
Segundo O Estado de S. Paulo, ‘a administração municipal afirma que o anúncio da obra já trouxe valorização para os empreendimentos locais’.
PUBLICIDADE
Dá-lhe, especulação!
Pontos positivos de Balneário Camboriu
Há, no entanto, pontos positivos que não podem deixar de ser mencionados. No País da falta quase total de saneamento e falhas na coleta de lixo, BC é uma exceção: de acordo com o IBGE ‘o esgotamento sanitário é adequado’ (2010), atingindo 88,6% da população. E a coleta de lixo, 100% dos domicílios. Nada mau.
Como está sendo feito o alargamento da Praia Central
De acordo com a imprensa, a areia é coletada em até 40 metros de profundidade, pela draga Galileo Galilei, em uma jazida que fica a 15 km da praia. Uma tubulação submersa faz o trabalho final de fazer a areia sair da draga e chegar até à praia.
E não é pouca areia. A estrutura que trabalha 24 horas já deslocou 120 mil m3 em dois dias. O volume total do projeto é de 2,155 milhões de m3.
Os problemas do alargamento da praia
Nós sabemos que o alargamento de praias é uma das obras mais complexas de serem feitas. Imagine a dificuldade de mexer num espaço que é móvel por natureza, sofrendo ação contínua de forças naturais como ventos, correntes, ondas, marés, e ressacas, e cujo entorno foi brutalmente alterado pelo ser humano.
Em 2002 a primeira tentativa de engorda da praia, severamente criticada
Em 2002 houve uma primeira tentativa de engorda que gerou severas críticas de especialistas a ponto de um estudo ser publicado na revista científica ResearchGate em 2006.
Com o título, Environmental Impacts of the Nourishment of Balneário Camboriú Beach, SC, Brazil (Impactos Ambientais da Alimentação da Praia de Balneário Camboriú, SC, Brasil), e assinado por quatro especialistas: Paulo Ricardo Pezzulo, Charrida Resgalla, José G. N. Abreu, e João Thadeu Menezes, todos da Universidade do Vale do Itajaí.
PUBLICIDADE
Selecionamos alguns trechos:
“De junho a agosto de 2002, o município de Balneário Camboriú desenvolveu um programa de alimentação no setor sul da praia a partir de sedimentos dragados da foz do rio Camboriú.”
“Foram realizadas amostragens ecotoxicológicas, sedimentológicas e biológicas para detectar os impactos ambientais relacionados ao projeto.”
Baixa qualidade química do sedimento usado
“A água intersticial no local da mina, bem como na abertura do oleoduto, apresentou toxicidade crônica, sugerindo uma baixa qualidade química do sedimento usado no programa.”
Sedimentos diferentes não devem ser colocados juntos
“Os sedimentos no local da mina eram 30% de silte / argila e 7,2% de cascalho, enquanto os sedimentos nativos na praia nutrida eram 99,8% de areia (principalmente areia fina) e 0,2% de cascalho.”
“A maior parte do silte e da argila foi transportada para as zonas costeiras-offshore da baía de Balneário Camboriú, modificando sua sedimentação superficial.”
Mortandade expressiva de bivalves
“Mortalidade expressiva e contínua de bivalves suspensos que vivem na praia ocorreram ao longo de 2003.”
“Nenhuma mortalidade semelhante foi registrada nas praias vizinhas.”
PUBLICIDADE
Morte por asfixia
“Suspeita-se que esses eventos devam ser uma resposta à asfixia pelo deslocamento de sedimentos finos e matéria orgânica da zona nutrida para o norte.”
O alerta dos especialistas sobre o que está acontecendo em 2021
“O município está considerando a alimentação de toda a extensão da praia como uma alternativa para contrariar a sua tendência erosiva, bem como para aumentar a área de praia disponível para o aumento da população.”
Exortando que seja bem-feita uma nova tentativa
“Esperamos que protocolos específicos de proteção ambiental sejam considerados antes do início de um novo programa de restauração, a fim de minimizar seus impactos negativos no ecossistema local.”
O que Balneário Camboriú está fazendo em 2021 ‘não merece comemoração’
O Mar Sem Fim conversou com o professor Paulo Horta, coordenador do Laboratório de Ficologia, ciência que estuda algas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vejamos o que ele disse:
Os impactos da obra
Para o professor Paulo Horta “o processo de alargamento tem impactos potenciais, locais, regionais e também globais.”
Mortandade da fauna
“Localmente, seja a mortalidade de fauna por soterramento, no caso dos animais, e das plantas marinhas, por falta de luz, estão as consequências da primeira onda de impactos.”
Contaminação por metais pesados e hidrocarbonetos
“Em escala regional, o processo de dragagem redisponibiliza substâncias químicas diversas, entre elas contaminantes, como metais pesados e hidrocarbonetos que são tóxicas e podem bioacumular na teia trófica.”
PUBLICIDADE
“A presença de nutrientes no sedimento revolvido, estes serão redisponibilizados potencializando a ocorrência de florações.”
“Estes impactos podem ser observados em curto e médio prazo, no contexto da somatória de impactos de uma região costeira já comprometida cronicamente por um escoamento superficial contaminado, principalmente por nossa frota de transporte, saneamento precário e uma agricultura intensiva de arroz, um dos principais focos da região.”
O carbono do fundo do mar
Os oceanos são o maior sumidouro de gases de efeito estufa. Eles sequestram da atmosfera até um terço dos GEF e os depositam no fundo do mar.
Como já explicamos no caso da pesca de arrasto e o custo do carbono, quando você draga o assoalho marinho para retirar sedimentos, você corre o risco de liberar mais gases de efeito estufa nos mares, contribuindo para acelerar o problema da acidificação das águas do mar. O assunto não escapou ao professor Horta.
“Não podemos esquecer que o processo como um todo está emitindo carbono, seja pela ação da draga colossal, seja pela intervenção no sedimento que apresentava quantidade desconhecida, mas não negligenciável, de carbono orgânico.”
E sobre a perda da área de praia?
“A perda da linha de praia precisa ser avaliada no contexto regional. Contribuem para esse processo além da circulação marinha a dinâmica do sedimento. A ocupação da linha da costa, impermeabilização e a perda da vegetação limitam a alimentação da praia com sedimento, areia, que compensa ou retarda o processo erosivo.”
“Quando colocamos no cenário regional, além da intensa urbanização, verificamos que seja por PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas na definição da Aneel) ou por uso de areia para a construção civil, estamos limitando o aporte de areia natural na região costeira. Isto gera um potencial balanço negativo de sedimento.”
PUBLICIDADE
“Devemos reforçar também que a construção de molhes, entre outras intervenções na linha de costa, pode alterar a circulação e promover erosão adicional.”
“Este cenário local se soma ao cenário global de mudanças climáticas, com a elevação gradual do nível do mar e maior frequência e intensidade de ressacas. Tudo isso levou à perda, ou recuo da linha de praia.
Não há motivos para comemorar
O professor Paulo Horta conclui: “Considerando que a dragagem impacta potencialmente e negativamente atividades que vão da pesca à maricultura, podendo impactar até a prática do surf que é importante na região, somando tudo isso aos impactos sobre a biodiversidade local e regional, não vejo que este empreendimento possa ser comemorado.”
Que este alargamento sirva como exemplo
“Ao contrário, que ele seja uma oportunidade de debate profundo sobre as consequências do uso não planejado do nosso território, que pode custar vidas e eventuais mitigações, e muito recurso dos cofres públicos.”
Exortando a que tenhamos mais respeito com os oceanos
“Vivemos a pandemia, uma crise climática e de biodiversidade sem precedentes. Não podemos perder a chance, quem sabe a última, de termos relações de mais respeito e harmonia com os ecossistemas marinhos costeiros.”
“Na década do oceano mais que nunca temos que atentar para nossas interdependências e vulnerabilidades.”
O site Mar Sem Fim assina embaixo.
Imagem de abertura: Prefeitura de Balneário Camboriú/Divulgação
Fontes: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,balnerario-camboriu-realiza-obra-para-aumentar-faixa-de-areia-da-praia,70003824487; https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/08/30/fotos-mostram-antes-e-depois-da-praia-central-de-balneario-camboriu-que-tera-alargamento-da-faixa-de-areia.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/balneario-camboriu-triplica-faixa-de-areia-engolida-por-construcoes-a-beira-mar.shtml.
Estados brasileiros e mudanças do clima: só cinco têm metas de redução de emissões