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Colônia do Sacramento, ousadia no rio da Prata

Colônia do Sacramento, um gesto ousado no rio da Prata

Colônia do Sacramento, gesto ousado no rio da Prata; artigo especial para este site de *José Alfredo Vidigal Pontes

PANORÂMICA DE COLÔNIA NO SÉCULO 18 ARTE FEITA A PARTIR DE UMA OBRA ORIGINAL DE LÉONIE MATHIS
Panorâmica de Colônia no séc 18, arte a partir de obra de Léonine Mathis. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Uma ilustre desconhecida

Colônia do Sacramento foi uma importante praça comercial portuguesa durante quase um século (1680-1777), numa privilegiada posição no estuário do rio da Prata, bem defronte a Buenos Aires. No entanto, continua sendo um tema pouco estudado da presença portuguesa na América do Sul, apesar mesmo do papel fundamental que desempenhou no processo histórico do Brasil, Argentina e Uruguai.

Colônia do Sacramento, casario português. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Nos livros didáticos de História do Brasil e Portugal é mínima a referência a Colônia do Sacramento. Quando muito é lembrada como moeda de troca no Tratado de Madri, que tratava da delimitação de fronteiras no Prata, assinado por espanhóis e portugueses.

Grande importância regional

Porém, sua relevância para a integração do sul com o sudeste brasileiro ao longo do século 18 é ignorada, bem como o papel desempenhado no processo de conformação geopolítica sul-americana. Ademais, a presença luso-brasileira no Prata foi um fator importante na formação de um sentimento regional de solidariedade entre os hispânicos, que resultará posteriormente nas identidades nacionais da Argentina e do Uruguai.

Um gesto ousado em direção à prata

Colônia do Sacramento foi sem dúvida um gesto ousado na disputa territorial entre os países ibéricos. O Império português como um todo estava em crise.  As rendas da Ásia e da África declinavam e no Brasil recebia-se menos pela exportação do açúcar e do tabaco, devido à crescente produção do Caribe.

Entrada do forte. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Portanto, uma grave crise monetária que já durava décadas poderia ser aliviada pelo acesso a pagamentos em prata. Se Portugal teve que amargar três invasões e duas destruições da praça ao longo de quase um século (1680-1777), de outro usufruiu por largo tempo do acesso aos couros do Pampa e da desejada prata de Potosi. E naquela época o consumo de couros na Europa era enorme.

Uma convivência intensa e truncada

Em menos de um século, Colônia seria conquistada três vezes por tropas reunidas em Buenos Aires e destruída por duas vezes (1680 e 1705). Em 1680, a chamada banda oriental do rio Uruguai, afluente do Prata, era uma fronteira ainda indefinida entre as potências marítimas ibéricas na região. No entanto, apesar desses confrontos, na maior parte do tempo existiu um comércio intenso. Afinal, as turbulências e interrupções dramáticas nas transações eram ressonâncias ocasionais de hostilidades entre os reinos ibéricos na Europa. Assim, permitidas ou não, as trocas entre Buenos Aires e Colônia do Sacramento foram praticadas durante mais de 80 anos. Portanto, esse intercâmbio, um contrabando aos olhos das metrópoles, teve repercussões vantajosas para os dois lados ao se atenderem necessidades recíprocas.

O comércio no Prata

Escravos africanos chegavam em grande número, ou do Rio, ou direto de Angola, mesmo durante a vigência do “asiento” de contratantes ingleses em Buenos Aires, de 1715 a 1748.  Afinal, as compras de cativos dos ingleses eram controladas e taxadas em Buenos Aires, enquanto em Colônia não havia limite e os preços eram mais baixos.

Ruínas de um armazém no porto. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Do Brasil chegava o açúcar, aguardente e o tabaco. De Portugal vinham sal, sardinhas em conserva, cravo, pimenta, azeite, vinho e amêndoas. Além de ferragens e utilidades domésticas europeias e tecidos ingleses, flamengos e indianos. Enquanto para o Rio eram levados couros. farinha de trigo de Tucumán, carnes salgadas, sebo de Córdoba, mate do Paraguai. Outrossim, grandes quantidades de couro dirigiam-se diretamente a Lisboa, bem como a cobiçada prata de Potosí. Era um movimento intenso. Em 1729, um viajante italiano em Colônia registrou a presença de 20 navios ancorados, de procedências portuguesa, inglesa e francesa.

Fortunas no Rio, Lisboa e Buenos Aires

Assim, dada a prosperidade do comércio lá sediado, Colônia do Sacramento proporcionou a formação de algumas fortunas no Rio de Janeiro e engordou os ganhos de destacados comerciantes lisboetas e outros portenhos. Atuavam em Colônia representantes de grandes comerciantes lisboetas na época como Francisco Pinheiro, Manuel Velho da Costa e Feliciano Velho Oldenberg. Todos os grandes comerciantes de Colônia mantinham boas relações em Buenos Aires.

Os irmãos Manuel Botelho de Lacerda e Pedro Lobo de Botelho

Dentre estes destacavam-se os irmãos Manuel Botelho de Lacerda e Pedro Lobo de Botelho. Manuel tinha uma filha, Rita, casada com um agente comercial inglês, John Burrish, residente em Colônia. Outros grandes comerciantes com representantes em Buenos Aires eram José da Costa Pereira, Manuel Pereira do Lago, Domingos de Oliveira Fernandes, José Ferreira de Brito e o Capitão Cristóvão Pereira de Abreu, este um destacado fidalgo português, arrematante da alfândega em Colônia.

Calçamento lusitano. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Havia alguns residentes em Buenos Aires como José Luís Salgado, Manuel de Oliveira Braga e o cristão-novo Joseph de Vienne. Outros eram negociantes portenhos sediados em Buenos Aires, parceiros de lusos, como era o caso de D. Felipe de Menna, associado a Cristóvão Pereira de Abreu.

Integração brasileira

A ligação terrestre entre Colônia e Laguna inicialmente, e depois com Rio Grande, Curitiba, Sorocaba e São Paulo permitiu posteriormente aos tropeiros paulistas levarem gado, muares e cavalos para as recém-descobertas minas de ouro em Minas Gerais. A corrida do ouro havia levado milhares de pessoas para as lavras, gerando graves problemas de abastecimento.

Assim, eram extremamente convenientes esses animais do Sul que haviam retornado à vida selvagem. A oferta de grandes pastagens e manchas de terra com sal favoreciam a enorme procriação nos extensos campos planos conhecidos como La Pampa.

Alcance geopolítico

Como decorrência, a integração territorial do Sul à economia do Sudeste é o grande saldo geopolítico positivo alcançado pelos luso-brasileiros com a existência de Colônia por quase um século. Além do importante papel exercido no tabuleiro diplomático das negociações sobre a ocupação do extremo sul do Brasil e na definição da fronteira. Assim, Colônia forjou as diretrizes estabelecidas por Alexandre de Gusmão que embasariam as negociações do Tratado de Madri em 1750. Tão cobiçada por argentinos e brasileiros, a banda oriental, após muitas turbulências e uma decisiva interferência inglesa, conseguiu sua independência em 1828, constituindo a República Oriental del Uruguay. De outro lado, o Brasil já havia incorporado o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, territórios antes pleiteados pelos hispânicos.

O protagonismo de Buenos Aires

Assim exposto, a existência de Colônia contribuiu decisivamente para a formação de uma identidade local aos portenhos de Buenos Aires e aos moradores de Córdoba, Tucuman e Santa Fé, a qual seria o embrião de um sentimento regional argentino. A presença portuguesa tão próxima a Buenos Aires fez aumentar sua importância relativa no império espanhol, como centro das operações militares. As campanhas guerreiras de 1680, 1705, 1736/7, 1762/3 e 1776/7 contribuíram fortemente para a formação de um sentimento de solidariedade regional entre os hispânicos.  Finalmente, Buenos Aires, até aquele momento um mero porto acessório ao flanco sul das minas de prata de Potosi, passava a ter algum protagonismo.

Embrião da República Argentina

Quando Colônia do Sacramento foi fundada pela primeira vez em 1680, a então centenária Buenos Aires tinha apenas 8.000 habitantes. Sua prosperidade era sufocada pelo centralismo administrativo e aduaneiro de Lima. Entretanto, em 1777 o porto mantilha contato direto com a Espanha e seus 24.000 moradores viviam em uma cidade com certos melhoramentos urbanos! Nesse contexto ganha relevância o papel de Pedro de Ceballos, militar espanhol, governador de Buenos Aires. Em 1776/7, depois de ocupar definitivamente Colônia, consegue de Madri a formação do Vice-Reinado do Prata, com sede em Buenos Aires e independente de Lima. Seria o berço da nação argentina, a ser consolidada posteriormente na luta com os ingleses (1806) e espanhóis (1810).

A fragilidade defensiva de Colônia

Como explicar a debilidade defensiva de Colônia? Qual o erro de avaliação dos portugueses, tão experientes em praças-fortes pelos mares afora?

Muralha interna do forte. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

O problema estratégico de Colônia do Sacramento começava pela sua localização: exageradamente próxima a Buenos Aires e longínqua dos portos luso-brasileiros de Laguna, Paranaguá, Santos e Rio de Janeiro. Esse fator dificultava enormemente o apoio logístico e militar.  A princípio pensou-se em instalar uma praça-forte onde hoje está a cidade litorânea uruguaia de Maldonado, na costa atlântica e fora do estuário, mais próxima ao Brasil. Era um território conhecido dos paulistas que lá comerciavam com os índios charruas. Portanto talvez  mais apropriado. Entretanto, a escolha final recaiu no rio da Prata.

Uma praça vulnerável

Outra fraqueza era a localização da murada de quatro pontas na parte mais alta da península, mas excluindo o porto, protegido por uma muralha lateral, mas passível de um ataque frontal, ou cerco naval. A vulnerabilidade de Colônia diante da segurança de outras cidadelas pelo mundo, notadamente a inexpugnável Mazagão, na costa atlântica do Marrocos, é realmente destoante da tradição lusa.

Basílica do Santíssimo Sacramento. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Foi construída sob a orientação de Manuel Lobo, militar português experimentado nas lutas ibéricas, que assumiu a governança do Rio de Janeiro com esse propósito determinado pela coroa. Entretanto, estando o reino em grande penúria, pouco trouxe. Teve que reunir pessoal, recursos e materiais no Rio de Janeiro e Santos, portos onde também embarcou famílias para serem os primeiros moradores da nova cidade murada.

Ambiente hostil

No caso de Colônia, além dos problemas apontados, também houve uma subestimação da oposição dos hispânicos proprietários de terra no entorno de Buenos Aires, interessados na exploração do gado selvagem da margem esquerda do Prata– também conhecida como banda oriental do Uruguai.

Ao fundo casa em estilo português. Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Afinal aqueles animais haviam sido soltos intencionalmente, visando a procriação, por um antigo governador de Buenos Aires décadas antes. Só não estavam sendo arrebanhados devido à presença nos campos dos índios Charrua, que não eram amistosos com os hispânicos e haviam aprendido a cavalgar. Os luso-brasileiros, por sua vez, se davam muito bem com eles, com quem trocavam couros por aguardente de cana e tabaco do Brasil.

Animosidade dos guaranis

Assim, como também não foi devidamente avaliado o potencial guerreiro dos milhares de índios guaranis aldeados em missões catequéticas dos jesuítas espanhóis, ferrenhos oponentes dos luso-brasileiros de São Paulo que os atacavam e escravizavam.  No início do século 17 diversas incursões dos paulistas foram feitas ao sul e sudoeste para aprisionar guaranis para a escravidão. Contudo,  a partir de 1640 começam a ser repelidos pelos guaranis aldeados, então armados com artilharia pelos jesuítas espanhóis.

Entrega de Colônia aos espanhóis

Em 1777, Portugal cedia Colônia do Sacramento à Espanha, mas tinha reconhecido seu direito aos portos do Rio Grande e Porto Alegre, assim como ao território de Santa Catarina. A maioria dos habitantes de Colônia dirigiu-se ao Rio de Janeiro. A questão da posse da região das missões jesuíticas espanholas só seria resolvida no início do século 19 com a ocupação da área por tropas luso-brasileiras sediadas em Rio Grande.

Colonia del Sacramento

Famosa pelo seu maravilhoso por do sol, o qual reflete esplêndidos raios dourados no rio da Prata, a cidade uruguaia de Colonia del Sacramento é um aprazível balneário com quase 30 mil habitantes fixos.

Imagem, José Alfredo Vidigal Pontes.

Durante o verão sua bela praia de areia no estuário do rio recebe milhares de turistas para se banhar e velejar, notadamente uruguaios e argentinos, mas muitos brasileiros também! Para os aficionados em jogo há um cassino. O “Centro Histórico” da cidade abriga casas portuguesas remanescentes construídas com pedras, bem como museus, a antiga igreja e parte da velha muralha. Durante o ano todo recebe turistas em suas boas pousadas e restaurantes. Há um serviço regular de travessia para Buenos Aires em uma grande balsa, num percurso de 2 horas.

*José Alfredo Vidigal Pontes: historiador e jornalista. Graduado em História pela USP é autor de livros sobre a história do Brasil.

Leituras recomendadas:

Alarcia, Diego Tellez – La Manzana de la discórdia (1677-1777), Montevideo, Ediciones Cruz del Sur, 2012.

Almeida, Aluísio de – Vida e morte do tropeiro, São Paulo, Martins,1971.

Boxer, C. R. – O Império Marítimo Português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 2017.

Birolo, Pablo – Militarizacion y política en el Rio de la Plata colonial, Buenos Aires,Prometeo Libros, 2012.

Costa, João Paulo Oliveira e (coord.) – Rodrigues, João Damião – Oliveira, Pedro Aires _ História da Expansão e do Império Português, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2014.

Prado, Fabrício – Colônia do Sacramento, Porto Alegre, F.P. Prado, 2012.

Tula, Aníbal M. Riveiros, Historia de la Colonia del Sacramento, Montevideo, Instituto Historico y Geografico del Uruguay, 1959.

Mazagão, a fortaleza lusa invicta no Marrocos

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