Vila do Cabeço, SE, tragada pela Usina Xingó: vitória na Justiça
Demorou 30 anos, uma eternidade para a população da pequena Vila do Cabeço às margens da foz do São Francisco. Em 1990 a aldeia foi tragada pela hidrelétrica de Xingó, uma das seis que levaram nosso quarto maior rio (e quarto maior da América do Sul), o ‘rio da integração nacional’, à UTI. Agora, a população desalojada pode comemorar. Os ex-moradores ganharam na Justiça o direito a uma indenização de R$ 40 milhões de reais, da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). Eles provaram que foi a construção da barragem o carrasco da vila em que moravam.
As hidrelétricas em evidência
Nestes tempos de aquecimento global descendo a ladeira, e vomitando desastres ambientais, as hidrelétricas estão em evidência. É frequente as autoridades lembrarem que nossa matriz elétrica, 88% considerada limpa, faz o Brasil líder da transição energética no mundo.
É verdade. Acontece que a grande maioria das pessoas não lembra os imensos impactos que uma barragem, sempre necessária para usinas hidrelétricas, provoca ao meio ambiente e ao meio social onde está inserida. Não somos contrários às usinas, que isso fique claro. Compartilhamos a opinião do físico José Goldenberg, de que os prós são maiores que os contras.
Entretanto, aproveitamos para lembrar que o excesso de barragens é possivelmente tão danoso quanto os gases de efeitos estufa. O São Francisco, com 2.814 KM, secou. Suas várzeas, antes eficientes sumidouros de carbono, perderam grande parte de sua capacidade, se não toda ela. A fauna aquática foi devastada, e a erosão na foz engoliu uma vila e agora ameaça outra, o Pontal do Peba.
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A Deutsche Welle informou que a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) pagou R$ 40 milhões aos 220 moradores depois que provaram que o mar engoliu o povoado devido à construção da barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) de Xingó, na divisa entre Alagoas e Sergipe, em Canindé de São Francisco. A obra provocou erosão costeira na foz do rio.
O acordo, firmado em maio, garantiu a cada morador uma indenização líquida de R$ 153 mil, já descontados os honorários advocatícios. O valor é quatro vezes maior do que as indenizações individuais previstas no acordo homologado, no Supremo Tribunal Federal (STF), para reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais, em 2015′.
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A advogada Jane Tereza Fonseca disse à Deutsche Welle que, “temos pessoas que moravam no Cabeço, nasceram lá e hoje têm 90 e poucos anos. Então, quando pensamos num acordo, pensamos nessas pessoas’. Carlos Eduardo Ribeiro, cocriador do Info São Francisco, afirmou que “o processo traz um marco histórico para todas as comunidades impactadas por barragens no Brasil, ao estabelecer uma jurisprudência única”.
A vila do Cabeço
Segundo a Deutsche Welle, o Cabeço era um povoado de 120 casas localizado no lado sergipano da foz do São Francisco, em Brejo Grande. Não se sabe ao certo quando começou o povoamento. Estima-se que a comunidade se formou em torno de um farol, erguido entre os anos de 1870 e 1873, o único resquício ainda visível da localização original.
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Finalmente, o processo mostrou ainda que o estudo de impacto ambiental referente à Xingó mediu impactos a até 100 quilômetros de distância da barragem, omitindo os efeitos na foz do rio. Em 2022, a responsabilidade da Chesf foi reconhecida pela 2ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe.
Além da ação individual, informa a Deutsche Welle, há outras duas ações coletivas relacionadas ao Cabeço. Uma, movida pela Associação Comunitária do povoado, busca reparação pela destituição do local e de seu patrimônio, incluindo igrejas, escola, delegacia e cemitério.
Enquanto isso, a outra, conduzida pela Associação de Pescadores, exige compensação pelos impactos na produção pesqueira. Cada ação assegurou R$ 10 milhões. O destino desses valores será definido em audiência pública marcada para 12 de fevereiro do próximo ano.
Os expulsos por barragens hidrelétricas
A matéria, bem completa, é de autoria de Alice de Sousa. Ela lembra que, um relatório produzido pelo então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana estima que em 40 anos 1 milhão de brasileiros foram expulsos das suas terras para a construção de 2 mil barragens. No País, há barragens para geração de eletricidade, como as localizadas no rio São Francisco; abastecimento de água; acumulação de rejeitos industriais, como as que romperam em Mariana e Brumadinho; e para usos múltiplos.
Ocupando 8% do território nacional e atravessando sete estados, o São Francisco é sede de oito das doze hidrelétricas que a Chesf mantém no Nordeste. O rio vem sofrendo intervenções que comprometeram a sua intensidade de vazão desde 1913, com a construção da usina Angiquinho, em Alagoas, a primeira hidrelétrica da região.
A Deutsche Welle ouviu Jandilma Santos, para quem, depois de duas décadas de espera, a indenização é apenas um consolo. “Nada que essa indenização ou a Chesf ou esse acordo fizesse poderia cobrir, tapar ou sarar nossa mente, nosso coração e tudo que a gente viveu lá.”
Seria oportuno lembrar ao leitor que, quanto menos energia gastarmos, menos hidrelétricas serão necessárias. Não nos esqueçamos que o desperdício em Pindorama é imenso. Thiago Jeremias, gerente de Pesquisa & Desenvolvimento e Inovação da Celesc, mostrou que o esbanjamento e de energia elétrica no Brasil é estimado em 43 terawatt-hora (TWh) por ano, o que equivale ao atendimento de 20 milhões de residências.
Pense sobre isso e faça sua parte.