De Cuverville, latitude 64º e 41” S, até a ilha Trinity, latitude 63º e 54” S

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    Dia 8 de janeiro chegamos em Cuverville Island, outro lugar paradisíaco da Antártica.

    De bote entrando no túnel formado pelo iceberg
    De bote entrando no túnel formado pelo iceberg

    Eu estava super-cansado. Estressado também. Fazer uma série de documentários com uma equipe de apenas três pessoas, num lugar onde tudo é contra a presença humana, não é moleza. Na Antártica o frio é constante, mesmo dentro do barco.

    Noite bonita na Antártica
    Noite bonita na Antártica

    A sala, nos dias ensolarados, fica aquecida e até agradável. Mas as cabines, quando vamos dormir e o sol já se pôs, parecem refrigeradores. Não é possível manter a calefação a noite toda. Não há combustível que chegue. Aquecemos alguns minutos. Depois cada um se enfia dentro de seu saco de dormir, com várias camadas de roupas, e tenta descansar.

    A tensão, pela difícil navegação, provoca o cérebro 24 horas por dia. O Mar Sem Fim é um dos poucos barcos a motor a enfrentar estas águas. E não tenho dúvida em afirmar que entre os trawlers, o nosso é o menor.

    No meio do gelo...
    No meio do gelo…

    Mas não é tudo. Faz quase três meses que estamos embarcados. Nem todos estão acostumados a viagens deste tipo, ou a ficar tanto tempo isolados. O comportamento se altera e a harmonia desanda. Lidar com isto é complicado. A rotina é diferente, requer esforço coletivo, boa vontade, gênio bom, tolerância. Mas há quem não perceba o privilégio duma viagem como esta. Então é preciso administrar as diferenças, e trabalhar o tempo todo. Basta uma maçã podre no cesto…

    Dia de descanso. Almoço na ilhota.
    Dia de descanso. Almoço na ilhota.

    Por isto, ao chegar em Cuverville, decretei feriado. Ninguém trabalhou. Descansamos. Fizemos um alomoço numa ilhota no meio da enseada.

    Cuverville, como tantas outras baías abrigadas, era um antigo porto baleeiro. A ilha onde comemos é mais uma prova. Armamos a mesa em cima de um antigo bote abandonado pelos caçadores de focas e baleias.

    Numa saliência de pedra havia uma grossa corrente, colocada para amarrar os navios. Exatamente como fazemos hoje.

    Jogamos a âncora pela proa, e amarramos o barco nas pedras pela popa. Nada de novo. Já no século XIX estes formidáveis marinheiros, os foqueiros e baleeiros, abriram o caminho. Eles, sim, eram corajosos, destemidos e ousados.

    Os navios que usavam tinham o mesmo comprimento do Mar Sem Fim: 20 metros em média. Mas a boca (largura máxima) era bem maior. Em vez dos nossos 5.50, alguns chegavam a oito metros de largura. Mas, ao invés de toda tecnologia que temos, como casco de alumínio, ploter, GPS, ecosonda, radar, telefone satelital, motores e geradores, eles levavam bússola, sextante, e velas, em um barco de madeira. Uns poucos tinham cronômetros, invenção ainda recente, e rara, em foqueiros daquela época. Não levavam cartas náuticas. Não havia. Foi graças a estes marinheiros que os mapas das altas latitudes começaram a ser desenhados.

    Enquanto comíamos, um grupo de baleias passeava em volta. Era possível ouvir o respiro delas ao sair à tona.

    Olhávamos e víamos o dorso do animal a menos de 20 metros.

    Foca num iceberg
    Foca num iceberg

    Que almoço! Não sei se escrevo que estava uma delícia , ou emocionante (o cenário). Na dúvida deixo os dois.

    Foca num iceberg
    Foca num iceberg

    De Cuverville navegamos 20 milhas para o Norte, até a ilha Interprize, onde fundeamos e amarramos nossa popa num baleeiro encalhado numa enseada.

    Skua investe contra o cinegrafista.
    Skua investe contra o cinegrafista.

    No dia seguinte investigamos os arredores. Desci no navio, achei uma ponta de arpão enferrujada, gravamos uma passagem para os programas de TV, e navegamos de novo.

    Foram mais 30 milhas. A meteorologia continua favorável ao Mar Sem Fim. Na maior parte do tempo o barômetro está alto, o céu aberto, e sem ventos fortes. Na maior parte do tempo…

    Perfil da skua
    Perfil da skua

    Atravessamos o estreito de Gerlache, entramos na baía Dalamann, e seguimos mais um par de milhas até chegar ao arquipélago Melchior, formado por 40 ilhas e ilhotas.

    Faz alguns dias que estamos trocando e-mails com Amyr Klink, que está no Paratii 2, com a família. Marcamos um encontro em Melchior.

    Entregando meu livro sobre embarcações típicas ao Amyr
    Entregando meu livro sobre embarcações típicas ao Amyr

    No dia seguinte visitamos mais uma base da Argentina, próxima de onde fundeamos. O Destacamento Melchior está totalmente abandonado. Mais uma temporada e é capaz da neve cobrir tudo.

    A base argentina quase soterrada
    A base argentina quase soterrada

    Os argentinos insistem que a Antártica faz parte do território deles, por isto espalham bases onde podem. Só nesta curta etapa vimos duas: Melchior e a base Primavera.

    O que os argentinos consideram deles
    O que os argentinos consideram deles

    O Chile também. Ainda ontem estivemos numa base chilena abandonada, quase caindo, com pedaços de plástico espalhados, mangueiras apodrecendo ao ar livre, uma tristeza.

    Base chilena abandonada
    Base chilena abandonada

    Tenho a impressão que eles procuram criar uma situação de pretensa ocupação para, no futuro, caso haja mudanças nas regras do Tratado Antártico, poderem reivindicar sua parte no território. Argentina e Chile não são os únicos: Inglaterra, França, Noruega, Austrália e Nova Zelândia acreditam ter o mesmo direito.

    Dispensa lotada
    Dispensa lotada

    De noite chegou o Paratii 2. Tivemos um rápido encontro com Amyr, e Marina Klink. Tomamos uma taça de vinho, trocamos informações sobre nossas viagens, recebemos notícias frescas do Brasil, e zás-trás. Amyr seguiu para o Sul, e nós para o Norte.

    Base Primavera, os argentinos sabem escolher belos lugares
    Base Primavera, os argentinos sabem escolher belos lugares

    Viemos para a ilha Trinity, onde chegamos ontem de tarde (13/1). Daqui seguiremos para Deception, depois para as Shetland do Sul, onde fica a base brasileira Comandante Ferraz.

    A skua atacando o fotógrafo
    A skua atacando o fotógrafo

    No momento, quinta-feira, dia 14/1, três da tarde, aguardamos a frente fria do Nordeste passar. Desde ontem à noite ele abriu as comportas. Ventos de 50 nós transbordam em cima de nós. Nas rajadas a água do mar levanta voo. Formaram-se ondas na baía abrigada onde estamos. Neva. Com vento forte o gelo bate nas janelas do meu escritório lembrando uma batucada. A visibilidade caiu para menos de 50 metros. Sem sol, o frio é de rachar.

    Antes da tempestade as nuvens deram um sinal...
    Antes da tempestade as nuvens deram um sinal…

    Esta é mais uma situação que põe à prova os nervos. Um olho na tela do computador, outro na marcação em terra, para ter certeza que não arrastamos. E isto também é Antártica.

    A foto não faz jus a pauleira: foi bem pior que isto!
    A foto não faz jus a pauleira: foi bem pior que isto!