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Vicente de Carvalho, primeiro a dizer não à privatização de praias

Vicente de Carvalho, primeiro a dizer não à privatização de praias

Vicente de Carvalho (1866-1924), advogado, jornalista, político, abolicionista, fazendeiro, deputado, poeta e contista, casou-se com Ermelinda Ferreira de Mesquita com quem teve 16 filhos, 13 dos quais sobreviveram.  Ele era um visionário, um homem muito à frente de seu tempo, republicano e abolicionista. Como Secretário do Interior, no governo de Cerqueira César (1835-1911), autorizou a criação da escola Superior de Agricultura, a ESALQ, bem como a Escola de Engenharia que viria a se tornar a Politécnica, da USP.

Vicente de Carvalho
O Poeta do Mar, o primeiro a se revoltar com a privatização de praias.

Na área de saneamento, quis trazer Pasteur ao Brasil. Esse mandou seu aluno Felix Le Danc. Entre outras, Le Danc criou o serviço sanitário no Estado. Em toda a sua obra o tema preferido eram os ligados ao mar e ao litoral. O que ele faria se estivesse vivo hoje com a ameaça da PEC das Praias?

A especulação imobiliária em ação na década de 1920

Quem pensa que a especulação é fato recente, enganou-se. O flagelo já se manifestava no início do século 20. Em 1921 Vicente de Carvalho já se preocupava com a especulação que ameaça iniciar a construção de prédios na areia, ou muito próximos à ela, na praia da Barra.

Segundo Inácio Loyola Brandão, na pequena biografia, ‘Vicente de Carvalho, poeta, abolicionista, pescador’ (Ed.Imprensa Oficial), um dia em 1921 Carvalho recebeu seu amigo de lutas políticas, Joaquim Montenegro, prefeito de Santos. Pedia ajuda para um grave problema, que acabou tornando-o um dos pioneiros do meio ambiente no Brasil’.

O centro de Santos em 1902. Imagem, Revista Nove.

‘O prefeito estava desesperado. Um grupo estava tentando, por todos os meios, simplesmente abocanhar uma das mais belas praias  da cidade, para nelas levantar arranha-céus, em uma fúria imobiliária que significaria a devastação absoluta da paisagem e da natureza’.

Vicente, o presidente Epitácio Pessoa está vindo a Santos. Ninguém melhor que você para chegar nele, explicar a questão e pedir intervenção. É um crime sem tamanho

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A grande diferença entre 1920 e 2024, é que naquela época os prefeitos sabiam o valor de uma praia livre para a qualidade de vida de seus munícipes. Em 2024, a maioria, não todos, mas a maioria dos prefeitos comanda a especulação.

Carta Aberta ao exmo. Sr. Presidente da República

Mais que depressa o ‘Poeta do Mar’ comprou a briga. Veja como ele estava a frente de seus pares.  Suas armas eram as palavras. Segundo o Memória de Santos, ‘de todos os seus feitos, que não foram poucos, o que mais impactou os santistas foi sua luta pela preservação da faixa de orla praiana, alvo da especulação imobiliária no início da década de 1920’.

‘Na época, grandes palacetes começavam a modificar a paisagem. A maioria construída a mando de influentes comerciantes de café. Os carros também já tomavam conta das velhas ruas e avenidas de areia batida dos bairros da praia. O ambiente se transformava.

Atraídos pelo potencial econômico, um grupo de empresários iniciou uma forte articulação política para “tomar” a faixa de areia. Seus planos eram de tornar a praia “particular”. Tal movimento alertou parte considerável da sociedade santista, em especial Vicente de Carvalho, figura de peso na imprensa paulista e ardoroso defensor de sua terra natal.

Trechos da carta de Vicente de Carvalho

O Memória de Santos revela que Carvalho pediu a transferência dos terrenos da orla (onde estão hoje os jardins), pertencentes à União, para o município. A ideia era que o município pudesse promover um projeto urbanístico que salvaguardasse a orla, onde já existiam trechos “ajardinados”, como descreveu em sua mensagem.

Orla de Santos nos anos 30. Imagem, Revista Nove.

“Interpreto perante V. Excia., Supremo Magistrado da Nação, um sentimento que está apaixonando toda a população santista. Paira sobre ela a ameaça de ser privada da maior das belezas de sua terra – da linda praia da Barra, joia doada pela natureza e que nossa cidade vem, de geração em geração, gostando largamente e conservando com carinho.”

(…)

“Margeada, em toda a sua extensão de seis quilômetros, por uma opulenta avenida em boa parte já ajardinada, e o que está na parte restante, desce para as ondas de uma esplêndida baía por suave declive de mais de cem metros de areia branca e dura que milhares de pessoas e centenas de automóveis percorrem a cada dia.”

“Esse espetacular logradouro público, possuído e usufruído de tempos imemoriais por um imenso público; essa riqueza estética; zelada de geração em geração, com carinho cada vez maior pelas municipalidades santistas – paira no ar a ameaça de serem destruídos. Sob o pretexto de que essa praia é terreno de Marinha, estão particulares tentando apropriar-se dela a título de aforamento.

‘O tradicional logradouro público desapareceria fracionado, mutilado’

“Entrando assim no domínio privado, o tradicional logradouro público desapareceria fracionado, mutilado, despedaçado como por mãos de bárbaros, com proveito pecuniário de alguns indivíduos. E, sacrilegamente coalhada de construções particulares, a linda praia da Barra deixaria de existir, como dádiva mal empregada feita pela natureza a quem não a soube aproveitar.”

Vamos repetir: o tradicional logradouro público desapareceria fracionado, mutilado, despedaçado como por mãos de bárbaros, com proveito pecuniário de alguns indivíduos. E, sacrilegamente coalhada de construções particulares, a linda praia da Barra.

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Este site se sente honrado ao descobrir este protesto. Sabemos agora que antes de nós o maior poeta brasileiro de seu tempo, não só comprou a briga, mas não resistiu e salpicou seu texto com pesados adjetivos como fazemos sempre nos casos de especulação, o maior flagelo do litoral.

(…)

“Os particulares cobiçam aquela joia para a despedaçar e entre si partilharem os fragmentos…”

“O interesse particular, e é ele que se empenha nessa obra sacrílega de destruição, abre lentamente como micróbio ativo e tenaz, caminhos subterrâneos or onde se infiltra mesmo em organismos resistentes.”

(…)

Pouco depois Epitácio Pessoa passou a praia Brava para a prefeitura de Santos.

O Mar Sem Fim conclama os leitores a se manifestarem como fez o Poeta do Mar. A PEC das Praias, uma obsessão dos maus políticos que temos hoje, aqueles que se apoderaram do Estado em benefício próprio, está pronta para ser votada no Senado. Ou conseguimos sensibilizar o poder público, como no passado, ou esta briga está perdida e, com ela, o que sobra do litoral.

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