Empresária se diz dona de 80% da Vila de Jericoacoara
Por incrível que pareça, e é, de repente surgiu uma empresária cearense, Iracema Correia São Tiago, que diz ser proprietária de área equivalente a 80% da vila de Jericoacoara, e ainda partes do Parque Nacional de Jericoacoara. Em julho de 2023, Iracema protocolou a reivindicação no Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) com a escritura das áreas e propôs uma conciliação. Nesta proposta, Iracema cederia ao Estado as áreas que estivessem tituladas a terceiros até dezembro de 2022, o que corresponde a 55,3 hectares ou 62% da área da vila. O restante, 38%, deveria ser excluído da circunscrição e entregue a ela. Os terrenos seriam de duas fazendas, Junco I e II, comprados em 1983 pelo ex-marido, José Maria de Morais Machado. Mas, por que esperar 40 anos para reivindicar?
Procuradoria-Geral do Estado do Ceará
Em agosto de 2023 o caso chegou à Procuradoria-Geral do Estado. Desta vez quem propôs acordo foi a PGE-CE. A sugestão era que todas as terras ocupadas por moradores ou outras construções, cerca de 90%, fossem renunciadas, ou seja, permaneceriam sob a matrícula do Estado. Desse modo ninguém precisaria sair de casa ou de seu empreendimento enquanto o Estado prosseguiria o processo de regularização fundiária da área. Contudo, a defesa de Iracema não aceitou.
Assim, o processo passou a ser responsabilidade da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE). Em seguida, a PGE fez nova proposta quando chegaram a um acordo. Cerca de 90% do que pertencia à empresária ficou com o Estado que deve dar continuidade ao processo de regularização fundiária.
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A famigerada especulação imobiliária
Alguns dizem que a especulação explodiu depois da chegada de europeus, em 2007. Outros dizem que foi antes ainda. O fato é que aconteceu o mesmo que no litoral paulista, por exemplo. Os nativos deixaram a frente da praia e foram para as periferias ou favelas, enquanto os ricos, e o setor hoteleiro, ficaram com seus terrenos com a famosa ‘vista para o mar’.
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Segundo o Diário do Nordeste, de 2018, ‘dependendo da localização, o metro quadrado de um terreno para venda, pode variar entre R$ 1.300 a R$ 12 mil; preços praticados em cidades da Europa, como Paris e Milão, compara a corretora Érica Merly, que morou nesses lugares, e atua há três anos no ramo imobiliário na Vila de Jericoacoara’.
O momento que vive a região e o surgimento do caso Iracema
Este inusitado caso surge no momento em que a especulação imobiliária atinge os vizinhos do Parque Nacional de Jericoacoara, criado em 2007, a praia do Preá, e depois de já ter feito muitos estragos na própria Jericoacoara. Talvez a beleza da região seja o seu maior inimigo. Ela atrai o setor do turismo, empreendedores compram áreas imensas e depois as revendem. Quando o processo começa, dificilmente para, há muito dinheiro envolvido, interesses escusos de prefeitos, etc. Em 2017, foi inaugurado o aeroporto de Jericoacoara, facilitando ainda mais a chegada de turistas.
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A última vez que estive em Jeri, em 2017, constatei in loco o superadensamento, a falta de infraestrutura incluso saneamento básico, a especulação imobiliária, e o imenso lixão a céu aberto. Ou seja, se continuar assim logo teremos outra Pérola do Atlântico ou um imenso Guarujá. No máximo, Jeri se tornará outra Canoa Quebrada.
Nesta última visita entrevistei o secretário de turismo e meio ambiente de Jericoacoara, José Bezerra, que concordou sobre a especulação imobiliária dentro da área ‘protegida’.
De acordo com ele, havia em Jeri 400 empreendedores, sendo que 80 agiam na informalidade. Cento e sessenta imóveis eram hotéis. E ainda havia 80 casas particulares que também recebem turistas. Mas apenas 50% dos imóveis ligados à rede coletora.
ICMBio sabia do caso Iracema desde 2022
Mas, se os moradores nada sabiam, o ICMBio, que cuida de todas as unidades de conservação federais, tomou conhecimento em 2022. Segundo o g1, ‘em agosto de 2022, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) abriu processo administrativo para que o Idace verificasse a matrícula dos terrenos Junco I, Junco II (também reivindicada por Iracema) e de uma outra propriedade (a fazenda Caiçara, que não pertence a Iracema) como possíveis terrenos com sobreposição ao Parque Nacional de Jericoacoara. O Idace confirmou os documentos’.
Com isso, passamos a lidar com um caso duplamente estranho. Depois de 40 anos, surge alguém se dizendo dono de uma vila com cerca de 3 mil moradores. Em seguida, o ICMBio toma ciência do problema mas não avisa, não previne ninguém da vila.
Já comentamos por aqui que este é apenas mais um dos problemas das unidades de conservação federais do País. Muitas delas foram criadas, sempre por decreto, desapropriando as áreas, mas deixando de pagar os antigos donos. Este é o caso de várias UCs federais, entre elas o magnífico Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul.
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O g1 revelou que além do caso de Iracema, ‘no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) tramitam mais duas ações de desapropriação indireta contra a União e o ICMBio propostas por autores que alegam deter a propriedade de áreas no interior do Parque Nacional de Jericoacoara’.
Isso sugere que o caso de Iracema não é o único, portanto, o imbróglio poderia ter começado com a criação do parque, e o não pagamento das indenizações. É algo que vou investigar mais para, depois, informar aos leitores.
Pelo sim, pelo não, os moradores da região pediram em abaixo-assinado que o Ministério Público do Ceará investigue o caso. A ver no que dará.
PGE volta atrás
Atualização:
Depois da furiosa reação da população, com direito a diversos atos públicos, a mídia deu amplo destaque ao assunto. Havia algo muito estranho nessa história, o momento em que aconteceu, coincidindo com um maciço ataque especulativo, a rapidez da concorrência do governador do Estado, Elmano de Freitas (PT), e com toda a mídia acompanhando e repercutindo, nos primeiros dias de novembro a PGE-CE ‘achou’ certas ‘inconsistências’ (demorou!) nos documentos. Então, suspendeu tempo indeterminado o acordo extrajudicial firmado com Iracema.
A ver no que dará.