Mazagão, a fortaleza lusa invicta no Marrocos
Mazagão, a fortaleza invicta, é mais um artigo especial para este site de *José Alfredo Vidigal Pontes
A Jihad
O protagonismo do inexpugnável porto fortificado português de Mazagão começa a partir de mais uma guerra santa com os maometanos. Pois, por volta de 1530, forma-se um sentimento de resistência dos marroquinos às praças-fortes lusas ao longo da costa mediterrânea e atlântica. Com esse propósito, os mulás de Fez, Marrakech e Tarudant se uniram numa “jihad” (guerra santa) contra os portugueses cristãos. Entretanto, com a escalada da “jihad” a coroa portuguesa resolveu abandonar algumas praças menos ativas. Afinal, algumas delas eram muito dispendiosas em relação ao comércio que propiciavam.
Mazagão, a escolhida
Dadas suas excelentes qualidades, decidiu-se concentrar a defesa em Mazagão. Assim se assegurava uma escala alternativa segura no caminho da costa africana meridional, Índia e Brasil.
Ademais, sua estratégica posição em um ponto equidistante entre Tânger e Agadir era complementada com excepcionais condições de defesa. Além disso, se localizava numa região com produção de trigo e criação de cavalos, mercadorias passíveis de comercialização em troca de artigos europeus.
Porto privilegiado
O primeiro reconhecimento das excelentes condições portuárias da baía de Dukala pelos navegantes portugueses foi em 1502. Em 1509 seria erguido um fortim anexo à antiga torre berbere que havia no local, conhecida como “El Brija”.
Meses depois a guarnição inteira, formada por 25 cavaleiros e 100 soldados, teve que ser evacuada dada a pressão hostil dos locais. Por fim, em 1514, após a conquista da cidadela berbere de Azamur nas proximidades, foi efetivamente construída uma fortaleza mais sólida batizada como Mazagão, referência a Mazighan, palavra cujo significado local é “água do céu”. Isto devido às cisternas naturais que retêm água doce das chuvas nas rochas. Essa fortaleza é que será robustecida anos depois, em 1541, já em plena guerra.
“O melhor porto do mundo”
O projeto de alargamento e reforço da fortificação é obra de um notável arquiteto militar italiano da época. Discípulo da escola italiana de fortalezas, Benedetto Da Ravena focava na angulação da artilharia, baseada nos então recentes conhecimentos de balística.
Executada com maestria por experientes engenheiros portugueses, a reforma foi concluída em 1541 e reforçada mais uma vez alguns anos após. Em uma viagem de inspeção das obras a serviço do rei D. João III, o então Duque de Bragança classificou Mazagão como “o melhor porto do mundo”. Em 250 anos jamais sofreu invasão, nem por terra ou pelo mar, resistindo a diversos cercos: 1520, 1526, 1547, 1562 e 1769.
Sólida defesa
Com formato quase retangular, a fortaleza, com cinco bastiões e três faces no mar, protegidas por canais laterais e um porto cercado, tinha muralhas de 11 metros de largura por 14 de altura.
Na face voltada para a terra havia uma ponte levadiça sobre o canal. O porto era ligado ao mar aberto por uma eclusa que permitia a entrada controlada numa área cercada, essa por sua vez com acesso ao interior da fortaleza através de uma outra ponte levadiça.
Na maré alta também era possível a entrada por uma grade levadiça. Localizada a dez/doze dias de viagem marítima a Lisboa a cidadela funcionava eficientemente nos seus propósitos de garantir um porto seguro na escala alternativa estratégica das rotas da África, Índia e Brasil.
A vida em Mazagão
Mazagão abrigava quase 3.000 pessoas em cerca de 700 casas assobradadas. Contando com quatro igrejas e oito capelas, a vida social girava em torno de procissões e festividades religiosas, assim como em outras praças lusas pelo mundo.
Dentro das muralhas conviviam militares, clérigos, funcionários da administração civil, negociantes portugueses e de outras nacionalidades europeias. Boa parte dos moradores e soldados eram açorianos. Os oficiais eram fidalgos jovens que exerciam um serviço militar de treinamento, praticado nas praças fortes portuguesas de maneira geral.
Eram cavaleiros, em número de 200, os quais permaneciam poucos anos na cidadela, a título de aprendizado. Traziam seus próprios cavalos, armas e arreios. Uma grande proeza militar poderia fazer valer uma nomeação como Cavaleiro da Ordem de Cristo, a mais prestigiada comenda em Portugal. A artilharia era composta por 50 soldados, divididos pelos 5 bastiões. E a infantaria era formada por 600 homens, alocados em 6 companhias.
Administração
A administração era chefiada pela autoridade máxima representada pelo Governador, também comandante em chefe das forças armadas.
Abaixo na escala hierárquica administrativa estavam o Intendente, o Conselho de Governo e um Alcaide (prefeito), este assistido por um Conselho dos Moradores. As forças militares estavam divididas em Cavalaria, Artilharia e Infantaria e submetidas diretamente ao Governador.
Nova Jihad
Em 1562 surge uma nova “jihad”: Mulay Abdalah, o sultão de Marrakesh, após 3 anos de preparativos forma um exército de 120 mil homens, sendo 37.000 cavaleiros, apoiados por 24 peças de artilharia.
Cercados a partir de fevereiro, os então 2.600 habitantes de Mazagão pedem auxílio a Lisboa, que por sua vez envia 20.000 armados por via marítima, dentre eles 600 combatentes fidalgos.
Testada em situação extrema, a porta do mar funcionou perfeitamente, garantindo a recepção dos reforços e abastecimento quando chegaram os navios de Lisboa em 24 de março. Afinal, menos de dois meses depois os marroquinos suspendiam o cerco devido ao grande número de baixas que haviam sofrido: 25.000 mortos contra apenas 117 portugueses.
Invicta
Por mais duzentos anos Mazagão resistiu a outras hostilidades de menor gravidade, entremeadas por períodos mais pacíficos. O comércio se dava principalmente na compra de trigo e cavalos e na venda de produtos europeus de diversas procedências como tecidos e utensílios de latão.
Em épocas mais tensas nas relações com os marroquinos organizavam-se patrulhas de cavaleiros para fazer pilhagens em aldeias berberes, além de sequestros de pessoas para serem escravas na fortaleza, ou ainda para serem trocadas por portugueses aprisionados pelos islâmicos.
Decadência
Entretanto, devido a fatores externos, a situação se agravaria em meados do século 18. A “Invicta do Atlântico” passa a sentir a decadência do comércio africano e oriental.
Dificuldades financeiras crescentes do império marítimo português, iniciadas pelos gastos excessivos da coroa no reinado de D. João V, e agravadas pelo terremoto de Lisboa em 1755.
Nesse momento é o ouro do Brasil que mantem a administração real e as obras de reconstrução de Lisboa. Enquanto isso, os pagamentos de soldos para as praças-fortes são fortemente afetados ocasionando atrasos que atingiam até três anos em alguns casos. Na Índia a escassez de soldados era um problema crônico. Em geral eram mal treinados, boa parte degredados recrutados à força, o que provocava um alto número de deserções.
Nova estratégia de Pombal
Com a subida ao poder do Marquês de Pombal em 1756 passa a existir uma estratégia política deliberada de abandonar algumas praças-fortes e investir prioritariamente em melhoramentos e companhias de comércio no Brasil.
Por volta de 1758, ocorreu uma peste e a partir daí a situação interna da fortaleza de Mazagão se agravaria progressivamente. Os soldados chegam a passar fome e frio com problemas no reabastecimento, enfraquecidos e desanimados pelos atrasos dos salários. Neste momento inicia-se uma nova “jihad” oportunista, também liderada pelo sultão de Marrakech, animado pela decadência visível da praça-forte.
O cerco
Em 4 de dezembro de 1768 é montado um cerco com 75.000 soldados e 44 mil sapadores acampados a cerca de uma légua de Mazagão. Diante do novo desafio a atitude da administração pombalina foi a de preparar a evacuação daquele porto “completamente inútil”, que custava a Portugal “quantia extraordinária e inimaginável”.
Portanto, diante dessa nova realidade, foi negociada uma trégua com os marroquinos, na qual ficou acordado que a fortaleza lhes seria entregue assim que todos os habitantes da cidade estivessem embarcados.
A evacuação
Em 3 de fevereiro partia de Lisboa uma frota com três navios de guerra, quatro navios de transporte e sete pequenas embarcações. No dia 8 de março começa a evacuação de todos os habitantes de Mazagão, naquela época perfazendo cerca de 3.000 pessoas.
No dia 11, após uma explosão provocada pelos portugueses que destruiu parte da muralha de Leste, eram embarcados os dois últimos portugueses: o comandante do forte e o chefe da artilharia. Ambos quase ficaram retidos pela baixa da maré.
A transferência para o Brasil
A população de Mazagão apenas inicia, então, uma nova epopeia e provação: a transferência dramática para o Brasil antecedida , entretanto, por longa estadia em Lisboa.
Posteriormente, outra demorada acomodação provisória em Belém do Pará, até que finalmente são instalados em um ponto do litoral do Amapá, na Amazônia. Embora muito tempo após a data planejada pelos administradores pombalinos.
Em poucos anos a Mazagão brasileira quase foi extinta por doenças e a consequente migração de boa parte da população. Muitos dos descendentes dos mazaganenses se mesclaram com a população local do norte do Brasil.
Patrimônio marroquino preservado
Localizada na cidade de El Jadida, a fortaleza de Mazagão está bem preservada, apesar da explosão da muralha de Leste quando da saída dos portugueses no século 18.
No século 19 os franceses finalmente recuperaram a fortaleza. Um dos 5 bastiões não chegou a ser reconstruído, mas as condições atuais estão bem próximas das originais.
Segundo o arqueólogo e historiador marroquino Aboulkacem Chebri, responsável pela pesquisa arqueológica em El Jadida e pela manutenção da fortaleza: “Mazagão oferece o melhor exemplo de uma organização militar e administrativa sabiamente estabelecida e escrupulosamente seguida e a imagem de um sistema defensivo altamente desenvolvido”. A fortaleza está aberta à visitação e é Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Está a uma distância de 100 km ao sul de Casablanca.
*José Alfredo Vidigal Pontes: historiador e jornalista. Graduado em História pela USP é autor de livros sobre a história do Brasil.
Leituras recomendadas:
Boxer, C. R. – O Império Marítimo Português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 2017.
Costa, João Paulo Oliveira e (coord.) – Rodrigues, João Damião – Oliveira, Pedro Aires _ História da Expansão e do Império Português, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2014.
VIDAL, Laurent – Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, Martins, São Paulo, 2008.