O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência na viagem do naufrágio

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O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência

Acaba de amanhecer na baía Fildes, ilha Rei George, onde estamos, o Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência. A temperatura é de menos 6º C, o vento de Sueste agora está na casa dos 30 nós, com rajadas de até 38, 40.

Não pude escrever desde o dia 2 em razão do forte vento que só agora acalmou. Até quando, não se sabe. Desde o dia 2 a média foi de 40 nós, quase  ininterruptamente. Nas rajadas subia a mais de 50. Nestas situações, com as ondas altas que entram na baía, nossa âncora desgarrava. Era um Deus nos acuda.

Ligávamos os motores

Ligávamos os motores, Plínio assumia o leme, eu e Manoel, cada um de nós num dos lados do comando (lado de fora), tentávamos distinguir os contornos de terra para  dar alguma direção ao Plínio que não enxergava um palmo adiante. Além do vento havia neve forte e cerração. Os vidros do comando, congelados, não permitiam visão. Mesmo fora do barco era difícil enxergar. A nevasca deixava o ar todo branco impedindo uma visão apurada.

Meus olhos doíam castigados pelos flocos de neve

Tive que usar óculos brancos, destes de esqui, para conseguir mantê-los abertos. Foi dureza. Situação de apequenar qualquer marmanjo. Felizmente mantivemos a calma, passando informações ao Plínio, dando condições para ele navegar em direção à corrente da âncora.

Então Manoel ia para a proa e manejava o guincho que, com esforço, recolhia a corrente até suspender a âncora para podermos capear (navegar de um lado para o outro) num exíguo espaço cheio de pedras e bem próximo à praia onde fica a base Fildes.

Quando melhorava brevemente, soltávamos a âncora de novo, a sotavento de uma ilhota que nos protegia  das ondas que entravam. Então, dedos cruzados, torcíamos para o ferro grudar no fundo do mar. Em vão. Logo entrava mais uma rajada com 55, 56 nós (mais de cem quilômetros por hora). O barco começava a desgarrar novamente, correndo  a favor do vento que o empurrava para a praia.

Motores ligados, Plínio no leme, eu e Manoel para fora mais uma vez tentando dar direção ao timoneiro

Foi assim durante 48 horas. Só parou nesta última noite. Estou no final de meu turno. Há luz suficiente para poder exergar. Para me acalmar peguei o computador e, sentado na cadeira de comando, tento relatar o que temos passado. Quando ouço o barulho do vento aumentar paro imediatamente de escrever, e grudo os olhos num ponto de referência em terra, ou no radar, para ver se ainda estamos fundeados no mesmo lugar.

O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência. Tensão. Frio na barriga…

Sensação de ínfima pequenez diante da poderosa força dos elementos que nos cercam: frio glacial, ventania, ondas desencontradas, barulhos estranhos e incomuns. Sentidos aguçados, cabeça a mil procurando identificar cada situação, cada balanço do barco, sozinho no comando enquanto meus companheiros dormem na sala para se recuperarem dos turnos que enfrentaram.

Quando estou fora de meus turnos procuro reler a última previsão de tempo enviada pela Commanders Weather, e estudar as condições para a possível janela de tempo, quando tentaremos a travessia de volta nesta quinta ou sexta-feira.

Contato diário com o navio  Almirante Maximiano

Ao mesmo tempo mantemos contato diário com o navio  Almirante Maximiano, indagando sobre a data em que eles pretendem atravessar para tentarmos uma navegação conjunta no Drake, única forma de garantir nossa segurança.

Também telefonamos ao Brasil várias vezes por dia falando, ora com familiares preocupados, ora com amigos como Carlos Brancante, que nos ajuda fazendo contatos com a cúpula da Marinha.

Não deixo meu sentimento de culpa tomar conta de meu cérebro porque ainda não é este o momento. Nunca fugi às minhas responsabilidades e não será diferente desta vez.  A responsabilidade pelo barco e tripulação é sempre do comandante, em outras palavras, minha. Mas a hora do mea-culpa está longe. Agora é hora de garantir a integridade do barco da melhor forma possível, junto com meus companheiros, porque ele é o nosso passaporte para a volta.

08h. Cerração, pouca visibilidade, ventos Leste, Sueste com cerca de 25 a 30 nós. Rajadas de 40.

4/4/2012 – 10 horas.

Acaba de chegar mais uma previsão da Commanders. Eu torcia para as condições da travessia melhorarem, mas desde a primeira linha gelei. O pessoal recomendava que não saíssemos de onde estávamos. As condições pioraram consideravelmente. Ventos com força de mais de 50 nós são esperados para esta noite. Mas amanhã é que a coisa fica preta: furacão à vista. Os termos usados pelos americanos, normalmente frios, eram absolutamente alarmantes. “strong gale or storm winds forces winds”, referindo-se ao vento que deve entrar esta madrugada, “ sea state looks horrible” , para descrever as condições de mar no Drake e mesmo na baía Filds onde estamos ancorados. “ I strongly suggest you don’t depart today, tonight or tomorrow”. “Seas will reach at least 20 – 30 feet N of King George later tonight and will be short and confused” (ondas de até 10 metros de altura, curtas e desencontradas, ao norte da ilha Rei George). “Decided this will realy stupid to be offshore in this storm” (decididamente será estupidez sair para o mar com esta tempestade).

Pelo Mar Sem Fim fizemos o que foi possível

Naquele momento decidi que era hora de cuidar da integridade da tripulação. Pelo Mar Sem Fim fizemos o que foi possível. Conversei com Plínio que concordou no ato.

imagem de bote chileno na antártica
O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência. Os chilenos de Fildes preparam o bote.

Discutimos, via rádio, com o pessoal da base Fildes , qual a melhor solução em vista do que está previsto pela meteorologia. Aqui ao lado, na mesma praia, há também uma base russa. Eles têm uma barcaça que fica no mar, presa a uma poita. Perguntamos se haveria possibilidade de amarrarmos o Mar Sem Fim a contrabordo da barcaça. Imediatamente o capitão de Fildes foi até os russos indagar o peso da poita. A resposta foi desanimadora. Não seria suficiente para dois barcos.

imagem do resgate do mar sem fim
Tudo pronto para o resgate (As fotos desta pag. são dos chilenos da Bahia Fildes).

A única solução, acertada entre nós e o pessoal de Fildes, seria fundear o Mar Sem Fim da melhor forma possível, a sotavento de uma pequena ilhota na baía, com os dois ferros (95 kg cada um), e com os 120 metros de corrente que temos. Em seguida fecharíamos o barco, desligaríamos os aparelhos, e o pessoal de terra viria nos buscar com um enorme bote de borracha, dois motores de 60 cavalos cada, para nos trazer para a segurança do interior da base.

5/4/12

Oito horas da manhã. Consegui dormir duas horas esta noite num alojamento da base Fildes junto com meus três companheiros. Os chilenos são sensacionais. Nos tratam como velhos amigos. Mais uma prova da inacreditável solidariedade antártica de que já falei.

Os marinheiros de Fildes saem para o resgate.

Retomo agora o relato de ontem.

Conseguimos fundear numa manobra perfeita com o Plínio ao leme. Foi muito difícil chegar no ponto certo de fundeio. Quando isto acontecia o ferro não descia porque a corrente estava congelada. Manoel dava marteladas para que  descesse quase  elo por elo. Enquanto isto o vento empurrava o barco para fora do lugar correto. Então era preciso recolher e começar tudo de novo.

imagem do  Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência
No momento do resgate ventava 45 nós. Nas rajadas chegava aos 50!

No exato momento em que saiu da água foi envolvido por uma enorme pedra de gelo

Numa das vezes que trouxemos o segundo ferro para cima (a esta altura o primeiro já estava grudado no fundo do mar com toda a corrente solta), no exato momento em que saiu da água foi envolvido por uma enorme pedra de gelo. Explicação: a água do mar está entre um a zero graus positivos, já a temperatura do ar marca menos 6ºC. Assim que o ferro saiu fora d’água ficou congelado. Foi assutador ver aquilo. Eu estava na proa ajudando o Manoel com o guincho e olhando pra água. Percebi a âncora vindo à tona em perfeito estado. Mas no mesmo momento em que começou a sair da água, automaticamente se congelou. Uma bola de gelo se formou em torno. Dava pra ver lá no meio os contornos da âncora…

Foi difícil a aproximação do bote.

Finalmente, na terceira ou quarta tentativa, conseguimos o fundeio perfeito.

O bote da base Fildes veio até nós

Então, com vento muito forte e ondas altas, o bote da base Fildes veio até nós. Nosso dembarque foi uma epopéia. Ondas de mais de um metro e meio e vento  com mais de 40 nós faziam com que o bote saltasse para um lado e outro, como um cavalo xucro num rodeio. Quando ele conseguia chegar bem próximo cada um de nós, a seu tempo, se jogava nos braços dos três tripulantes chilenos (havia mais um no comando ). Felizmente todos entraram em segurança.

O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência. Começa o resgate…(fotos do pessoal da Bahia Fildes)

Em seguida, mesmo com o bote cheio d’água (as ondas entravam pela popa e saiam pela proa), conseguiram nos trazer em segurança até a praia.

Em primeiro plano, de vermelho, eu desembarcando, atrás, de azul, Alonso.O Mar Sem Fim luta por sua sobrevivência.

Comandante Eduardo

No conforto do interior da base, o comandante Eduardo nos contou que há dois dias esperavam nosso naufrágio nas pedras para qualquer momento. Dormiram com as roupas secas ao lado da cama, enquanto um deles vigiava nossas manobras esperando não perder tempo quando o desastre se consumasse. Ficaram espantados com nossa perícia e nos parabenizaram pelas manobras.

O Mar Sem Fim agora luta sozinho

Meu barquinho caturra (balanço no sentido longitudinal) subindo e descendo as ondas, mas por enquanto está firme no mesmo lugar.

Hoje, dia 5/4, a temperatura desceu para menos 9 graus centígrados. O furacão deve entrar esta noite ou madrugada. São esperados 80 nós de vento (cerca de 150 quilômetros por hora). A temperatura deve cair para menos 14ºC. Nunca torci tanto para uma previsão estar errada. Este será o dia decisivo para o Mar Sem Fim.

Naufrágio do Mar Sem Fim dramático demais

Comentários

57 COMENTÁRIOS

  1. João, senti frio na espinha ao vivenciar os seus comentários sobre suas aventuras no mar.
    Vou ler o livro “A Saga do Mar Sem Fim”.
    Saudações de leitor e telespectador de seus documentários pela Cultura!

  2. João,fiquei surpreso ao saber da triste notícia;mais ainda por ser você,sempre tão preparado e experiente nos assuntos do mar.
    O mar nos prega “peças” por mais preparados que estejamos;infelizmente todos os que navegam sem exceção, estão sujeitos a esses infortúnios.
    Sempre acompanhei seu trabalho,e torço firmemente para que logo tenhamos voce de volta com suas excelentes reportagens.
    Um grande abraço.

    • Querido Marcelo, muitíssimo obrigado pelo correio e solidariedade.
      É a melhor coisa que está acontecendo comigo: descobrir (antes tarde que nunca) quantos, e quão bons amigos eu tenho.
      Abração

  3. João e Plínio:
    Vcs depois de “maduros” deram prá dar susto nos amigos é isso?
    Beijos e cuidem-se!
    Agradeço os Chilenos que tiraram vcs dessa enrascada.
    Bola pra frente e pergunto onde vai ser a próxima?
    Renata

  4. Oi Jõao,
    Fiquei muito triste quando abri o jornal hoje cedo.
    Imagino como voce deve estar.
    Coragem e toca para frente que nunca é tarde para recomeçar.
    Bjos,
    Luli

  5. Queridos João e Plínio,
    Parabéns pela coragem, estamos aqui juntas acompanhando e tentando imaginar o sufoco que passaram. Certamente vocês chegaram ao extremo frio, mar, vento e medo, e devem ter superado muitas fronteiras internas. Mais uma vez parabéns comandante por ter cuidado da tua tripulação. Estamos muito felizes que vocês estão bem.
    Quando as águas se acalmarem a gente gostaria muito de abraçá-los calorosamente, brindar à sobrevivência e sonhar com novos projetos.
    Beijos carinhosos,
    Kika e Bó

  6. joao,
    nao conheco vc, nem vc a mim… sou argenitno, moro em floripa, gosto do mar e acompanho o teu blog faz tempo.
    imagino a dor pelo resultado da tua aventura e por ver o teu projeto de vida afundado no pior mar do planeta…
    independentemente disso, vc tem TODO o meu respeito…. God Bless aos aventureros que nem vc, que em lugar de ficar em Sao Paulo dirigindo uma Land Rover na marginal, arriscam a vida e a fortuna para aventurar-se a explorar os lugares mais remotos da terra… PARABENS CARA… REALMENTE, VC TEM TODA A MINHA ADMIRACAO… que bom que ninguem saiu machucado… bola pa’frente e bons ventos! don’t give up!

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