Diocese de Sobral envolvida na especulação do litoral oeste do Ceará
Recentemente, voltei de uma viagem ao extremo oeste do litoral cearense. Eu sabia que a especulação imobiliária atuava sem restrições, criando problemas sociais e promovendo uma série de irregularidades e crimes ambientais. Viajei preparado, há muito dedico meu tempo denunciando esse flagelo. No entanto, fiquei chocado e estarrecido com o que presenciei. Jamais imaginei que a especulação pudesse ter tanta força e ímpeto. Depois de prejudicar o litoral leste do Estado, a exploração se intensificou no extremo oeste a partir da chegada da luz elétrica em 2000, com foco nas últimas praias ainda desocupadas. Descobri, inclusive, que a Diocese de Sobral está envolvida nesse escândalo.
Diocese e a especulação em Caiçara, CE
No primeiro artigo publicado, Elmano de Freitas (PT) e a especulação no Ceará, mostrávamos que o movimento especulativo é tão forte que envolveu até mesmo os vilarejos de Castelhano, Carrapateira e a comunidade Quilombola Córregos dos Iús, além da aldeia da Barrinha de Baixo.
Em resumo, os municípios do extremo oeste visitados, Acaraú, Cruz, Jijoca de Jericoacoara, Camocim e Barroquinha, estão de ponta-cabeça. Seus valores centenários, a cultura única dos pescadores artesanais que até pouco tempo viviam esquecidos e tranquilos, estão sob tremenda pressão.
Investimentos milionários feitos por forasteiros na compra de terras nos municípios de Cruz, e Jijoca de Jericoacoara, mudaram o cenário e o estilo de vida da população. Uma das primeiras consequências foi o aumento do custo de vida, seguido pela alta no valor dos terrenos, efeito da lei econômica da oferta e da procura. Assim, hoje o metro quadrado em Jeri ou Preá, pode variar entre R$ 1.300 a R$ 12 mil; preços praticados em cidades da Europa, como Paris e Milão.
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Os crimes ambientais cometidos pelo efeito da especulação
Para além do problema social, sobram crimes ambientais mais que evidentes, e sem qualquer ação, seja das prefeituras, seja via a secretaria de Meio Ambiente do Estado, chefiada por Vilma Freitas.
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Dunas ocupadas, ou niveladas para receber futuras construções, algumas com placas informando ‘área particular’, ‘proibida a entrada’. Mangues e restingas foram extirpados. Corpos d’água foram aterrados, enquanto outros tiveram seus cursos alterados e margens ocupadas. Contudo, todas são Áreas de Proteção Permanente, segundo a legislação ambiental. São APPs, cuja ocupação é proibida, além de serem áreas públicas em poder da União.
O Governo do Estado sabe o que acontece, mas se omite, finge que não vê. E sempre que isto acontece há uma reação direta, o crime organizado se instala, ocupando o lugar do Estado. Assim, hoje quem manda na região é o Comando Vermelho. Algumas placas nas estradas expõem pichações como ‘Respeite o C.V’, ou ‘O C.V. chegou’.
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Município de Ubatuba acusado pelo MP-SP por omissãoVerticalização em Ilha Comprida sofre revés do MP-SPBaía da Traição, PB, nova vítima da erosão costeiraAlém disso, ao conversar com os nativos, um detalhe incômodo surgiu em TODAS AS ENTREVISTAS, o medo, verdadeiro terror que os entrevistados sentem ao conversarmos sobre a especulação, e os maiores interessados, ou seja, políticos e poderosos investidores. Muitos disseram já ter recebido ameaças de morte. O clima é pesado.
Distrito de Caiçara, município de Cruz
Em 12 de novembro conversei com o advogado Carlos Alberto Câmara que defende a família Silveira, moradora de Caiçara, distrito de Cruz, CE. Carlos contou que ‘Caiçara está ligada diretamente ao Preá. Tudo que acontece no Preá afeta Caiçara, e a raiz do problema é a especulação imobiliária’.
Preá e Caiçara são dois distritos que fazem parte de Cruz cujo prefeito, Jonas Muniz, é o político mais rico do Ceará e, segundo minhas fontes, um dos maiores proprietários de terras na região.
Jonas Muniz, prefeito de Cruz
O prefeito de Cruz é o milionário Jonas Muniz (PSDB), o político mais rico do Ceará. Muniz é um dos maiores proprietários de terras na região onde acontece o ‘grosso’ da especulação. Em 2020 sua declaração de bens revelou um patrimônio total de R$ 75.886.371,22, quase 76 milhões de reais.
Segundo o portal UOL, em matéria sobre as eleições 2024, deste total, Muniz declarou guardar em casa R$ 17 milhões em espécie na data de 31 de dezembro de 2019. Em 2016, diz o UOL, o mesmo candidato declarou ter R$ 40,3 milhões em patrimônio. Desde que o município foi emancipado, em 1985, Muniz já foi prefeito seis vezes.
Outra reportagem, de Mariana Franco Ramos revela que ‘em 2004, o prefeito não declarou bens. Depois, em 2008, ano em que se elegeu, apareceu com R$ 17,5 milhões. O crescimento desde então foi de 333%. O montante atual é 304 vezes superior ao Produto Interno Bruto (PIB) do município, que conforme o IBGE correspondia a R$ 124,4 mil na última atualização, em 2017’.
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Entre os bens de Muniz estão 33 terrenos na Amazônia Legal, avaliados em R$ 20 milhões. As terras, segundo Mariana Franco Ramos, que ‘somam mais de 30 mil hectares ficam todas em municípios maranhenses do Arco do Desmatamento, como Buriticupu, Açailândia, Bom Jesus das Selvas, Bom Jardim e Santa Luzia’.
Outra matéria, da Revista Poder On Line (2020) informa que mesmo com este patrimônio, Muniz ‘prefere não pagar as multas do Ibama, que já totalizam R$ 1,5 milhão. São cinco infrações contra a flora com embargos de 375 hectares em áreas de sua propriedade’.
Você já viu algo parecido? Guardar debaixo da cama nada menos que 17 milhões de reais!? Nós entramos em contato e deixamos recado no celular da prefeitura pedindo uma entrevista mas não obtivemos resposta.
A denuncia sobre a participação da Diocese
Com a palavra, o advogado Carlos Alberto Câmara: ‘Com os investimentos grandes que chegaram àquela região, muitos falam que vem aí Luciano Huck, e todo este pessoal envolvido em grandes empreendimentos, Carnaúbas, e outros, afetaram toda a região’.
‘A área de meus clientes, a família Silveira, tem um histórico peculiar. A comunidade de Caiçara historicamente é uma comunidade religiosa. Antigamente o pessoal se reunia para festividades religiosas, o dia de padroeiros, etc. A comunidade tinha a pretensão de que ali permanecesse um padre permanentemente’.
Diocese de Sobral pede doação de terrenos aos moradores de Caiçara
‘Por outro lado, consta que a Diocese de Sobral respondia que não tinha como mantê-lo, porém, se a comunidade doasse terras, de modo que a Diocese de Sobral pudesse gerar alguma renda para manter um padre permanente, eles topariam’.
Carlos Alberto explicou que esta ‘barganha’ (aspas do redator) aconteceu há 40, 50 anos, portanto, em algum momento entre as décadas de 1970 e 1980.
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‘Então, a comunidade fez a doação de várias glebas de terra para a Diocese. Sabe-se da existência de vários processos judiciais que discutem este tema das posses com a DIOCESE DE SOBRAL‘.
No link abaixo, de acesso público, em um dos sistemas de tramitação de processos eletrônicos do TJCE, você poderá verificar a quantidade de processos que envolvem a Diocese de Sobral nas mais variadas temáticas (clique aqui – atenção ao aparecer a tela preencha o campo “Nome da Parte” colocando ‘Diocese de Sobral’, então você verá a quantidade de processos que envolvem a entidade).
Preencha o campo ‘Nome da Parte’
‘Acontece’, diz, ‘que a Diocese não cumpriu a parte dela e só enviou um padre cerca de 10 anos depois, mais ou menos. Esta é a origem das terras matriculadas no cartório de Cruz, matrícula número 26, em nome da Diocese’.
‘E qual a política praticada até dois anos atrás? As famílias doaram as terras que foram registradas no cartório, mas a posse ficava com as famílias. Quando alguém encontrava um comprador para um lote, eles faziam um contrato de compra e venda entre os dois, e a Diocese se encarregava de fazer a escritura em troca de 20% do valor da venda. Muitas vezes o próprio pároco de Caiçara era o intermediário. Ele procurava o proprietário dizendo ter achado o comprador, etc, e seguia até o negócio ser fechado’.
‘Há dezenas de negócios como estes feitos no últimos 10 anos, dezenas. Uma vez fechada a compra, eles davam certidão de transferência de domínio direto e indireto. Com este documento, a pessoa ia ao cartório de Cruz onde assinava a escritura transferindo a propriedade. Isso acontecia há anos até que, dois anos atrás, a Diocese transferiu a gestão do patrimônio para o escritório de advocacia, Angelim Advocacia Especializada‘ .
Como funcionava o negócio
‘Depois disso’, continua Carlos Alberto, ‘quando os proprietários procuravam o setor de patrimônio da Diocese, eles os encaminhavam para este escritório. Em outras palavras, cresceu o olho depois que houve a valorização das terras’.
O que se diz, à boca pequena, é que a partir da valorização a Angelim Advocacia Especializada ficava com 100% do valor.
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Para regularizar os terrenos é preciso pagar a Diocese de Sobral
‘Por exemplo, o meu cliente cuja família está na posse direta destas terras desde 1974, plantando em sua gleba que fora cercada com arame, agora, se quiserem regularizar, terão que pagar para a Diocese o preço que eles estão cobrando, um valor acima do mercado. No caso deste cliente específico, eles cobraram algo em torno de R$ 16 milhões de reais, considerando as faixas de valores do m2 divulgados pela Diocese. já que área fica na beira do asfalto, e eles consideram como tendo muito valor. Isso mudou nos últimos dois anos, exatamente por conta desta especulação exagerada’.
Carlos Alberto reitera que o que aconteceu à família Silveira se repetiu: ‘dezenas e dezenas de pessoas, têm empreendimentos turísticos dentro destas áreas, são vários processos envolvendo a Diocese de Sobral’.
‘Aliás’, diz, ‘estas matrículas (as provenientes das doações de terrenos) deveriam ser investigadas por profissionais habilitados quanto à dimensão, porque foram feitos vários acréscimos de áreas. O pároco simplesmente ia aos terrenos e os media no olho. Portanto, de toda a área em litígio, mais de 100 hectares podem ter sido acrescidos. Estes documentos, principalmente no Nordeste, não tinham georreferenciamento. Para fazer uma divisa, diziam que o terreno ‘ia até o de fulano’, do outro lado, ‘até o travessão das pedrinhas’ como se diz aqui, ou seja, as matrículas não são precisas’.
Violência: derrubada de cercas e destruição de pequenas lavouras
‘A Diocese contratou um estudo que mediu as áreas desta forma, em outras palavras, a área cresceu. No inicio de 2024 esse pessoal da Angelim Advocacia Especializada, contratado pela Diocese, começou a derrubar as cercas de terrenos que estavam lá há 50 anos. Eles utilizavam pessoas contratadas para este trabalho sujo, e destruíram plantações de milho e feijão. Tudo isto está registrado nos processos que já começaram’.
‘Houve uma situação em março deste ano quando minha cliente foi reclamar, num sábado, porque a área estava sendo destruída. Então, eles chamaram a Polícia Militar que a levou detida para a delegacia, uma senhora, uma professora que passou horas e horas detida’.
Para Carlos Alberto, ‘a Diocese ainda tem este resquício de poder, então, quando chamavam a polícia se dizendo donos das terras, era isso que acontecia. Minha cliente ficou umas 10 horas detida’.
‘Houve uma reunião importante na comunidade com gente do município, órgãos estaduais e federais, para tentar discutir, mas foi nas vésperas das eleições, e com aquele ambiente político não sei até onde isto vai se desenvolver’.
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‘Caiçara é uma comunidade que tem muita aflição com esta postura da Diocese que se arvora a proprietária… mas tudo aconteceu depois da valorização do metro quadrado naquela região, ou seja, a especulação imobiliária. Enquanto não tinha valor, eles nunca foram atrás, cobravam o percentual em caso de venda, e só’.
Participantes da reunião citada por Carlos Alberto
Participaram da reunião Moisés Braz, Secretário de Desenvolvimento Agrário; Josynes, Procuradora Municipal de Cruz; Paulo Henrique Magalhães Lobo, Diretor Técnico e de Operações; Ricardo Durval Lima, Coord. de Regularização Fundiária Urbana/ Secretaria das Cidades; Erivando Santos, Superintendente do INCRA; João Edson de Farias, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais; Francisco Costa Moura, Pres. da Associação Comercial dos Moradores de Caiçara; e finalmente, Erika Queiroz, Diretora da Escola de E.F. João Ladislao Magalhães.
São Tomé e o ver para crer
Se eu não tivesse ouvido e gravado, não acreditaria. Como crer que uma unidade territorial da Igreja Católica, que se caracteriza por ser local de comunhão, culto e caridade, iria se aproveitar de uma alta de preços oriunda da especulação imobiliária para trapacear; tapear, via terceiros, os moradores de Caiçaras que doaram terrenos em troca de um pároco?
Esta trapaça não agride apenas o bom senso, a ética, e a moralidade. Houve intimidação, destruição de plantações, cercas derrubadas, etc. Jamais vi algo assim em tão extensa região. Lembra o rastro de um furacão devastador.
A palavra da Diocese de Sobral
Desde 7 de novembro entrei em contato com a Diocese, via o e-mail “patrimoniodiocesedesobral@yahoo.comcom.br” e com o escritório Angelim Advocacia Especializada, cujo celular (88 99706 6465) foi informado pelo advogado Carlos Alberto Câmara, autor da denuncia que gerou este post.
Enviei o texto para ambos. A Angelim, depois de longa troca de conversas via WhatsApp, pediu prazo para responder. Concordei, e assim combinamos que a matéria seria publicada no Portal Estadão, e nas redes sociais, a partir de 21 de novembro. Contudo, até o momento em que enviei este texto ao Portal, 21hs de 20 de novembro, nenhuma mensagem foi enviada.
Recado aos leitores do Mar Sem Fim
Aproveito para lembrar aos leitores que este é apenas o segundo artigo da série sobre a especulação no Ceará. Semana que vem publicaremos o terceiro.
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