Contrair COVID-19 pela água do mar, é possível?
Hoje uma breve conversa com uma amiga no whats revelou uma dúvida pertinente: Contrair COVID-19 pela água do mar, é possível?
Nesse momento, lembrei que havia lido em algum lugar que o novo vírus foi encontrado na água dos estuários de alguns países, em amostras coletadas antes do surgimento de casos em tais locais. Artigo dos pesquisadores Bruno Gurgatz, Estela Pires; e Camila Domit, docente do PPGSisco, da Universidade Federal do Paraná.
O caso das amostras contaminadas coletadas antes da pandemia
Virou notícia nos grandes veículos de mídia que pesquisadores encontraram fragmentos genéticos de SARS-CoV-2 em amostras de esgoto coletadas antes da pandemia, como identificado em Barcelona, na Espanha, e em Santa Catarina, no Brasil.
Os resultados foram divulgados no sistema medRxiv, que funciona como um lugar onde pesquisadores expõem seus trabalhos para discussão, antes de a publicação ser submetida para avaliação dos revisores das revistas científicas.
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No caso de Barcelona, o vírus foi encontrado em amostras de 15 de janeiro de 2020, 41 dias antes do surgimento do primeiro caso no país1, enquanto em Florianópolis, material genético do vírus foi identificado a partir de 27 de novembro de 2019, sendo os primeiros casos identificados somente em 12 de março.
As hipóteses mais robustas para esse fenômeno são aquelas relacionadas ao vírus ter se espalhado antes de ser identificado, sendo confundido com outras doenças ou gerando casos assintomáticos.
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De qualquer forma, os artigos que trazem estas hipóteses não foram publicados em periódicos científicos e nem avaliados por revisores. Por isso merecem cuidado na interpretação antes de terem seus resultados aceitos pela comunidade científica e civil.
Em geral, em casos como este, a ciência mantém o tema no radar, mas aguarda as publicações e novos elementos que suportam a ideia.
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Baseado no que lembrei das pesquisas citadas, dei minha opinião:
– Eu acho possível, mas improvável… Porque alguns estudos até conseguiram encontrar traços genéticos do vírus na água. Mas não é necessariamente o vírus vivo. Ele provavelmente não suportaria bem as condições salinas.
O dia se passou, e inconformado com a incerteza em minha resposta, resolvi fazer jus à minha bolsa de pesquisa (Obrigado CAPES!), e buscar o que a comunidade científica construiu em estudos até o momento.
Quais as vias de contaminação?
O vírus que causa a COVID-19, SARS-CoV-2, tem como principal via de transmissão as pequenas gotículas que emitimos ao falar, respirar, tossir ou espirrar. Apesar de não sabermos se a contaminação por via fecal-oral pode acontecer, já se sabe que é possível encontrar fragmentos genéticos do vírus nas fezes de pacientes infectados.
Estudo chinês
Um estudo chinês identificou RNA de SARS-CoV-2 nas fezes de um paciente até 33 dias depois de seus testes respiratórios acusarem negativo para o vírus, e quatro pacientes testaram positivo até 47 dias após o primeiro sintoma se manifestar.
Nesse sentido, a transmissão fecal-oral pode ocorrer pelo que os cientistas chamam de cinco caminhos “Fs” (F do inglês para Campo (Field), Fluidos (Fluids), Moscas (Flies), Dedos (Fingers) e Objetos/Roupas (Fomites)).
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Todos eles, em contato com os alimentos que consumimos, poderiam carregar os vírus para nosso organismo, apesar do conhecimento sobre estas vias ainda ser muito limitado.
Uma via adicional seria o surgimento de aerossol a partir do processo de tratamento de esgoto realizado de maneira inadequada. Este processo foi um dos disseminadores de SARS-CoV-1 em Hong Kong, no ano de 2003.
Caso queira saber, temos mais sobre aerossóis e SARS-CoV-2.
Nenhuma evidência de transmissão de SARS-CoV-2 pelos cinco caminhos
Apesar disso, até o momento não foi identificada nenhuma evidência de transmissão de SARS-CoV-2 pelos tais cinco caminhos. A principal hipótese para isto é de que a maioria dos coronavírus (família de vírus em que pertence SARS-CoV-2) que contaminam a espécie humana são facilmente inativados na água, principalmente ao se utilizar o processo comum de filtragem, bem como a adição de cloro, com reduções de aproximadamente 99% em dois a 23 dias.
O grande problema surge devido ao fato de que diversos países não apresentam condições suficientes de tratamento da água de abastecimento.
Por exemplo, o Paquistão não tem nenhuma estação de tratamento de água operacional. Sua rede é baseada em lagos de estabilização. No Brasil, 83,62% da população é abastecida com água tratada. No entanto apenas 53% têm acesso à coleta de esgoto, sendo estes percentuais bastante diferentes entre as regiões do país.
Mas e a água do mar?
Em maio de 2020, um grupo de especialistas do Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha (CISIC), emitiu um relatório baseado nas pesquisas recentes sobre o assunto.
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E afirmou que, apesar de não ser possível ainda dizer se a virulência do coronavírus se mantém em água salgada, o cloreto de sódio (NaCl, o sal marinho) se mostrou um biocida eficaz contra SARS-CoV-2, e o efeito de diluição também jogaria contra o vírus nesse ambiente.
Neste sentido, rios e lagos de água doce seriam menos recomendados. A adição de produtos comuns de limpeza de piscinas também seriam suficientes para a eliminação do agente patogênico.
Uma curiosidade
Um grupo de cientistas sugeriu que o cloreto de sódio, ou seja o sal, seja utilizado como medida profilática (preventiva à infecção). A substância já se mostrou eficaz na inibição da replicação de uma série de outros vírus.
E é uma alternativa barata e viável em todo o mundo. Mas cuidado, a ação em análise é para evitar contágio em ambientes externos, e sua funcionalidade para combate à contaminação por COVID-19 ainda não foi comprovada.
Riscos de contágio pela água: improváveis
Enfim, apesar de os riscos de contágio pela água serem improváveis, temos que lembrar que praias e piscinas são locais onde comumente ocorrem aglomerações, atitude que representa o maior risco de contaminação por SARS-CoV-2.
O uso destes ambientes e as aglomerações já evidenciadas nos últimos feriados podem agravar o número de contaminados. A maior preocupação está com as férias de final de ano e o início da temporada dede veraneio.
Como pesquisador e ambientalista que sou, recorro sempre ao princípio da precaução. E recomendo não se expor a esse risco, ainda mais considerando que muitas cidades praianas não têm condições para amparar o atendimento de saúde de seus moradores e comunidades tradicionais.
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Proteção individual e coletiva são importantes!
Agora sim, satisfeito com a busca de informações, posso dormir aliviado. Fake news, aqui não.
Os autores
Bruno Gurgatz: Gestor Ambiental, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sistemas Costeiros e Oceânicos da UFPR. Investiga a poluição atmosférica e oceânica, se aventurando também pela divulgação científica e educação ambiental.
Estela Pires: Oceanógrafa e mestranda em Sistemas Costeiros e Oceânicos na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estuda os efeitos tóxicos de poluentes, no Laboratório de Bentos – Centro de Estudos do Mar/UFPR.
Camila Domit: Bióloga pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutora pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desde 2008 é bióloga e pesquisadora da UFPR, onde é responsável pelo Laboratório de Ecologia e Conservação. Atua em projetos de avaliação e monitoramento da biodiversidade marinha e efeitos de impactos antrópicos. Participa de diferentes fóruns e redes referentes a ações para planejamento para a conservação e governança dos oceanos.
Imagem de abertura: Estadão Twitter