❯❯ Acessar versão original

Escola de Sagres, hora do mito atravessar o Atlântico

Escola de Sagres, aquela que nunca existiu, sequer ficava em Sagres: hora de desfazer o mito

Este post não tem o objetivo de contestar a história, nem menosprezar mitos que se formaram ao longo dos séculos. A intenção é situar os leitores com ‘as novas leituras de feitos históricos’, desde que as fontes sejam confiáveis. Não há muito tempo, tivemos um encontro com um conhecido que pretendia viajar à Portugal para conhecer a ‘Escola de Sagres’, tida como o maior feito do Infante D. Henrique, “O Navegador.” O encontro nos relembrou que chegara a hora de desfazer o mito da escola, sua localização, Sagres; e do epíteto do Infante que, na verdade, pouco navegou, apesar de ter sido o inspirador e condutor da saga lusitana. Vejamos o que dizem especialistas.

Escola de Sagres: verdadeiro, ou falso?

“É negada a Escola de Sagres. Provavelmente, negada com razão. A Universidade de Coimbra, bem mais antiga, conserva paredes da primeira dinastia. A Batalha, os Jerônimos, a Torre de Belém, sobram para demonstrar que a geração do Infante era de excelentes construtores.”

“Como é que em Sagres se haveria erguido uma escola de tamanho alcance, chegando até nós pequenas ruínas inexpressivas?”

A pergunta é do historiador luso Tomaz Ribeiro Colaço, em capítulo do livro O Século dos Descobrimentos (Ed. Anhambi), um dos melhores já publicados no Brasil sobre a epopeia náutica portuguesa em seus vários aspectos e contexto.

E é ele mesmo quem responde:

PUBLICIDADE

Procuremos na escola de Sagres o parentesco espiritual da expressão “escola” filosófica ou literária; escola de ambição, de entusiasmo, de extralimitação, de sacrifício científico a um ideal.

D. Henrique, o Navegador?

Escola de Sagres:  Jaime Cortesão, maior figura da historiografia lusitana referenda: falso!

No mesmo livro, Jaime Cortesão escreveu o capítulo O Homem e a Obra, sobre o Infante D. Henrique. Destacamos o trecho a seguir:

Supôs-se durante muito tempo que na Vila do Infante, quer situada no Cabo de S. Vicente, quer no de Sagres, houvesse uma escola náutica, no sentido estrito da palavra, com mestres e discípulos, onde estes fossem instruídos nas regras duma nova ciência de navegação. O melhor conhecimento dos fatos desfez essa crença.

Bobagens da rede ajudam permanência de mitos

Como o assunto é incrivelmente pouco abordado pelo ensino brasileiro mesmo nas faculdades, as redes sociais contribuem com a ignorância. É preciso buscar informação em fontes confiáveis, se não…

Bobagens como esta infestam as redes sociais.

Ou esta…

E quanto à localização, Sagres?

Quem desmente é  o próprio Jaime Cortesão. “Morreu o Infante D. Henrique, a 13 de novembro de 1460, na sua Vila do Infante, situada, segundo o maior número de testemunhos, no Cabo de São Vicente, saliência extrema do Sudoeste da Península Ibérica e da Europa.”

“Mas seria a Vila do Infante no Cabo de S. Vicente, tal como hoje entendemos este topônimo? Tem-se discutido muito sobre esse problema, situando-a uns naquele cabo, outros no de Sagres ou nas imediações próximas à nascente. Razões de ordem geográfica e náutica e testemunhos coevos inclinam-nos para que a Vila do Infante fosse no Cabo de S. Vicente.”

PUBLICIDADE

Escola de Sagres ou de São Vicente? D. Henrique esclarece a dúvida

E prossegue o historiador: “Afigura-se também que as fontes mais antigas sobre a localização da Vila se ajustam melhor ao terreno, tal como acabamos de limitá-lo. Na carta de doação da espiritualidade da Vila do Infante à Ordem de Cristo, o Infante D. Henrique esclarece…”

…mandei edificar uma vila no outro cabo que antes do dito cabo de Sagres está, aos que vêm do Poente para Levante, que se chamava Terçanabal, à qual pus nome de Vila do Infante…

Cortesão conclui: “Segundo, pois, o próprio infante, a Vila foi construída num cabo ao ocidente do Cabo de Sagres, assim designado, e esse ao que nos parece, outro não pode ser senão o de S. Vicente. Nele se vêm localizados ao Cabo de S. Vicente as ruínas do palácio do sr. Infante D. Henrique. Ruínas, por consequência, posteriores ao terremoto de 1755.”

D. Henrique, “O Navegador” que pouco navegou

A única viagem marítima de D. Henrique, “O navegador”, foi atravessar o estreito de Gibraltar para a conquista da vila de Alcácer Ceguer (vila ao norte de Marrocos), porto de piratas e pescadores Marroquinos.

Quem relata é Moreira de Campos no capítulo (do livro O Século dos Descobrimentos) Expansão Portuguesa em África. Diz ele  “em 17 de outubro de 1458, largou deste porto o rei D. Afonso V, com seu tio, D. Henrique, levando 26.000 homens de peleja, embarcados em 280 navios de vários tipos. O vento não era propício para atingir Alcácer e toda a armada foi surgir em Tânger”.

A viagem de Tânger

Depois de discutirem sobre o ataque a Tânger, a que se opôs D. Henrique, “a armada dirigiu-se para Alcácer e a vila foi tomada.”

PUBLICIDADE

Tânger à época de D. Henrique.

“Depois da jornada a Tânger, nunca mais ele andou sobre águas do mar. Devem ser horas de entender por que chama o mundo uníssonamente, O Navegador, a um homem que não deserdou a terra firme…”

Colaço prossegue: “Antes dele, os navios portugueses iam até ao Cabo Bojador, fronteira das Canárias; sob sua batuta, foram apenas até ao norte atual da Libéria, descrevendo ao longo da costa um arco de círculo afinal escasso. Não faz sentido que sobre tal base, e com artigo definido a conferir supremacia singular, se chame O Navegador a um homem que nunca navegou.”

Henrique o Descobridor

Colaço conclui: “Em relação ao Infante, o mundo entendeu e sentiu que tinha de dar-lhe nome universal; como era português, deram-lhe o nome menos expressivo, o que traduzia ação direta.

Sempre retratado  em terra firme…

Surgiu esse erro pitoresco de chamar “O Navegador” a um homem que não navegara. O cognome certo seria Henrique, o Descobridor.”

A importância do Infante D. Henrique

Ainda que a escola não tenha existido do ponto de vista físico, ou que ‘o Navegador’ tenha pouco navegado, historiadores  não tiram o mérito do Infante D. Henrique.

Ao contrário, grande parte o aponta como a grande figura que inspirou e comandou as navegações portuguesas. A partir de agora não tratamos de mitos, mas fatos. A declaração abaixo é uma apaixonante defesa de sua obra:

“Pela unidade de concepção e pela admirável segurança com que foi levada a cabo, é a primeira grande conquista do espírito científico aplicado à política e, se se atentar para as suas incomensuráveis consequências, um dos maiores feitos do gênio humano de todos os tempos. Compreendida assim, a História do Brasil traz-nos ao espírito a noção das nossas responsabilidades numa dimensão universal.”

PUBLICIDADE

O autor dessas linhas, Julio de Mesquita Filho, usou-as ao apresentar um suplemento do Estadão, publicado em 1960 em comemoração do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique.

Corriam os áureos anos da imprensa escrita. O Estado saiu na frente: “Foi um feito de tamanhas proporções que demonstraríamos incompreensão da nossa História se não convocássemos os maiores vultos da historiografia luso-brasileira a colaborarem na homenagem que prestamos à memória daquele grande da História.”

O suplemento, de tão bom, tornou-se livro: O Século dos Descobrimentos, (Editora Anhambi), um dos melhores que já li. Entre os autores dos vários capítulos, titãs do porte de Damião Peres, Mário Vasconcelos e Sá, Jaime Cortesão, Sérgio Buarque de Holanda e outros.

Um deles, Tomaz Ribeiro Colaço, assim se referiu ao papel do Infante: “D. Henrique foi o descobridor do Brasil.”

Contestações aos feitos de D. Henrique

Como tudo na vida evolui, a história também o faz. Hoje, muitos historiadores atribuem o grande feito das descobertas não apenas a D. Henrique, mas ao rei D. João II.

Obra recente que aborda o tema das navegações lusas, o livro de Laurentino Gomes, Escravidão (Globo Livros), vol. I, cita dezenas de historiadores  que defendem a tese de que ‘o progresso das navegações lusas era financiado pelo comércio de escravos’. Para estes historiadores, “Henrique seria um bem-sucedido propagandista de si mesmo”.

O verdadeiro artífice das grandes navegações seria D. João II. Particularmente, temos dúvidas sobre esta tese. Mesmo assim, a mencionamos em razão de ter sido exposta por autor de prestígio, como é o caso de Laurentino Gomes.

PUBLICIDADE

Pequeno vídeo

Assista ao vídeo e saiba mais sobre a obra do Infante D. Henrique, o Descobridor. Mas esqueça a escola de Sagres, e uma das teses citadas no vídeo-animação: a ‘descoberta’ do Brasil por Cabral.

A ‘Terra de Santa Cruz’, para a autoridade máxima da historiografia náutica portuguesa, Jaime Cortesão, foi descoberta sem aspas pelo navegador Bartolomeu Dias, em 1498.

No mesmo período, Duarte Pacheco Pereira fez um périplo na parte norte, do Maranhão até a embocadura do rio Amazonas. Ambos navegavam nas caravelas aprimoradas pelos lusos.

A epopeia, segundo Cortesão, é descrita por Duarte Pacheco Pereira, em sua clássica obra Esmeraldo de situ orbis ( Os descobrimentos Portugueses, Vol. III, pg. 721).

A viagem de Cabral não passou da ‘descoberta’ oficial da nova terra que, por questões políticas, não poderia ser reivindicada antes por Portugal.


Fonte: O Século dos Descobrimentos, Ed. Anhambi, dezembro, 1961.

Saiba por que o Brasil foi escala, e estaleiro, na era das grandes navegações

Sair da versão mobile