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Euclides da Cunha e os caiçaras da ilha Vitória, S. Sebastião

Euclides da Cunha e os caiçaras da ilha Vitória, S. Sebastião

Quando pensamos em Euclides da Cunha a primeira imagem que vem na cabeça é a da Guerra de  Canudos, no sertão da Bahia. Em 1897, cobrindo o conflito para o jornal A Província de São Paulo, atual O Estado de S. Paulo, o jornalista produziu a obra que o tornaria célebre, Os Sertões. O trabalho ainda lhe rendeu a entrada na Academia Brasileira de Letras em 1903. Euclides também foi o criador de pelo menos dois aforismos que ficaram para a história: A Amazônia tornou-se o Inferno Verde, em suas palavras, e O nordestino é, antes de tudo, um forte.

notícia sobre Euclydes da Cunha e Vicente de Carvalho a bordo do Alamiro
A equipe posa em Búzios.

Mas, será que alguém conhece a viagem à ilha de Búzios, em 1902, no litoral norte paulista em companhia de Vicente de Carvalho? Saiba que eles enfrentaram uma furiosa tempestade, magistralmente descrita pelo ‘Poeta do Mar, como também ficou conhecido. O leitor é transportado para bordo do rebocador Alamiro, com direito a sentir frio na barriga. De quebra, o poeta polemiza com políticos defendendo que ‘as praias de Santos não fossem privatizadas’, e caíssem nas mãos da ‘especulação’, e isso em 1921!!

Ao final, há uma saborosa descrição de Euclides da Cunha sobre os caiçaras que moravam na ilha Vitória. Ele conta o cotidiano difícil daqueles ‘segregados do resto do País’, ‘canoeiros eméritos’, que descendem dos que trabalhavam no contrabando de escravos, quando usavam as canoas de voga para levar os negros dos navios para o Sombrio, na Baía de Castelhanos, Ilhabela.

Euclides denunciou o abandono dos caiçaras pelo poder público,‘aqueles lugares, tão próximos do litoral, estão como abandonados sem terem definido os próprios nomes. Isso nos encoraja a continuar a luta por este reconhecimento que até hoje não veio. E ele ainda propõe algumas políticas públicas básicas para eles.

A ilha de Búzios e uma Colônia Penal

Em 1902 o governo de São Paulo planejava construir uma Colônia Penal em uma ilha. Assim, despachou Euclides da Cunha (1866-1909) para visitar as ilhas de Búzios, e Vitória, em São Sebastião. O escritor deveria produzir um relatório com suas impressões.

Euclides da Cunha.

Vicente de Carvalho (1866-1924), advogado, jornalista, político, abolicionista, fazendeiro, deputado, poeta e contista, casou-se com Ermelinda Ferreira de Mesquita, irmã do jornalista Júlio Mesquita, da Província de S. Paulo. Os dois tornaram-se amigos. Entre outras atividades conjuntas, ajudaram escravos escondidos no quilombo do Jabaquara.

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O ‘Poeta do Mar’ era, de maneira idêntica, grande amigo de Euclydes. Assim,  Carvalho embarcou com o autor d’os Sertões no Alamiro, para depois contar a aventura em reportagem para o jornal.

Se a maioria das pessoas conhece Euclides da Cunha (1866-1909), nem todos sabem quem foi Vicente de Carvalho.

Ele era um visionário, um homem muito à frente de seu tempo. Como Secretário do Interior, no governo de José Alves de Cerqueira César (1835-1911), autorizou a criação da escola Superior de Agricultura, a ESALQ, bem como a Escola de Engenharia que viria a se tornar a Politécnica, da USP. Na área de saneamento, revela o wikipedia, quis trazer Pasteur ao Brasil. Esse mandou seu aluno Felix Le Danc que, entre outras, criou o serviço sanitário no Estado.

Vicente de Carvalho: contra a privatização de praias e favorável à sua preservação

Vicente de Carvalho amava o litoral, sobretudo Santos. Certa vez protestou contra o presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) que visitava a cidade. O poeta não queria a privatização das praias, ele estava preocupado com a especulação imobiliária já em 1921, e defendeu sua preservação. Em carta aberta escreveu,

Sob pretexto de que esta praia é terreno de marinha, estão particulares tentando apropriar-se dela a título de aforamento. Entrando assim no domínio do privado, o tradicional logradouro público desapareceria fracionado, mutilado, despedaçado como por mãos de bárbaros […] Deus do Céu! Que ideia essa de alguém que é o Governo Brasileiro, e o Governo de um brasileiro que se chama Epitácio Pessoa, vender pelo prato de lentilhas que a Bíblia consagrou na execração dos homens, uma linda e preciosa joia de família, da nossa família santista, da nossa família paulista, da nossa família brasileira

A viagem no rebocador Alamiro

Agora que você conhece o caráter destes notáveis brasileiros, resta-nos a tempestade.

De acordo com a matéria publicada pelo Estadão em 30 de maio de 1954, o ‘texto de Euclides fora publicado originalmente na Revista da Academia Brasileira de Letras’. ‘Mas’, diz o redator, ‘o texto é quase desconhecido do grande público. Seus biógrafos nem sequer a ela se referem, razão porque a vamos transcrever hoje’.

Vicente de Carvalho, o poeta que se rebelou contra a privatização das praias.

Com a palavra, Vicente de Carvalho:

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‘Tínhamos sido surpreendidos na ilha deserta de Búzios, por um famoso temporal caído à boca da noite. O pequeno Alamiro, um rebocador que lá nos levara e lá nos esperava, passara a noite de fogos acesos, pronto a fugir do seu abrigo estreito, onde a fúria do mar ameaçava a cada instante, esmagá-los nos costões’.

‘Antes de clarear o dia, repetiam-se os apitos do rebocador, chamando-nos. Nós estávamos no alto de um morro acima do nível do mar; e não podíamos, no escuro da noite, que o temporal da chuva em torrentes fazia mais escura, descer a íngrime escarpa e atravessar o áspero costão, que nos separa do mar’.

O pequeno Alamiro meteu violentamente a proa no mar

‘Aos primeiros clarões do feio dia que raiava, descemos’.

‘Conseguimos, encharcados da chuva e dos borrifos das ondas, chegar ao Alamiro. E, largando seu perigoso abrigo numa remansosa enseada que a fúria do oceanos violara e pusera a perder, o pequeno Alamiro meteu violentamente a proa no mar largo e no temporal desfeito, que esbravejava e rugia’.

‘Euclides tinha a incumbência oficial de visitar a ilha da Vitória mais ao largo, que aparecia no horizonte carrancudo, através da chuva que caía, como uma mancha cinzenta e lúgubre’.

O mapa destaca Ilhabela. A primeira ilha, à direita, é Búzios; a outra, Vitória.

‘Mandou aproar para Vitória. Logo ao sair da enseada o pequeno vapor começou os boleios. Tínhamos que segurar-nos aos varões de ferro para não sermos atirados ao mar, varridos pelas ondas que entravam pela proa do Alamiro e iam sair-lhe, espumantes e mugindo, pela popa’.

‘A cada passo, o rebocador subia, vagarosamente, como por uma montanha acima, por uma onda enorme que lhe viera ao encontro; e chegando ao cume, na rapidez da própria marcha e do movimento da vaga em contrário, precipitava-se, como uma flecha, com a proa quase em rumo vertical, ao fundo do mar…’

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‘Euclides, pouco afeito ao oceano, pelo qual sente verdadeiro pavor, conservava-se pálido, com os olhos fitos na mancha longínqua e meio apagada, que designava no horizonte e na imensidão do mar, a ilha Vitória’.

O mestre do barco, um velho lobo do mar

‘O mestre do barco, um velho lobo do mar, que neste se criara como marinheiro da Armada Nacional,  veio a custo, aos trambolhões, agarrando-se por onde podia, dizer a Euclides que a ida à Vitória era um perigo, contra as águas e contra o vento, com aquele mar e aquele tempo’. 

Pesquisei nos sites da Marinha do Brasil atrás de alguma foto do Alamiro, mas tudo que encontrei foi esta sucinta descrição.

“Ninguém sabe, dizia ele, o que vem atrás do temporal…O que já está aqui é grande: mas não se sabe se lá nos pegará mais bravo ainda…”

“A ordem é ir para a Vitória, é preciso que vamos! – respondeu Euclydes, aterrado, com os lábios franzidos, os dentes cerrados’.

O mar cada vez mais colérico, cada vez se encapelava mais

‘O temporal continuava; e tocado nele, o mar cada vez mais colérico, cada vez se encapelava mais, sacudindo e rolando o Alamiro, como uma casca de noz, entrando e saindo por ele ferozmente, levantando sobre montanhas e precipitando-o ao fundo de verdadeiros vales formados entre as ondas…’

‘E o Alamiro, obedecendo às ordens inflexíveis de Euclides, avançava para o largo mar, penetrava cada vez mais, no temporal e no perigo…’

‘Afinal, a situação tornou-se grave. O mestre veio novamente procurar Euclides, e declarou-lhe isto mesmo. Havia risco iminente em continuar aquela rota inflexível’.

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Era urgente aproar para São Sebastião

‘Era urgente aproar para São Sebastião, dando costas ao mar e ao vento, demandar a segurança dum porto abrigado…Se continuássemos, era muito possível que numa daquelas descidas em que o vapor se precipitava entre duas ondas, não conseguisse ressurgir…’

Só diante dessa declaração categórica, Euclides cedeu. Deixou-se vencer. E ainda assim…

‘Se eu morresse, dizia-me ele, tinha uma bela morte, a morte no cumprimento do dever. A sua é que seria estúpida: morrer num passeio’.

‘Creio que foi por essa razão, de ir ali, a passeio, quem escreve estas linhas, que não morremos. Se o que escrever estas linhas também fosse cumprir deveres, adeus nossas encomendas’.

Como se sabe, ele não teve a morte honrosa com que sonhou. Em 1909, aos 43 anos, Euclides da Cunha morreu baleado pelo amante de sua mulher, Dilermando de Assis, depois de invadir armado a casa dele, ‘disposto a matar ou morrer’.

Descrição de Euclides da Cunha sobre os caiçaras da ilha Vitória

Em 18 de abril de 1954, o Estadão publicou o relatório de Euclides na íntegra. A maior parte são informações técnicas, sem interesse. Contudo, há alguns parágrafos em que o autor d’os Sertões descreve os caiçaras, em texto que encheria os olhos de um antropólogo. Por ser totalmente desconhecido, julgamos oportuno publicá-los.

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‘A pequena  população de poucas centenas de almas, que existe na Vitória, se bem que sob a jurisdição da comarca de Vila Bela, está de todo segregada do resto do País’.

Não é muito diferente do que ocorre hoje…

‘Vive sob o patriarcado de um octogenário, Joaquim de Oliveira, que, graças a notável ascendente moral, enfeixando todos os poderes, lhe regula os atos dos que entendem com a organização da família aos que visam a manutenção da ordem e aos que orientam uma atividade resumida em pequenas culturas de cereais e à faina pesada das pescarias no alto do mar’.

Sobre os caiçaras

…são naturalmente homens de compleição robusta, vigorosos e ágeis, afeiçoados aos perigos que afrontam todos os dias, porque, canoeiros eméritos, se distanciam às vezes para sueste até perderem de vista a terra, ou atravessam constantemente o largo braço de mar que os separa de S. Sebastião, principal mercado para onde levam, salgados, os produtos de suas pescarias’.

‘O mar tem sido uma escola de força e de coragem – sendo naturais que a ele devam as únicas tradições locais que de certo modo se prendem a uma fase da nossa história’.

Os navios negreiros e os caiçaras de Vitória e Búzios

‘As ilhas da Vitória e Búzios foram as estações mais avançadas dos vigias que iludiam ou burlavam aquela fiscalização severa (sobre os navios ingleses que vigiavam nosso litoral para impedir o tráfico negreiro). Graças a sinais adrede combinados, de fogueiras acesas ao longo dos costões volvidos para o sul, ou de bandeiras de diversas cores levantadas no mais alto dos morros, os navios negreiros, ao longe, aproavam confiantes para a terra ou amarravam céleres furtando-se aos que os caçavam’.

‘Toda a atividade naqueles pontos se resumia nas aventuras perigosas do contrabando de escravos’.

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‘Dali arrancavam em velozes canoas de voga os auxiliares dos traficantes, indo colher em pleno mar os negros manietados que conduziam para os recessos do Sombrio, ao fundo da baía dos Castelhanos, e para o litoral, de preferência na faixa vincada de pequenas angras que se estira de Mocooca às terras que defrontam o Bairro Alto’.

‘Estas empresas arriscadas, nem sempre coradas de êxito, resultam os únicos episódios da história, de todo destituída de interesse, daquelas ilhas. Eles persistem no mesmo estágio rudimental’.

População da ilha Vitória em 1902

‘Na única realmente povoada, a de Vitória, entre 358 pessoas, somente duas sabem ler e escrever. Um professor que ali esteve, há tempos, pouco se demorou, abandonando-a como quem foge a um degredo inaturável’.

‘Por outro lado nenhum sacerdote houve ainda bastante abnegado para procurar a população esquecida, que é, digamo-lo de passagem, fervorosamente cristã’.

‘Deste modo aqueles lugares, tão próximos do litoral, estão como abandonados sem terem definido os próprios nomes – como se estivessem a desmarcadas distâncias, em pleno Atlântico…’

‘Merecem contudo alguma atenção. Posto que diminutíssima a facção de nossa gente que por ali moureja, numa atividade primitiva, enérgica e penosa, faz jus a melhores destinos. E uma escola – traduziria a mais bela intervenção dos poderes constituídos, no sentido de incorporar a uma Pátria, que não conheçam, aqueles desprotegidos patrícios’.

Finalmente, a Colônia Correcional do Porto das Almas acabou inaugurada em outra ilha próxima, a ilha Anchieta, em 1908, com o prédio principal de autoria de Ramos de Azevedo.

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