Negacionismo do clima e a indústria de eletricidade nos EUA
O tão falado negacionismo da ciência teve seu início nos anos 50 do século passado por ação deliberada da indústria do tabaco. Aconteceu depois que a ciência apontou o tabagismo como causa principal do câncer de pulmão. Em resposta, a indústria norte-americana do tabaco criou o “Comitê de Pesquisa da Indústria do Tabaco” para promover “a existência de visões científicas firmes que mostrassem que não há provas de que fumar cigarro causa câncer de pulmão”. Deu certo, confundiu o público durante anos. A estratégia fraudulenta abriu caminho para a indústria do petróleo, conforme comentamos no post Indústrias do petróleo e do tabaco, e o negacionismo atual. Agora, surge uma nova acusação nos Estados Unidos sobre o negacionismo do clima pelo setor da eletricidade.
Cópia de estratégias anteriores
Matéria do www.theatlantic.com, assinada por Robison Mayer, começa forte: ‘A indústria de eletricidade sabia dos perigos das mudanças climáticas há 40 anos. Ela os negou de qualquer maneira.’
“Em 1992 o setor de energia, incluindo o Edison Electric Institute, seu principal grupo de lobby, e o Electric Power Research Institute, uniu-se contra qualquer esforço para entender ou impedir as mudanças climáticas. Em 1992, um artigo da EEI dizia que o aquecimento global não pressagiaria um desastre, mas traria “dias mais frios, noites mais quentes e vegetais melhores”.
‘Não foram apenas as empresas petrolíferas que espalharam a negação climática’
O título da matéria é It Wasn’t Just Oil Companies Spreading Climate Denial. Ou seja, Não foram apenas as empresas petrolíferas que espalharam a negação climática.
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Antes de mais nada, o artigo de Mayer se baseia em estudo publicado na Environmental Research Letters (setembro de 2022) sobre o papel do setor elétrico na disseminação da negação climática. Emily Williams, pesquisadora da UC Santa Barbara e coautora declarou: ‘não foi apenas a indústria do petróleo.’
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Mayer diz que o estudo ‘revela o arco de meio século que levou as concessionárias de energia elétrica a festejarem os principais cientistas climáticos do país na década de 1960. Em seguida, a denunciarem a importância de suas pesquisas na década de 1990. E finamente, a empreenderem relutantemente esforços para descarbonizar suas próprias redes. na década de 2010.’
O legado de negação
Leah Stokes, autora do estudo e cientista política da UC Santa Barbara, declarou: ‘o legado de negação, dúvida e lentidão das concessionárias, continua a atrasar a transição energética do país.’
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Para o estudo, ‘todos os tipos de serviços públicos lutaram contra a política climática de forma agressiva e duradoura.’
Documentos do setor de 1968 a 2019
Segundo Mayer, ‘A nova pesquisa analisou 188 discursos, memorandos, artigos, anúncios e outros documentos do setor de 1968 a 2019 que mencionavam mudanças climáticas, dióxido de carbono ou outras palavras-chave relacionadas.’
Mayer ouviu Naomi Oreskes, historiadora da ciência de Harvard que pesquisou sobre a negação da indústria de combustíveis fósseis e não esteve envolvida no estudo.
“Isso nos lembra que a desinformação climática não foi o domínio de apenas uma, ou mesmo, um punhado de empresas de combustíveis fósseis. Foi perpetuada por uma rede de indústrias compadres que apoiam e dependem de combustíveis fósseis.”
‘Impedir que os Estados Unidos entrassem no Protocolo de Kyoto’
Entre os esforços da indústria elétrica estava ‘impedir que os Estados Unidos entrassem no Protocolo de Kyoto.’ Assim, foi novamente bem-sucedida. “O Senado efetivamente bloqueou os EUA de cumprir o protocolo ou qualquer tratado similar; em 2001, o presidente George W. Bush anunciou que os EUA não implementariam o tratado.”
De acordo com o estudo, ‘Das 10 concessionárias que mais fizeram para espalhar a negação climática, oito continuam investindo pesadamente em carvão e combustíveis fósseis e têm os planos de transição mais inadequados.’
Artigo de Thomas Friedmann
Analistas fazem coro à demora na transição energética. Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 15 de setembro, em que comenta a chantagem russa no fornecimento de gás para a Europa no inverno, Friedmann cobrava:
‘Eu gostaria de poder afirmar com certeza que Putin fracassará, que os americanos irão suprir a escassez e superar sua produção…Mas não posso. Não enquanto os EUA e seus aliados ocidentais continuarem vivendo em um mundo de fantasia no qual basta apertar um botão para realizarmos a transição dos combustíveis fósseis para as fontes renováveis de energia.’
Defesa da energia limpa
‘Esta coluna, diz Friedmann, se dedica há 27 anos a defender a energia limpa e a mitigação das mudanças climáticas. Ainda defendo esses objetivos. Mas, simultaneamente, é impossível desejar os fins se você não deseja também os meios.”
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E conclui: ‘E comprovadamente não fizemos isso!’ Mais adiante, Friedmann confirma o que disse a historiadora de Harvard, Naomi Oreskes, ou seja, o boicote cínico e deliberado de certos setores da economia americana. Repetimos o que ela disse: ‘Das 10 concessionárias que mais fizeram para espalhar a negação climática, oito continuam investindo pesadamente em carvão e combustíveis fósseis…’
O articulista confirmou a força do setor de eletricidade: ‘Apenas nos Estados Unidos, em 2021 cerca de 61% da eletricidade consumida foi gerada por combustíveis fósseis (principalmente carvão e gás natural), enquanto isso, cerca de 19% veio de usinas nucleares e 20% de fontes renováveis.’
Por último, resta esperar que estes setores da indústria norte-americana responsáveis em grande medida pelo negacionismo pernicioso sejam cobrados nos tribunais como ocorreu com a indústria do tabaco.
Antes de mais nada, é inacreditável o cinismo, a negligência, e as mentiras patrocinadas por setores dominantes da economia. Não à toa, em países periféricos como o nosso há quem acredite que a Terra é plana enquanto muitos consideram o aquecimento assunto secundário.
Até quando?