Viagem do Naufrágio: a tripulação do Mar Sem Fim
Viagem do Naufrágio: a tripulação do Mar Sem Fim. Em outras postagens já falei do Plínio, falta contar de meus dois tripulantes, Alonso e Manoel.
Trabalho com o Alonso há cerca de 20 anos. Somos mais que parceiros. O tempo nos transformou em amigos. No passado, quando navegava no veleiro Mar Sem Fim, eu não tinha marinheiros. Viajava sozinho, com conhecidos, ou namoradas.
O tempo passou. Casei e tive filhos. Quando o mais velho nasceu, Luis (hoje com 16 anos e estudando no Canadá…), continuei a usar o barco com ele e minha ex- mulher, Gabriela.
Meu filho tinha apenas seis meses de idade quando esteve a bordo pela primeira vez. Então percebi que não dava mais conta sozinho. Além da navegação, das noites em claro com mar ruim, eu tinha agora como companheiros mulher, e filho pequeno.
Viagem do Naufrágio: a tripulação do Mar Sem Fim. Eu precisava ajuda
Recorri ao Plínio de novo. Expliquei a situação e pedi sugestões. Eu queria “um cara do ramo”, que trouxesse segurança à família.Não demorou pra me apresentar o Alonso.
Marinheiro raçudo, Catarina, ex-pescador, ex-mestre em barcos de pesca, e com um belo currículo na vela. Logo depois nasceu o José, que também freqüentou o barco desde bebê.
Com as crianças descobri uma nova faceta do Alonso: a candura, o carinho, que ele quase nunca consegue demonstrar aos adultos, flui com naturalidade para os mais novos. É impressionante como trata os pequenos com gosto, tomando conta, divertindo, mostrando as primeiras regras do mar conforme vão crescendo, ensinando a pescar ou a pilotar motores de popa.
Luis e, especialmente o José, são amigos do Alonso, cresceram com ele ao redor.
Quando fizemos a costa brasileira era comum eu ligar para meus filhos, do barco, pra matar as saudades. Naquela época eu ficava meio mês a bordo, meio em São Paulo. Era o tempo dos documentários para a TV Cultura.
Depois de papear com o Luis, contando minhas novidades e perguntando as dele, vinha o José :” Oi Pai, tudo bem, deixe eu falar com Alonso?”.
Eu ficava sem graça. Comigo ele não queria papo, mas com o Alonso…
Um cara versátil
E o cara é versátil. Um marinheiro só vira “lobo do mar” se tiver uma boa passagem pela vela. Alonso teve escola. E das boas. Nos anos 70, quando Fernando Nabuco montou uma tripulação para correr regatas internacionais no legendário Wa Wa Too, Alonso fazia parte do grupo.
Entre outras, ele participou da famosa Admiral’s Cup, organizada pelo Royal Ocean Racing Club, da Inglaterra, uma espécie de campeonato mundial, não oficial, de veleiros de oceano.
O Wa-wa-too
Outra regata emblemática era a Bermuda’s Race, uma competição bianual que existe desde 1906. Participando de uma delas o Wa Wa Too pegou um rabo de furacão. Durante vários dias navegaram em árvore seca (sem nenhuma vela) com ventos de 60, 70 nós e mais, fazendo 8, 10 milhas de velocidade, enquanto esperavam o tempo melhorar.
Alonso vivia me contando estas histórias no cockpit do Mar Sem Fim, enquanto navegávamos pela costa brasileira. Eu tremia só de pensar. Ficava imaginando minha reação se um dia pegasse situação parecida…
Juntos fizemos mais de 20 mil milhas pelo litoral do Brasil.
Como conto no livro, O Brasil Visto do Mar Sem Fim (editora Terceiro Nome), Alonso é indispensável. Ele é daqueles que “enxergam o vento” quando ninguém o vê, e “leem o mar”.
Me ensinou demais.
Devo muito, mas muito, ao Alonso
Ele está na casa dos sessenta. Para quem não é íntimo, se mostra reservado. Às vezes até carrancudo. Mas é fachada. Construída não sei por quê.
Por trás da máscara está uma pessoa emotiva, amorosa. Um ótimo caráter. Excelente profissional, amigo verdadeiro, e o melhor cozinheiro entre os barcos que já naveguei. Opinião partilhada por todos que viajaram com ele. Não importam as condições, sai sempre uma comida de lamber os beiços.
Manoel também é Catarina
Uma figura. Está na casa dos trinta, magrinho mas um touro de forte. Tem olhos azuis e uma mania: não descobre a cabeça nem quando dorme. Está sempre com um boné, ou gorro. E come como um leão. Faz pratos que até a mãe duvida, sapeca tudo com farinha por cima, seja lá qual for a comida, triturando a mistura em minutos. Come duas pizzas sozinho. E trabalha quase 24 horas por dia.
É de longe o nome mais citado a bordo: “Manoel!”, pra cá, “Manoel!”, pra lá. O dia todo é assim. Ele atende sempre do mesmo jeito: sorrindo, prestativo, divertido com seu sotaque inconfundível. É pau pra toda obra.
Começou a trabalhar conosco quando consegui o Mar Sem Fim a motor. Para conhecer melhor o barco naveguei de Santos para o Maranhão, de lá para Fernando de Noronha, em seguida Atol das Rocas, Rio Grande do Norte e depois, pingando pelos estados do Nordeste abaixo, até retornar pra Santos com cinco mil milhas acumuladas.
Ele emplacou de cara.
Atualmente era quem mais conhecia o barco. Tinha total intimidade com suas entranhas. Nos últimos anos, desde que parti para minha primeira viagem à Antártica, em Outubro de 2009, Manoel morou a bordo.
O Mar Sem Fim em Ushuaia
Resolvi deixar o barco em Ushuaia para fazer charters nos canais da Patagônia. Alguém tinha que ficar … Manoel foi o escolhido! Ele era popular na cidade. Ficou conhecido por suas maiores qualidades: a simpatia, o bom humor que não falha um dia no ano, o sorriso permanente estampado no rosto. E o boné, ou gorro, inseparável…misterioso.
A casa de máquinas do Mar Sem Fim era um primor, orgulho de nosso amigo. Brilhava de limpa. E tudo com pintura nova. Manoel era caprichoso. Ele sabia a função de cada chave, ou botão, entre as centenas que um barco daquele porte tem.
E se tornou um exímio pescador de centojas. Entre as amizades que fizemos, com as poucas pessoas que habitam as margens do Beagle, uma nos emprestou uma armadilha igual às usadas pelos pescadores profissionais da região.
Manoel se tornou perito. Quem fez a viagem pelos canais, e não foram poucos, sabe. Viram a quantidade pescada, e comeram, com qualidade, preparadas pelo Alonso. Ele “é o cara!”
Na proa, debaixo de pau, dá show. Maneja o guincho e as âncoras no meio de nevascas com 60 nós de vento, sensação térmica de menos 30 C, o Marzão enfiando a cara n’água nas caturradas, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Calmo, ágil, parece um sagüi saltando de um lado pro outro conforme a manobra, como malabaristas de circo. Um show de proeiro!
Viagem do Naufrágio: a tripulação do Mar Sem Fim, sinto falta dos dois
No passado, quando fiz a costa brasileira de veleiro por dois anos, para os documentários da Cultura, foi o Alonso quem morou a bordo. Ele adorava o velho Marzão e seus dois mastros.
Não gostou quando passei pro motor. Brigou comigo. Ficou triste de perder a vela, as regatas em Ilhabela, ou as várias Recife-Noronha que fizemos.
Foi com ele que participei da Eldorado-Brasilis, de Vitória, no Espírito Santo, para a ilha de Trindade, 600 milhas ao largo. Que bela regata era aquela! Cinco a seis dias de mar e vento só pra chegar.
Acho que fizemos três delas. O homem virava um bicho! Não dormia, velejava o tempo todo, cozinhava mesmo com barco adernado e jogando. Valia por dez.
Desta vez ele não se entusiasmou com a Antártica. Quando liguei pra avisá-lo percebi algo estranho, ele não queria ir… um sexto sentido no ar. Insisti e ele não me abandonou.
O resto se sabe. O que não contei desta personalidade marcante é o grande amor pelos barcos, e à profissão. Bonito de ver. Não queria abandonar o Mar Sem Fim em Fildes. Tive que falar grosso com ele. Praticamente exigi.
E na noite do naufrágio não conseguiu dormir. Estávamos no mesmo beliche. De cima pude ouvir, a noite toda, um choro abafado. Sentido. De quem não se conforma em abandonar um barco. Abraço os dois neste post. E torno pública minha admiração, agradecimento, e respeito.
Vocês sempre foram, e continuam, imprescindíveis.