A baía de Sepetiba (RJ) está morrendo
Antes de mais nada, ela é imensa, com cerca de 440 quilômetros quadrados. Suas fronteiras são a Serra do Mar, a Baixada Fluminense, e a Restinga da Marambaia. Trata-se de um corpo de água salobra com enorme manguezal, e comunicando-se com o mar por meio de duas passagens, na parte oeste, entre os cordões de ilhas que limitam com a ponta da restinga e, na porção leste, pelo canal que a conecta com Barra de Guaratiba. Em seu interior há dezenas de ilhas e praias e, pela quantidade de sambaquis, quase 40, ficamos sabendo que nossos antepassados frequentavam a área. Naquele tempo a baía devia ser um formidável viveiro marinho. Contudo, mais uma vez nossa ação desastrada cobrou um alto preço. Assim como destruímos a baía de Guanabara, estamos no caminho certo para fazer o mesmo com a baía de Sepetiba.
Nossa impiedosa geração será cobrada
Já escrevi um par de vezes sobre os estragos que nossa geração estabelece. Quando digo ‘nossa’, me refiro à geração que hoje está na casa dos 60 anos. As pessoas com esta faixa etária, como este escriba, encontraram um litoral prístino quando crianças. Porém, demonstrando extraordinária capacidade destrutiva, vamos legar para as gerações futuras ‘um osso roído’.
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Os jornalistas comentam o assoreamento da baía, sua imensa poluição pelo despejo diário de esgotos não tratados, e metais pesados, e a natural dificuldade enfrentada por pescadores artesanais que moram no entorno.
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Visita à baía de Sepetiba em 2006
O Mar Sem Fim visitou a região em 2006. Antes, na cidade do Rio de Janeiro, entrevistamos o professor Paulo Pereira de Gusmão, da cadeira de políticas públicas e ciências naturais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Recorremos ao diário de bordo daquela viagem: Ele nos deu sua visão sobre a Restinga da Marambaia. “A costa brasileira está cheia de exemplos do que não se deve fazer em termos de ocupação”. Por isto vê a Restinga como um laboratório vivo, “uma oportunidade de criarmos outro tipo de modelo de ocupação”. Apesar dela integrar a região metropolitana do Rio, e haver um milhão e trezentas mil pessoas nas cercanias, especialmente na borda continental onde fica o antigo porto de Sepetiba, hoje Itaguaí, e que engloba os municípios de Mangaratiba, Itacuruçá e Itaguaí, ele encara a área “como um laboratório vivo”. É que a Ilha da Marambaia, onde fica a restinga propriamente, ainda é muito pouco ocupada.
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‘A arrecadação é baixa, por isto não há saneamento básico, esgotos tratados, ou coleta eficiente de lixo’, ele dizia. E criticava os poucos empregos gerados por esta modalidade de turismo: ‘O comércio é fraco, os serviços também. E a pesca, a cada dia é mais escassa. Por isto quando chegar a vez da ocupação humana da Restinga, que ela descubra novas possibilidades.’
Baía assoreada
Contudo, a restinga não descobriu novas possibilidades. Infelizmente, ela está morrendo como contam os jornalistas de O Globo:
“Os pescadores que dependem da baía para viver enfrentam todos os dias um mar de lama densa até chegar à água no trecho de Pedra de Guaratiba. São 200 metros empurrando o caíco, um tipo de bote, por cerca de dez minutos, até escapar do assoreamento e conseguir remar.”
Poluição também é forte
Entretanto, a poluição também é forte: “O alto nível de poluição na região não é de hoje. Nos últimos 20 anos, as praias de Sepetiba, Recôncavo, Cardo e Pedra de Guaratiba vêm registrando qualidade péssima, o pior índice de balneabilidade medido pelo Instituto Estadual do Ambiente do Rio (Inea). Nada que tenha feito as autoridades a, no mínimo, desenvolver um projeto para sanear a região.”
O parágrafo acima mostra a nossa omissão, em outras palavras, Nada que tenha feito as autoridades a, no mínimo, desenvolver um projeto para sanear a região.
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Se isso acontece, é porque não reagimos. Ou reagimos pouco, não forçando o poder público a agir. É como tenho dito, nossas elites estão adormecidas. Só agem quando aperta diretamente em seus bolsos; aquilo que é comum, um bem de todos, não merece reação à altura como o litoral que encontramos prístino, mas que estamos obliterando impiedosamente.
Quando visitei a região, quase 20 anos atrás, a situação já não era boa. Porém, longe de ser o que hoje mostra O Globo. A baía de Sepetiba foi severamente castigada pelo polo industrial e o porto. O polo teve seu início nos anos 60/70, quando várias indústrias pesadas ali se instalaram.
Para se ter uma ideia da poluição, em 2018, cerca de 200 golfinhos morreram em Sepetiba e os cientistas atribuíram as mortes ao morbillivirus, um vírus de transmissão aérea que causa sarampo em seres humanos, acredite se quiser.
Cia Mercantil Industrial Ingá, fabricante de zinco e outros metais
Estaleiros, terminais portuários, usina siderúrgica, duas refinarias de petróleo, extração de areia e brita, e ainda, e talvez a pior de todas, a Cia Mercantil Industrial Ingá, fabricante de zinco e outros metais. Ela se instalou na ilha da Madeira, município de Itaguaí, nos anos 60. Faliu, e fechou, nos 90.
Contudo, deixou um enorme passivo ambiental: imensos tanques cobertos por um líquido onde se misturam água e metais pesados, notadamente o cádmio, chumbo, e o próprio zinco. Na época das chuvas, este material transborda, atinge o mangue à sua volta, e polui tudo ao redor, inclusive o estuário. Já não se catam mais ostras nesta área.
Caso estudado por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Quando lá estivemos o caso era estudado por professores da Universidade Federal, que fizeram propostas que iam do sepultamento da área com concreto, a exemplo de Chernobyl, até o seu uso controlado. Ao fim de nossa visita, escrevi o que parece hoje ser um vaticínio: “Temo que esta tenha sido uma das últimas visitas e registros ainda com a baía tendo vida.”
E pensar que a região era semivirgem, prístina, até os anos 70 do século passado! Como é possível alguém com 60 anos se conformar com este legado? Em apenas 60 anos, um átimo na vida de um planeta com 4,5 bilhões de anos, nós depredamos o entorno, inclusive as baías de Angra dos Reis e de Paraty.
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O Globo ouviu o biólogo Mário Moscatelli: “Até a década de 1970, o Rio Piraquê ainda era preservado, hoje é esgoto puro. Quem vive na região lembra com nostalgia. De 1950 até 1990, houve uma série de atividades industriais e portuárias que impactaram de forma intensa todo o ecossistema da Baía de Sepetiba. A dragagem para a criação do Porto de Itaguaí, por exemplo, foi uma das atividades que mais prejudicaram essa região.”
Baía ‘dada’ para a indústria
O jornal também ouviu Alexandre Anderson de Souza, presidente da Associação dos Homens e das Mulheres Amigos do Mar (Ahomar): “A Baía de Sepetiba vivia cheia e tem potencial turístico enorme e pouco aproveitado. Era muito visitada, um local de veraneio. Hoje, infelizmente, é uma baía dada para a indústria.
Poluição industrial e o esgoto são o problema número um
Carlos Minc, ex-ministro de Meio Ambiente também depôs: “A poluição industrial e o esgoto são o problema número um. As dragagens feitas na região levantaram metais pesados como cádmio e zinco, que ficaram depositados no fundo da baía.”
A matéria mostra que ‘Em 2022, 225 mil toneladas de resíduos foram retiradas de 37 rios e canais que desembocam na Baía de Sepetiba, a exemplo do Rio Piraquê. A intervenção foi feita pela Fundação Rio-Águas, da Secretaria de Infraestrutura da capital. O Inea afirma que o assoreamento é decorrente da erosão e que a região apresenta um problema histórico de ocupação desordenada. Segundo o órgão, não há previsão para intervenções no rio.’
Veja bem, são ‘225 mil toneladas de resíduos que foram retiradas de 37 rios e canais’. E apesar disso, ‘não há previsão para intervenções no rio’. Ou seja, a situação de absoluto descalabro permanecerá. Para os órgãos públicos do Rio de Janeiro, a baía de Sepetiba não é importante. Ela que apodreça do mesmo modo que a Baía de Guanabara!
A única esperança é o novo marco do saneamento, em ‘perigosa análise’ pelo governo Lula que é contrário às concessões para a inciativa privada como aconteceu no Rio de Janeiro. A Cedae foi privatizada e a empresa Rio + Saneamento tem a obrigação de universalizar os serviços em 11 anos, até 2033.
A ver se Sepetiba resistirá até lá.
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