Viagem do Naufrágio: Emoção pouca é bobagem – 10/4/2012, 23h55.
7/4/2012
Acordo (?!- faz uma semana que não dormimos, apenas “dormitamos” alguns minutos por noite) pouco depois das oito da manhã. Nem bem saí do beliche quando Plínio voltou lá de fora, arrasado, e me abraçou: “ O Marzão naufragou”, disse, “só a proa está de fora”.
Foi um choque terrível. Um golpe. Um direto no queixo.
Nosso último dia na Antártica foi um “tour de force”em termos de emoções.
A primeira foi esta, logo pela manhã.
Não acreditei. A gente sempre tem uma esperança, por piores que sejam as condições.
Desnorteado voltei para a cama. Deitei e me cobri. Em seguida, não sei se por descarga de adrenalina, ou seja o que for, comecei a ter violentas tremedeiras. Daquelas de filmes da África que mostram pessoas sofrendo ataques de malária.
Foram duas horas assim. Sentia um frio horroroso. E tremia de chacoalhar o beliche. Em seguida, a muito custo, me aquietava. Minutos depois voltava a tremedeira.
Não conseguia me concentrar. A cabeça rodava. Um turbilhão de pensamentos invadia meu cérebro sem que eu conseguisse distinguir aquela massa de informações, imagens, sensações muito fortes.
Em seguida voltavam os ataques.
Algum tempo depois Plininho entrou no quarto e tornou a falar comigo: “Coragem, amigo, levanta. Temos que tomar providências. O Comandante quer falar com você”.
“Aproveito pra te contar que o russo (ele se referia ao oficial Ruslan Eliseev, da base Bellinghausen, que participou de nosso resgate no bote) veio aqui te abraçar quando viu o Mar Sem Fim naufragar. Expliquei que você estava num momento íntimo, de reflexão, ele entendeu.”
Não sei como, mas depois disto uma imensa força se apoderou de mim. Levantei, me recompus, e segui ao escritório do Eduardo.
O HMS Protector estava chegando. Pelo rádio o imenso navio inglês chamou os chilenos e avisou que não seria possível suspender o Marzão (eles ainda não sabiam do naufrágio), muito menos conseguiam se aproximar da baía Fildes em razão dos blocos de gelo.
Agradecemos. O navio seguiu seu curso.
Diminuíam as opções.
Uma delas era um avião da força aérea uruguaia que chegaria dia 17/4. Ele traria um grupo de amigos e autoridades daquele país até a base Artigas que também fica em Rei George.
Ao mesmo tempo aguardávamos os uruguaios que viriam almoçar conosco.
Ao meio-dia chegaram trazendo novidades nada boas. A bomba de água da base Artigas (normalmente as bases puxam água doce de lagoas formadas pelo degelo) havia congelado em razão do frio intenso e inesperado.
Os uruguaios tinham água para apenas uma semana, e só para a guarnição formada por meia dúzia pessoas.
Suspenderam a vinda do avião. Naquela condição não seria possível receber mais ninguém.
Caía mais uma chance da gente sair de lá.
Corríamos o risco de passar todo inverno em Rei George. A situação, que já era ruim, ficou preta.
Tínhamos apenas mais uma oportunidade: o navio polar brasileiro Almirante Maximiano, que ainda estava nas redondezas para nos ajudar.
Logo depois novo contato via rádio, desta vez com o Comandante do Max, Pinto Homem.
“Senhor João Lara”, disse ele, “nós não temos condições de resgatá-los, o gelo não permite que nossos botes cheguem até vocês”.
“Alem disso”, prosseguiu, “estamos novamente ameaçados de ficar presos no gelo”.
“Sinto muito pela perda de seu barco, sei bem o que isto representa para um homem do mar, mas insistir pode ser pior”.
Concordei.
Não havia nada a fazer. O Comandante tinha obrigação de seguir para o Drake antes que fosse tarde.
Nos despedimos. O Maximiano partiu.
Caía a derradeira opção.
Voltamos para o local da confraternização bastante apreensivos.
Imaginem ficar quase um ano na base chilena a espera do próximo verão. Seria um desastre!
Mesmo assim nos distraímos com as visitas, o churrasco, a festa de aniversário de um dos marinheiros chilenos.
Enquanto conversávamos o comandante Eduardo voltava ao telefone.
Mais alguns minutos e me chamam de novo.
A companhia de aviação DAP, a mesma a trazer o Plininho com a bucha nova, e que levou de volta meus parentes Mesquita e Moraes Barros (como já contei em matérias anteriores), percebeu que havia uma janela para um vôo. Mas ele tinha que sair de Punta Arenas imediatamente ou o tempo fecharia de novo.
O custo do frete é salgado. Pior seria o isolamento.
Autorizei.
Cinco minutos depois o avião decolou de Punta Arenas, cidade chilena às margens do Estreito de Magalhães.
Em pouco mais de duas horas pousaria em Rei George.
Escrevo este texto às 22h39, do dia 10/4.
Faço uma pausa porque acabo de receber um correio da base chilena em resposta a uma mensagem que mandei esta manhã (10/4).
“Querido Eduardo:
Já estamos em casa, em São Paulo, cercados por familiares.
Mais uma vez, muito obrigado.
Necessito notícias:
Como está o Ary Rongel?
E o Mar Sem Fim, ainda com a proa para fora?
O que posso fazer daqui para ajudar?
Grande abraço, até breve.
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Resposta:
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“Estimado amigo Joao:
Espero que estés muy bien junto a tu familia y ya les hayas dejado a todos mas tranquilos después de la experiencia que vivieron acá.
Te cuento que el yate se hundió completo, solo queda el mástil aflorado y las trazas de diesel están confinadas por el hielo. Aun no puedo acercarme pero apenas lo haga tomare fotos y te las mandare.
En cuanto al Ary Rongel, va navegando hacia Punta Arenas sin problemas, Así que ya estamos mas tranquilos.
Espero que Alonso este mejor de su pie y junto a Manoel, editen muy bien en sus casas.
A Plinio le mando un abrazo muy grande, espero que ambos guarden en un lugar especial nuestro pabellón Nacional. Para que no se olviden de este grupo de Imprescindibles, como dijiste el ultimo día por acá.
En nombre de todos los de Imprescindibles de Bahia Fildes. Les mando un gran abrazo.
Comandante Eduardo
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Enquanto aguardávamos o voo da DAP o Comandante Eduardo entra na sala da festa, pede que abaixem o som, e começa um discurso em nossa homenagem.
Ele fala do sofrimento e emoções pelas quais passamos juntos.
Foi forte. Forte até para aqueles duros marujos, acostumados a lidar com situações difíceis.
Para que não esqueçamos, Eduardo oferece para cada um de nós um diploma marcando nossa presença na Base Fildes, uma garrafa de vinho com rótulo especial, em comemoração à Campanha Antártica 2012…e uma bandeira do Chile.
Foi demais. Fiquei arrepiado. Um frio gelado subiu por minha espinha. Lágrimas brotaram instantaneamente.
Olhei para meus companheiros. Todos choravam. Foi a maior emoção que já senti.
Em retribuição coloquei a bandeira chilena, o “pabellón Nacional”a que ele se refere, no bolso superior esquerdo de meu macacão, “o lado do coração”, expliquei.
E no mais puro portunhol, ou “antártico”, olhei para aqueles homens de pé, em círculo, e recitei:
“Há homens que lutam um dia, e são bons;?há outros que lutam muitos dias, e são muito bons;?há homens que lutam muitos anos, e são melhores;?mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis!”
E concluí: “usteds, personal da base Fildes, son imprescindibles”.
“Muchas gracias por todo.”
Às 18 horas deixamos a base chilena em direção ao aeroporto.
Plininho, o maior caráter que já conheci, pessoa de lide fácil, ao mesmo tempo durão e emotivo, ganha a simpatia de qualquer cristão em segundos.
Com os chilenos não foi diferente.
Felipe, o segundo do Comandante Eduardo, vira-se para mim, aponta o Plínio, e diz: “Que personagem, João, que personagem!”
Quando Plininho sai da base os chilenos se perfilam e cantam Aquerela do Brasil aplaudindo meu amigo.
Fiz força pra não desabar outra vez.
Entramos no carro que nos levaria. Os chilenos se aproximam, abrem a porta e começam a gritar em uníssono:
Brasil: hip, hip, Urra!
Brasil: hip, hip, Urra!
Três vezes em seguida.
Às 18hs 42 do dia 7 de abril, emocionados e atordoados, levantamos vôo em direção à Punta Arenas.
Por hoje fico por aqui.
Tenho ainda milhares de detalhes pra contar. Agora não dá mais. A emoção impede.
Aguardem novos textos em breve.