A repercussão da retomada da análise da PEC das Praias pelo Senado
A PEC sobre os terrenos de marinha é a maior ameaça ao litoral hoje. É pior que o aquecimento global com a subida do nível do mar, e aumento da frequência e intensidade dos eventos extremos. A situação piorou muito em Estados como São Paulo, Ceará, e outros, que passaram o licenciamento para os municípios. Ocorre que o maior interesse dos gestores municipais é o aumento de renda através, entre outros, do IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano. Eles licenciam o que aparecer. O resultado provocou o maior surto de especulação que já vi no litoral extremo oeste do Ceará. Agora, a proposta de emenda à Constituição, ou PEC, está no Senado. Se ela passar, e deve passar porque os maiores interessados são os políticos e empresários dos mais graúdos, não vai sobrar pedra sobre pedra no litoral.
A privatização definitiva da zona costeira
Atenção, depois de um pedido de vista de parlamentares da base governista, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado adiou a votação da proposta de emenda à Constituição. Contudo, ela deve voltar ao centro dos debates na semana que vem, assim, seguimos repercutindo a privatização das praias não Brasil.
O licenciamento ambiental é um “entrave”?
No Brasil, muitos consideram o licenciamento ambiental um “entrave” ao desenvolvimento. Alguns setores econômicos criticam a demora e os custos, especialmente pela lentidão da burocracia. O Mar Sem Fim reconhece que a demora é uma crítica correta. Os custos aumentam em projetos com grande potencial de impacto ambiental, como hidrelétricas, mas permanecem menores em obras de menor porte.
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Modalidade de licenciamento via autodeclaração
Contudo, no Brasil os governantes preferem ‘flexibilizar a Lei Geral de Licenciamento Ambiental’, abrindo as porteiras para projetos de impacto ambiental, em vez de investir na melhoria da eficiência dos licenciamentos e na redução da burocracia. Assim, em 2021, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3729/2004, que simplificou o licenciamento e criou a polêmica modalidade de “autodeclaração”.
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Agora, o Senado avança com um projeto ainda mais preocupante para a preservação do litoral: a PEC que permite a venda de áreas à beira-mar pertencentes à União, ameaçando o que resta de original em nossa zona costeira. Apesar do projeto permitir a venda dos imóveis, as áreas do litoral não podem ser fechadas, todos têm direito a frequentá-las.
Mas, apesar disso, há dezenas de praias ‘privatizadas’ no Brasil. Só em São Paulo temos a praia de São Pedro e São Paulo, e a de Iporanga, no Guarujá. No Rio de Janeiro, há o mais que famoso Condomínio Laranjeiras, e assim por diante.
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Segundo o Estadão, ‘o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que o governo é contra a PEC, que tem sido apontada como uma brecha para privatizar praias. De acordo com o ministro, do jeito que está, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá trabalhar contra a proposta na CCJ’.
Só 5% das multas do Ibama são pagas
Enquanto a discussão avança no Senado, seria de bom tom lembrar que apenas 5% das multas ambientais do Ibama são de fato pagas, o motivo é a imensa lentidão da Justiça.
“De dois anos para poucos minutos”
Numa tentativa de ganhar eficiência o Ibama criou um programa que converte multas em financiamentos de projetos de recuperação ambiental. Em troca, o infrator pode conseguir abatimento de até 60% no valor devido. Segundo a Folha de S. Paulo, ‘para acelerar o processo de conversão “de anos para poucos minutos”, segundo o Ibama, a autarquia publicou um decreto em junho de 2023 que permite a adesão ao programa por meio de um formulário online’.
Mas o jornal mostra que não houve avanço nenhum, apesar da facilidade. ‘De acordo com levantamento feito pela Folha, apenas seis projetos estão em andamento e quatro deles somam R$ 113 milhões —para os outros, ainda não há valores computados. Em relação ao montante de multas acumuladas, de cerca de R$ 30 bilhões, a cifra dos quatro projetos não chega a 0,5% do total’.
Ou seja, aparentemente, a maioria dos empresários não quer aproveitar o tempo menor, muito menos o desconto nas multas, querem a abertura das porteiras.
A repercussão na Academia
Para Alexander Turra, Membro da RECN, professor titular do Instituto Oceanográfico da USP e responsável pela Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano, “Ao invés de buscar uma solução para a questão tributária, essa PEC desconsidera aspectos fundamentais e atuais da dinâmica costeira, tanto do ponto ambiental quanto do social e econômico. Além disso, é uma situação paradoxal, pois essas áreas correm o risco de desaparecer em função dos processos erosivos, uma tendência agravada pela elevação do nível do mar causada pelas mudanças climáticas.”
Ronaldo Christofoletti, membro da RECN, professor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), membro do Grupo Assessor de Comunicação para a Década do Oceano da UNESCO, também se manifestou.
Para Christofoletti, “esta PEC pode representar um retrocesso enorme para o gerenciamento costeiro e para as discussões da mudança do clima, que exigem o reforço de medidas voltadas à conservação da natureza em regiões costeiro-marinhas”.
‘Zona Costeira é considerada Patrimônio da União’
A dra. Yara Schaeffer-Novelli diz que ‘os Terrenos de Marinha, Zona Costeira e margens de rios e lacustres, são reconhecidos de há muito como Áreas de Preservação Permanente – APP, uma vez que as faixas representavam a salvaguarda da Nação em caso da defesa contra tropas invasoras’.
‘A Zona Costeira é Patrimônio da União e recebe a máxima proteção como Área de Preservação Permanente (APP). Manguezais, restingas, praias, planícies de maré e marismas, ecossistemas cruciais para a síntese do Carbono Azul, ganham destaque por fixarem CO2 atmosférico em matéria orgânica, um processo hoje altamente valorizado’.
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Por fim, diz a dra. Yara Schaeffer-Novelli, ‘equivocadamente alguns políticos de plantão, quer da situação ou da oposição, consideram mais pertinente trocar todos os serviços ecossistêmicos providos graciosamente pelos Terrenos de Marinha, de Norte a Sul do Brasil, por um punhado de Reais ou de Dólares. Outra hipótese é a legalização de resorts, de suas casas de veraneio, ao reconhecimento desde os tempos de Brasil Colônia do valor intangível destes, assim denominados Terrenos de Marinha. Elas são Defensores Perpétuos que hoje estão a garantir a subsistência de comunidades costeiras de caiçaras, indígenas, quilombolas, povos tradicionais que convivem há séculos com as águas dos rios e dos mares’.
‘A privatização acarreta incremento de conflitos sociais em toda costa brasileira’
Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), e dos Programas de Pós-Graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA).
‘A privatização da zona costeira envolve uma sequência de vários impactos. Impactos socioambientais já que a dinâmica de evolução dos campos de dunas, da linha da costa, a faixa da praia, os aquíferos, são fundamentais para a manutenção do modo de vida principalmente de indígenas, pescadores, marisqueiras, etc. Eles têm uma relação de ancestralidade com a dinâmica destes processos ao longo desta complexa evolução’.
‘Ao mercantilizar estes territórios, e nestas assimetrias de poder entre as populações nativas e as grandes empresas, ou grandes empreendimentos hoteleiros, empresas transnacionais, vão se instalar nesta dinâmica. Enquanto isso os campos de dunas, a faixa de praia, os aquíferos, agora são regidos pelos eventos climáticos. Nós estamos levantando hipóteses de que as dunas estão migrando com mais intensidade por conta dos aumentos das rajadas de vento’.
‘Agora imagine isso em extremos climáticos. É um perigo para os aquíferos com a impermeabilização do solo, relacionado com a construção de grandes empreendimentos. Quando acontece, a água custa para atingir os mesmos níveis. Já verificamos em municípios costeiros, aquíferos salinizados, especialmente aqueles que dão suporte àquelas populações…’
Meireles ainda alertou para possíveis migrações compulsórias. Para ele o Estado deveria delimitar e proteger estes territórios, e não ocupar, por nenhuma hipótese, a zona que está a mercê das marés diante da subida do nível do mar. Finalizou, reafirmando que ‘a privatização acarreta incremento de conflitos sociais’.